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António de Alcântara Machado: antologia de contos: Obra (quase) completa
António de Alcântara Machado: antologia de contos: Obra (quase) completa
António de Alcântara Machado: antologia de contos: Obra (quase) completa
E-book306 páginas3 horas

António de Alcântara Machado: antologia de contos: Obra (quase) completa

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Sobre este e-book

Neste livro, o leitor encontrará reunida quase toda a ficção de António de Alcântara Machado: Brás, Bexiga e Barra Funda (1927), Laranja da China (1928) e Mana Maria (1936). Alcântara Machado é um dos principais responsáveis pela renovação estilística e temática da prosa brasileira no início do século XX. Em consonância com as propostas inovadoras da primeira geração modernista, as narrativas presentes neste volume trazem flagrantes sensíveis da gente e da cidade de São Paulo quando esta passava por rápidas transformações. Quanto à qualidade, este volume não será propriamente uma surpresa, mas uma confirmação da excelência das edições organizadas por Orna Levin, que aqui conta com a parceria de Danielle Crepaldi Carvalho, responsável pelo estabelecimento do texto e pelas notas de esclarecimento
IdiomaPortuguês
EditoraLazuli
Data de lançamento5 de mai. de 2017
ISBN9788578651251
António de Alcântara Machado: antologia de contos: Obra (quase) completa

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    António de Alcântara Machado - António de Alcântara Machado

    ORGANIZADORAS

    Nota editorial

    Para a preparação deste volume, utilizamos as primeiras edições de Brás, Bexiga e Barra Funda (1927), Laranja da China (1928), Mana Maria (1936) e do conto O Mistério da rua General Paiva, publicado em 1930 no semanário As Novidades Literárias, Artísticas e Científicas, mas não inserido em volume.¹ Para a atualização do texto, adotamos as regras estabelecidas pelo novo acordo ortográfico da língua portuguesa, tal como consta na edição atualizada do Dicionário Houaiss (2009). Mantivemos, no entanto, as grafias originais dos nomes próprios de origem italiana, por exemplo, Beppino, Lisetta, Giuseppe, Guggiani, Rocco e Emilia, bem como as atualizações ortográficas realizadas pelo autor, por exemplo, Queijo Palmira, Antártica, Sudan Ovais e Rodolfo Valentino – neste último caso, incluímos as correções nas notas de rodapé. Também procuramos manter as fontes e a diagramação das primeiras edições das obras, considerando-se a importância que o autor dava ao aspecto gráfico dos textos.

    Outras alterações foram necessárias:

    Padronizamos as abreviaturas dos pronomes de tratamento do seguinte modo: Dr., Sr., Sra., V. Ex.ª, Ex.mo, Mlles, Cav. Uff. e D., grafando-os em minúsculas quando eles se apresentavam por extenso, como doutor, senhor, senhora, seu e dona. Os substantivos rua, avenida, praça, largo, alameda e ladeira também foram grafados em minúsculas. Corrigimos os nomes das ruas que porventura se apresentavam em minúsculas: por exemplo, substituímos rua brigadeiro Machado por rua Brigadeiro Machado e rua barão de Itapetininga por rua Barão de Itapetininga.

    Procuramos corrigir os erros tipográficos evidentes, como, por exemplo, cláxon por clácson, doppo por dopo, amazzo por ammazzo, na Brás por no Brás, uma palmadinhas por umas palmadinhas, ex-corde por ex corde.

    Mantivemos a pontuação original do texto, inserindo vírgulas somente quando se mostraram absolutamente necessárias, por exemplo, nos casos de enumeração O major, o tenente, o sargento estavam nervosos. Padronizamos o uso do travessão e das aspas nos discursos diretos. Utilizamos aspas dentro dos parágrafos, como forma de explicitar a alternância de turnos entre as personagens, e o travessão no início dos parágrafos.

    Optamos por manter a grafia das palavras estrangeiras do modo como elas se apresentam nos textos. Preferimos não grafar os estrangeirismos em itálico por considerá-los parte do registro intencional que o autor faz da linguagem oral.

    Grafamos em maiúsculas os cargos oficiais, como Ministro da Guerra, Presidente do Estado e Secretário da Justiça; os acontecimentos históricos, como Revolução Francesa e as datas comemorativas, como 15 de Novembro e Sete de Setembro.

    O volume apresenta um glossário organizado em ordem alfabética, no qual são explicitadas a origem e os significados das palavras estrangeiras, assim como de palavras ou expressões pouco utilizadas ou que caíram em desuso. As palavras cujas definições encontram-se no glossário estão sinalizadas, nos contos, com um asterisco. Inserimos nele o masculino singular das palavras e o infinitivo dos verbos. Por exemplo, gradas está lá inscrita como grado e abiscoitou como abiscoitar. No caso dos termos compostos por mais de uma palavra, inserimos a última palavra, seguida das demais entre parênteses: de carregação, por exemplo, está indicado como carregação (de). Para a elaboração do glossário, fizemos uso das versões digitais do Dicionário Houaiss (2009), do Dicionário Michaelis-UOL e do Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa publicado pela Academia Brasileira de Letras.

    São também apresentadas notas explicativas a respeito das localidades, personalidades, marcas, títulos de canções, expressões da época etc. – usados largamente pelo autor para marcar a contemporaneidade de seus textos.²


    1    A relação completa das obras de António de Alcântara Machado encontra-se na Bibliografia do autor: primeiras edições, presente no final da edição.

    2    A relação completa dos dicionários, enciclopédias e endereços eletrônicos pesquisados encontra-se na Bibliografia das notas de rodapé, presente no final da edição.

    Apresentação

    Caras e cores de São Paulo

    António Castilho de Alcântara Machado d’Oliveira descende de uma família de renomados bacharéis e intelectuais, cuja linhagem remonta aos tempos da colonização da costa brasileira, na Capitania de São Vicente. Seu pai, José de Alcântara Machado d’Oliveira, lecionou na tradicional Faculdade de Direito do Largo de São Francisco e fez carreira política como vereador, deputado estadual e federal, além de ter sido também senador. Seguia, nesse aspecto, o exemplo de seu avô, Brasílio Augusto Machado d’Oliveira, jurista e professor da mesma Faculdade que levara adiante, por sua vez, a trajetória bem sucedida do bisavô, Brigadeiro José Joaquim Machado d’Oliveira, deputado geral, presidente de cinco províncias brasileiras, diplomata, historiador e geógrafo.¹

    Tudo leva a crer que uma inclinação natural pelos assuntos da história brasileira, que se confunde com a própria genealogia familiar de Alcântara Machado, serviu de estímulo para que ele se dedicasse ao estudo da vida e obra de José de Anchieta, sobre quem escreveu uma alentada monografia sob o título Anchieta na Capitania de São Vicente, com a qual conquistou, em 1928, o prêmio da Sociedade Capistrano de Abreu.² Embora não tivesse formação de historiador, interessava-se pela documentação do período colonial e pelos assuntos da província. Assim como outros membros da família, também ele envolveu-se intensamente na vida política paulista e fez campanha, durante o movimento constitucionalista de 1932, como radialista na Rádio Record, emissora que se tornara uma espécie de trincheira a favor da insurreição bandeirante. Uma vez instalada a Assembleia Nacional Constituinte, em 1933, o escritor secretariou a redação das propostas apresentadas pela chapa única paulista. Em 1934, elegeu-se deputado federal por São Paulo, sob a sigla do Partido Constitucionalista, na liderança de Armando Salles de Oliveira, e fixou residência no Rio de Janeiro. Contudo, Alcântara Machado não chegou a ser empossado no cargo, pois faleceu precocemente, em 14 de abril de 1935.

    Depois de receber o diploma de bacharel em Direito, uma verdadeira tradição na linhagem paterna, António de Alcântara Machado preferiu iniciar-se na carreira de jornalista. Abandonou a advocacia sem ter exercido a profissão. Seu ingresso na imprensa ocorreu a convite de Mário Guastini, em janeiro de 1923, que o tornou responsável pela coluna Teatros e Música do Jornal do Comércio.³Na redação do periódico, Alcântara assumiu a função de redator e crítico, redigindo a resenha diária dos espetáculos e concertos musicais. Esse trabalho ocupou-o durante o ano todo, até que interrompesse a colaboração, em março de 1924, a fim de realizar a viagem internacional que ficaria registrada na série de crônicas de Pathé Baby (1926).

    O título do livro de viagem à Europa foi emprestado do equipamento que a empresa Pathé Frères havia lançado para uso de cineastas amadores, numa alusão sugestiva aos procedimentos de filmagem que inspiraram o tipo de notação ágil e sintética exercida por Alcântara Machado nos seus passeios pelas cidades do velho continente.⁴Os registros turísticos do cronista, a exemplo das tomadas cinematográficas, antecipam as marcas que identificariam o seu estilo literário, tão bem apontadas por Cecília de Lara. De acordo com a estudiosa de sua obra, também nos contos a economia narrativa opera por meio de blocos independentes, criando uma montagem de objetos desconexos como flashes da realidade.⁵A justaposição de cenas sem ligação imediata resulta na eliminação dos excessos e ornamentos descritivos, o que cria no leitor a sensação de estar submetido a um conjunto de estímulos simultâneos que funcionam como fotogramas. A surpreendente originalidade do volume de estreia despertou o entusiasmo de Oswald de Andrade, autor do Manifesto Pau-Brasil, que assinou o prefácio da primeira edição de Pathé Baby.

    De volta ao Brasil, Alcântara Machado retomou a atividade jornalística no Jornal do Comércio. Em setembro de 1926, estreou uma nova seção, denominada Saxofone, que, a partir de janeiro de 1927, passaria a designar-se Cavaquinho. Foi bastante ativo na grande imprensa. As suas matérias sobre teatro, literatura, política e assuntos diversos apareceram nas principais folhas do eixo Rio-São Paulo. Assinou artigos em O Jornal, Diário Nacional, Diário de São Paulo e Diário da Noite, este último de propriedade do grupo dos Diários Associados, no qual chegou à posição de diretor, em 1934, quando morou no Rio de Janeiro, a então capital federal.

    O nome de Alcântara Machado esteve presente ainda no periodismo cultural dos anos 1920, tanto nos artigos de crítica, quanto nos contos ou na direção das revistas, a exemplo de Terra roxa e outras terras, que fundou junto com Couto de Barros, em 1926. Antes de editar o periódico modernista, vamos encontrá-lo colaborando com as matérias sobre os espetáculos teatrais nas páginas de Novíssima (1923 e 1924) e participando de Estética (1925), sob a direção de Prudente de Moraes e Sérgio Buarque de Hollanda. Apareceria, em seguida, como autor de densos ensaios na Revista do Brasil (1926-1927) e nas páginas da Revista Movimento (1928), além de Feira Literária (1927) e Verde (1927-1928). Assumiu a direção da primeira fase da Revista de Antropofagia, entre maio de 1928 e fevereiro de 1929, em parceria com Raul Bopp, antes do desentendimento com Oswald, que criticou o seu elogio a José de Anchieta na monografia referida acima e debochou da tese de que o jesuíta fosse fundador do teatro nacional. Oswald, contrariando a opinião de Alcântara Machado, sugeria humoristicamente nas linhas da Revista de Antropofagia a deglutição definitiva daquele indesejável catequizador. Apesar das divergências com o amigo, Alcântara permaneceu ligado à Revista de Antropofagia no ano de 1929, quando esta saía estampada como suplemento do Diário de São Paulo. Há registro de que sua última participação assídua no comando de um periódico cultural foi nas edições da Revista Nova, entre março de 1931 e dezembro de 1932, ao lado dos membros fundadores, Paulo Prado e Mário de Andrade.

    Apesar de não ter atuado diretamente nos eventos ruidosos que marcaram a Semana de Arte Moderna, aos quais se opôs na primeira hora fazendo coro às vaias emitidas no Teatro Municipal pelos alunos da Faculdade de Direito, Alcântara Machado se aproximou gradativamente das ideias do movimento e tomou feições de autêntico modernista. A sua prosa de ficção, inspirando-se nos procedimentos introduzidos pelo teatro moderno e pelos novos meios de comunicação de massas, como o cinema e o rádio, auxiliou a geração de 1922 a se afastar do beletrismo parnasiano e a consolidar uma linguagem inovadora na prosa de ficção.

    ***

    O livro de contos Brás, Bexiga e Barra Funda veio a público em 1927. A ele seguiu-se a publicação de Laranja da China, que chegou às livrarias em 1928. O último volume de prosa narrativa, Mana Maria, ficou incompleto por ocasião da morte precoce de Alcântara Machado, tendo sido lançado postumamente, em 1936. Na antologia aqui apresentada, o leitor encontrará reunidos contos dos três livros idealizados por Alcântara Machado, aos quais se agregou recentemente um texto avulso localizado pela pesquisadora Cecília de Lara. Pelo que se conhece até o momento, as narrativas disponíveis na antologia totalizam a produção ficcional do escritor, que deixou inúmeras outras crônicas e ensaios ainda inéditos em livro.

    Se em Pathé Baby Alcântara, como um viajante curioso, anotou impressões de paisagens e situações que colheu nos diversos países visitados, nas narrativas de ficção mobilizou sua curiosidade jornalística para captar e recriar a realidade das ruas de São Paulo. No prefácio a Brás, Bexiga e Barra Funda, a notação que aproxima a linguagem literária da reportagem é justificada nos seguintes termos: "Este livro não nasceu livro: nasceu jornal. Estes contos não nasceram contos: nasceram notícias. E este prefácio portanto também não nasceu prefácio: nasceu artigo de fundo."

    Aos olhos de um narrador observador que registra cenas urbanas, a pauliceia dos anos 1920 ganhou corpo e foi-se desenhando no ritmo da pulsação dinâmica de sua gente. O observador abre-se para a percepção visual e para a escuta dos acontecimentos diários, adotando a perspectiva dos novos habitantes da cidade, especialmente a dos imigrantes, que para ali afluíam em grande quantidade. Alcântara Machado põe em cena, por meio de diálogos diretos e referências objetivas do cenário, as situações rotineiras e banais do cotidiano de São Paulo. Detém-se nos assuntos da vida comum de uma gente simples, que faz a cidade crescer e se transformar rapidamente.

    Quanto a isso, Alcântara Machado parece estar seguindo a recomendação que ele mesmo, no papel de jornalista, costumava dar aos dramaturgos nacionais a quem aconselhava insistentemente a renovarem a cena teatral fazendo o retrato dos tipos da atualidade, dentre os quais os italianos e seus descendentes.

    A cena nacional ainda não conhece o cangaceiro, o imigrante, o grileiro, o político, o ítalo-paulista, o capadócio, o curandeiro, o industrial. Não conhece nada disso. E não nos conhece. Não conhece o brasileiro. É pena. É dó.

    Podemos encontrar nas narrativas curtas uma demonstração ficcional das possibilidades artísticas para as quais Alcântara já vinha acenando em suas críticas teatrais. Ele não se cansava de insistir na necessidade de oferecer alternativas para os desgastados tipos sertanejos que se repetiam nos palcos, ao lado de figuras emprestadas à nobreza europeia, a seu ver, falsificações que a literatura da nossa Belle Époque disseminara com a voga do francesismo snob, não por acaso tão parodiado pelos modernistas. Em contraste com o repisado modelo de sentimentalidade campestre que se esgotava nos palcos, de um lado, e com certa linhagem da prosa finissecular, de outro, Alcântara propunha a expressão dos tipos urbanos da pauliceia contemporânea, nos quais acreditava existirem a naturalidade e a autenticidade pela qual a literatura moderna ansiava.

    De modo geral, seus contos encontram-se povoados pelo elemento humano que compunha o novo quadro demográfico de São Paulo, cidade ainda pacata, porém em fase de acelerada expansão sob o impacto da riqueza gerada pela economia cafeeira e pela industrialização. Polo de atração de imigrantes que buscavam melhores condições de trabalho e sobrevivência, a nascente metrópole assistia ao aumento do contingente populacional e ao desenvolvimento de bairros residenciais que se alargavam no entorno da região central com a expansão imobiliária nas ruas do Brás, Bexiga e Barra Funda, onde habitava principalmente a colônia italiana. Desse segmento populacional da cidade, o escritor elegeu para homenagear o tipo híbrido, o mestiço nascido do encontro do paulista com o imigrante estrangeiro, de que resultou o ítalo-brasileiro ou, como ele designava, o mamaluco.

    Os textos do volume Brás, Bexiga e Barra Funda, sem se deterem em um único retrato, captam as diferentes etapas de adaptação dos imigrantes ao país.⁸ Como a compor um painel amplo e abrangente, saltam à vista do leitor os vários estágios desse processo de integração social. Há exemplos de todo o percurso, desde a fase do contato inicial, marcado pelo forte vínculo dos recém chegados com a terra natal – que às vezes se manifesta na forma de um nacionalismo exaltado, como em Zampinetti do conto Nacionalidade, ou no gosto estético que remete a canções napolitanas, do genero de Ahi, Mari entoada pela tia Filomena no conto Gaetaninho, outras vezes à ópera, na menção à Tosca no conto Armazém Progresso – passando pela fase de aculturação, mais evidente no uso da linguagem macarrônica, muito característica em falantes que se situam no entremeio de duas culturas, até atingir o ponto de integração plena dos italianos aos valores e costumes locais.

    Vista pela lente de um narrador que acompanha e dá voz direta às personagens, a assimilação ao meio brasileiro coincide com o enriquecimento e a afirmação social do imigrante. A trajetória que conduz à aceitação da nova identidade por parte dos estrangeiros surge filtrada por uma dose de ironia do autor que fica evidente nas conquistas financeiras de comerciantes estrangeiros. A sátira aos novos ricos e à burguesia ascendente ganha um toque de humor, por exemplo, na abordagem da temática amorosa no conto Sociedade. O contrato de casamento do ítalo-brasileiro Adriano Melli com Teresa Rita, filha de tradicional família paulista, é pautado pelos interesses de ambas as famílias, dando ao enlace festivo o sentido de um negócio comercial celebrado na forma de um convite solene, que contrasta com a negativa inicial do Conselheiro Bonifácio em ceder a mão de sua filha a um carcamano. Circunstância semelhante serviria, anos mais tarde, para Oswald de Andrade retratar farsescamente, na peça O rei da vela, a união do arrivista Abelardo com Heloísa, paulista de família quatrocentona em crise, após a quebra de 1929.

    As situações depreendidas do processo de fixação do imigrante ao novo meio mostram, dessa maneira, um leque de posicionamentos dentro da sociedade paulistana que vai dos mais pobres aos mais bem sucedidos. Os estrangeiros desenraizados e com poucas qualificações profissionais trabalham, na grande maioria das vezes, como empregados do comércio, operários de pequenas fábricas e subempregados de oficinas caseiras. Os mais qualificados ocupam cargos no setor bancário, em postos inferiores do funcionalismo, quando não se arriscam em empreendimentos comerciais, chegando a proprietários de estabelecimentos varejistas que lhes permitem acumular algumas reservas, conforme se lê em Armazém Progresso de São Paulo. As possibilidades disponíveis no mercado de trabalho e o desejo de consumo estimulado pela oferta publicitária de novos produtos reverberam nas estratégias, nem sempre éticas, que as personagens adotam para conquistar a mobilidade social. A tensão provocada pela busca de uma estabilidade econômica, em atrito com as referências culturais de origem, e as demandas da vida moderna conferem às narrativas de Brás, Bexiga e Barra Funda uma densidade humana comovente.

    No livro Laranja da China Alcântara Machado se afasta desse universo exclusivamente italiano para compor uma galeria cômica de personagens que caracterizam os costumes e o modo de agir dos paulistas em geral. Depois de ter examinado a formação dos tipos híbridos nascidos da imigração, o escritor parece ter se preocupado em fixar uma caricatura dos tipos que definem o espírito e o orgulho bandeirante. Nesse segundo livro encontramos uma série de figuras que expõem ao ridículo o sentimento de superioridade bandeirante. A composição parece dialogar com os problemas da formação identitária e política que Paulo Prado expôs em seu livro Retrato do Brasil, de 1928.⁹ Dentre outros recursos, Alcântara assinala um ponto de vista crítico na associação que estabelece entre os nomes das personagens e as personalidades ilustres em quem tais nomes se inspiram, como Robespierre Washington, Platão, Jesus etc. Sem a relevância que os nomes carregam, os seres destituídos de grandeza dos seus contos se tornam risíveis quando observados pelo viés rebaixado das atitudes prosaicas e do comportamento grosseiro. O que se vê é a rotina ordinária de funcionários públicos ressentidos, desempregados ociosos, pessoas revoltadas ou fracas, cujo retrato caracteriza as falhas dos anti-heróis da metrópole.¹⁰

    Já na galeria de personagens femininas destacam-se nos contos de Alcântara Machado imagens de mulheres ativas, que são donas de casa, comerciantes, costureiras, namoradeiras, candidatas a Miss. Também há meninas, como a pequena Lisetta, que exigem espaço para suas aspirações de consumo e lazer. O aumento da presença da mulher fora do âmbito da vida doméstica começava a se fazer sentir à época nas

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