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CIDADE DE TIROS: laços e embaraços de família
CIDADE DE TIROS: laços e embaraços de família
CIDADE DE TIROS: laços e embaraços de família
E-book544 páginas3 horas

CIDADE DE TIROS: laços e embaraços de família

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Sobre este e-book

Conheci o jornalista Ivan Mendonça de Lima em maio de 2021. Em poucos minutos de conversa após um cafezinho na cantina da prefeitura, "xará" pra cá, "xará" pra lá, ele me falou de sua trajetória como jornalista em Goiás e também de seu novo livro. Ao contrário do primeiro, O Espião do Morro, de grande conteúdo político, desta vez a ideia é contar os laços e embaraços familiares.
Os antepassados dele, a maioria de sobrenome Mendonça, Rabelo, Lima, Nunes, Oliveira, Gontijo e Bomtempo, contribuíram e muito para o povoamento da cidade de Tiros. Lembrei que meu avô também tem Nunes e Gontijo na certidão de nascimento e a resposta dele saiu na ponta da língua: "Se brincar, somos parentes".
Segundo Ivan Mendonça, o embrião de tudo foi o Capitão Justino Nunes da Silva, nascido em 1798. Nova coincidência: meu pai também foi batizado com o nome de José Justino Nunes. Aí, após boa risada, saiu a conclusão: nascemos juntos e misturados, frutos de um mesmo balaio. Ele, natural do Morro do Espia, e eu, nascido na Fazenda Macaúba, próximo à Serra do Moinho.
Neste segundo livro, Ivan conta que o conflito que originou o nome do município foi travado às margens do Córrego Areado, hoje Córrego dos Tiros, que passa dentro da antiga fazenda de seus avôs paternos, José Rabelo de Lima e Cristina Mendonça de Jesus. Hoje, ela foi transformada em pasto de brachiaria.
Já as macaúbas da Fazenda Barra Bonita, que pertencia aos seus avós maternos, Severo Mathias de Oliveira e Leopoldina Augusta de Lima, viraram plantação de soja. E olha que a propriedade fica às margens do Rio Abaeté, de cujo leito foi tirado o maior diamante do mundo.
Em resumo, como já deu para perceber, a intenção de Ivan Mendonça é matar dois coelhos com uma só cajadada: resgatar a memória da família e deixar um legado sobre os primórdios da edificação da cidade de Tiros.

Ivan Pereira Nunes,
prefeito municipal de Tiros
IdiomaPortuguês
Data de lançamento8 de out. de 2021
ISBN9786584533257
CIDADE DE TIROS: laços e embaraços de família

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    CIDADE DE TIROS - Ivan Mendonça

    Morro do Espia, o epicentro

    Morro do Espia, hoje decorado por antenas

    No século I, quando o Império Romano era o umbigo do mundo, todos os caminhos levavam a Roma. No início do século XX, todas as estradas esburacadas com origem na bacia do Córrego dos Tiros e do Rio Abaeté também levavam ao Morro do Espia, torrão-núcleo onde nasceram e viveram nossos pais, tios, sobrinhos e primos. Muitos aprenderam as primeiras letras no Grupo Escolar Félix de Lima, que hoje não existe mais. Caiu de velho. De podre. Nenhum tijolo sobrou para contar a história. Igualzinho às outras casas e vendas do povoado. 

    Grupo Félix de Lima: hoje, só ruína à beira da estrada

    (Foto: Ivan Mendonça)

    Reza a lenda que foi justamente do alto do Morro do Espia, mais ou menos a uns dois mil e quinhentos palmos de altura, que saíram as coordenadas da sangrenta batalha travada às margens do Córrego Areado, que originou o enigmático nome do município de Tiros. Segundo os historiadores, o meu suposto tataravô, Capitão Justino Nunes da Silva, delegado legalista, foi quem colocou lá um escravo para vigiar as tropas comandadas pelo rebelado José de Borba. O objetivo seria ganhar tempo para a chegada de reforço policial, solicitado pelo capitão Domingos de Morais Pessoa, filho do comendador português Antônio José Delgado. E foi tiro e queda: o filho insurgente do capitão Antônio Fernandes Borba, primeiro morador da currutela, acabou preso e encaminhado ao Quartel Geral de Pitangui. 

    Capelinha de N. S. das Graças, cruz edificada em 1951

    (Foto: Ivan Mendonça)

    Igrejinha no morro, pertinho do céu

    (Foto: Ivan Mendonça)

    Salão paroquial, arquitetura contemporânea

    (Foto: Ivan Mendonça)

    Histórias à parte, há quem diga que do ponto mais alto deste outeiro, onde existem hoje duas antenas de telefone celular, seria possível ter uma visão quase que panorâmica da cidade de Tiros. Disposto a tirar a prova dos nove, já que a sede do município fica distante algumas léguas e está localizada numa região baixa, embreei diversas vezes mato adentro, quando criança, na tentativa de chegar ao seu topo. Nunca consegui. Parava sempre na metade do cerradinho, às vezes antes disso, quando já tinha leite de mangaba suficiente para fazer uma bola de futebol com bexiga de porco.

    Mas há males que vêm para o bem. Mesmo empacado na metade do caminho, privilegiado por ainda não usar óculos, eu me contentava só de enxergar a fazenda do Júlio Norato, do outro lado do Rio Abaeté, além do Morro do Limão nas proximidades da Barra Bonita. Na parte do fundo, tendo como base a antiga casa do Josias do Magino, atrás do campo de futebol, dava para ver as estradas que demandam a Matinha dos Corrêa e a Fazenda Bebedouro, do patriarca José Rabelo. A casa do Quelemente ficava bem de frente, na mesma direção da venda do Tio Xedo e do antigo pau de óleo na entrada da Fazenda Fundão, que pertenceu ao meu pai. Só não dava para avistar a casa do Tinésio, escondida pelas curvas do caminho, o mesmo acontecendo com a casa da Xede do Celino.

    Cadê a venda do Rafael da Inhá que estava aqui?

    (Foto: Ivan Mendonça)

    Ao pé do morro, em local privilegiado e abençoado por Deus, meu pai, José Mendonça, lavrou madeira para a construção da igrejinha de Nossa Senhora das Graças. Incluindo mão-de-obra do Carlos, meu irmão, e de outros voluntários como Joãozinho Pedreiro, Criolo, Tonho da Inhá, José do Geraldo do Nelson e Mário da Dona Ana, vizinha do Joãozinho Teodoro. Concluída na gestão do prefeito Marcondes Gontijo de Melo, a capela resiste em pé até hoje. 

    Roza Marra, entre as pastorinhas devotas de Nossa Senhora das Graças

    (Foto: Álbum de família)

    Dois anos depois de sua inauguração, numa arrumação da professora Roza Marra de Lima, filha da tia Xedinha, a imagem da padroeira foi carregada em procissão por duas dezenas de meninas vestidas de branco. Maria Mendonça, minha irmã, que na época estava substituindo a professora Dulce Macedo, ajudou também nos preparativos do evento. As celebrações e batizados eram comandadas pelo padre Aristeu Cândido de Oliveira, nascido em 8 de outubro de 1912, no Canastrão. Ele faleceu 81 anos depois, em 26 de novembro de 1993.

    É oportuno lembrar que quase todos os descendentes de sobrenomes Rabelo, Lima, Mendonça, Barcelos, Gontijo, Barbosa, Oliveira, Nunes, Maciel e Bomtempo receberam as bênçãos do matrimônio do padre José Coelho Nogueira, que passou a responder pela Matriz de Santo Antônio de Tiros em 1947. O pároco Miguel Kerdole Dias Maciel, seu antecessor no início do século, gostava de rezar missa em latim e ficava feliz da vida quando usava e abusava das palavras litúrgicas "por omnia saecula saeculorum e o seu ajudante respondia: Amém". De acordo com Paulo Lima, autor do livro Homo Dei, os fiéis da Lagoa dos Gouveia também sabiam de cor e salteado a tradução dessa frase, mas com uma interpretação diferente. Seria mais ou menos assim: A Mariazinha do Butório é a menina mais bonita lá dos Tiros... Ato contínuo, o sacristão respondia: É mesmo. A filha do Butório, segundo o irmão de Dom José, era muito admirada por garimpeiros da região. 

    O pacato ambiente ao redor do Morro do Espia começou a mudar a partir da década de 60. Moradores sumiram e as onças e jaguatiricas passaram a ser vistos com maior frequência nas proximidades do antigo campo de futebol. A última aglomeração que aconteceu por lá foi em 2013, durante a inauguração do salão paroquial na parte de baixo da igrejinha. Uma iniciativa de abnegados tirenses ausentes destinada a garantir um pouco de conforto aos visitantes em dias festivos.

    Quem somos? De onde viemos? Para onde vamos? Segundo o provérbio chinês, não importa o tamanho da montanha, já que ela não pode tapar o sol com a peneira. E como somos frutos do que fomos no passado, o desafio é exatamente este: decifrar a influência de nossos ancestrais em nossas vidas. 

    Uma venda, poucas casas e um campo de futebol

    Como seria a vida ao redor do Morro do Espia nos idos de 1956? Sem praia, água de coco, shoppings e restaurantes, supermercados ou parques de diversão, o pacato ambiente no povoado era o de sempre, igual capinar quintal com enxada duas caras. Uma mesmice tal e qual juntar coco de macaúba ou cortar fumo com canivete corneta de cabo de osso. Ou pensar que boi deitado é que nem vaca. Isso em dias comuns. Já nas missas, terços, leilões e novenas em louvor a Nossa Senhora das Graças, a movimentação era bem maior, coisa de tirar pica-pau do oco. Incluindo o cheiro de frango assado, pamonhas mornas servidas em bandejas e melado de engenho pedindo queijo fresco. Tudo era festa, paz e harmonia, conta Almerita Teixeira, filha da tia Christina, lembrando a correria da meninada morro acima à cata das varas-suportes dos foguetes-de-rabo. Eu era bem feliz naquele povoadozinho poeirento e ninguém estava morto, complementa ela, citando Fernando Pessoa. O certo é que a mulherada ia chegando desconfiada, devagarinho, a maioria vestida com as melhores roupas, cheirando à naftalina. A alegria era maior no reencontro entre madrinhas e comadres.

    (Googlegrafia Jadir Mendonça)

    Os marmanjos, muitos de chapéu atolado, chegavam arrumadinhos e salientes. Amarravam cavalos e mulas à sombra e, após os cumprimentos, rezavam o Pai Nosso e três Ave Marias na capela. Depois, davam passadinha no salão de sinuca do meu pai, Juca Rabelo, ou na loja de tecido do Tio Miguel, que ficava logo abaixo das casas do Cirilo, do João Paulino e da Augusta Paturnia. Os mais velhos, sem maiores delongas, iam direto para a venda do Rafael da Inhá, que foi adquirida do Viano do Tinésio, para jogar conversa fora ou beber pinga em volta do balcão. Lá tinha de tudo. Uma feira livre. De chapéu de palha a botinas de solado de pneu, passando por bebidas, brincos e guarda-chuvas. 

    Para as mocinhas, a degustação de picolé de groselha era chique no úrtimo. Como diz a música de Cezar & Paulinho, guardavam tudo para depois do casamento, davam de tudo em pensamento, mas não perdiam a virgindade. Já a rapaziada, de penugem no saco, só pensava naquilo: calçar chuteira nova para trocar canelada em um chão batido perto da casa da tia Xedinha. Essa arena, nada olímpica, surgiu em substituição a um campo cheio de tiririca que existia na região do Papagaio, na saída para a Fazenda Bebedouro. Era tudo de bom correr atrás da bola de capotão.

    Buracanã: o antigo campo de futebol do Morro do Espia

    (Foto: Ivan Mendonça)

    Estrela Futebol Clube: base formada por dentes de leite no Morro do Espia

    (Foto: Ivan Mendonça)

    Remendada igual a uma colcha de retalhos, a pelota era cambeta e quicava muito. E dá-lhe gargalhada, uma risada atrás da outra. Principalmente quando alguém chutava para a área e a gorduchinha ia parar do outro lado, no quintal da Augusta Valeira, mãe do João Metefogo. Melhor do que isso, era a gozação de chamar aquele grande descampado de Buracanã em alusão ao Estádio Mário Filho, no Rio de Janeiro, que recebeu público de 199 mil pessoas na decisão de Brasil e Uruguai, na Copa do Mundo de 1950. 

    Nos dias festivos era comum convidar um time adversário, oriundo de Tiros ou da Matutina, para enfrentar o improvisado esquadrão do Morro do Espia. O melhor lugar para conferir o desempenho dos atletas pés-de-toddy era do morro ao lado do Josias do Magino, marido da Lucrécia, mãe do Zinico. A casa ficava atrás do gol protegido por um pé de manga. Dali, vista panorâmica e privilegiada, a sensação era de estar numa tribuna de honra. Se um dia, por esses acasos do destino, Galvão Bueno fosse contratado para narrar um jogo desta envergadura, certamente ele iria escolher o espigão para falar ao microfone.

    José Mendonça também era apaixonado por futebol

    (Foto: Álbum de família)

    Nova formação do Estrela Futebol Clube: os craques do time eram Ivan, João, Tião, Tomé e Paulo Furreca

    (Foto: Álbum de família)

    Em pé: Zequinha, Tião do Dedé, Primo Lagares, Zezé Mestre, Furtunato e Geraldo da Cota. Agachados: Mário da Custódia, Tonho Rabelo, Adiron, Zé da Custódia, Ganga, Tonho da Olinda e o goleiro Joãozinho Rabelo.

    (Foto: Álbum de família)

    E já que estamos viajando na maionese, por que não imaginar também a participação de Fiori Gigliotti, Waldir Amaral, Paulo César Vasconcelos e Geraldo José de Almeida na transmissão desta pelada? Seria cômico se não fosse trágico, mas vamos embarcar nesta imaginária nave do tempo, usando seus velhos e famosos bordões...

    Abrem-se as cortinas do espetáculo, torcida brasileira…começa o jogo...Zé da Augusta tenta passar, mas não passa...indivíduo competente esse Ziele...o visual é bom, aguenta coração...o adversário tem bala na agulha...o relógio maaaarca...cinco minutos de jogo...alô Tio Bem na Barra Bonita...aquele abraço...alô Tião Luiz na beira do Indaiá...aquele abraço...alô menino da porteira...aquele abraço...epa, tem confusão na área...Deiró atento...olhando de esguelha...ponta de bota de Zé Teixeira...quem é que soooobe...vai que é sua, Rafael...e o tempo passa, torcida brasileira...jogada de craque no meio de campo...esse Ganga sabe tudo de bola...ele é irmão do Zezé Mestre...agora é Antônio Rabelo que mata no peito e baixa a bola na terra...pode ser fumaça de gol...Furtunado cruza, Celestino desvia...não deu em nada...agora é com Joãozinho Rabelo...esse mineirinho é bom de bola...corre pela linha de fundo...olha na área...Zé da Custódia acompanha de longe...vem cruzamento no caldeirão do Diabo...Adiron já está na porta do gol...pede na cabeça...o zaqueirão Primo do Quelemente também está na grande área...olha ele aí...Zezé da Candinha chega por baixo...Dodão, irmão dele, mete os pés por cima...o goleiro sai desorientado...choque de cabeças...a bola escapa...que que isso, minha gente...olha o gol...olha o gol...olha o gol...40 minutos do segundo tempo...a bola vai entrando...olha lá...olha lá...olha lá...olha lá no placarrrrrrrr...deeeeez...é a camisa dele...Adirrrrrrrrrrron...o canhotinha de ouro...tem peixe na rede do time adversário...haja coração...pintou um sapeca-iaiá...é tetra...é tetra...é tetra...torcida brasileira...estão desfraldadas as bandeiras do Morro do Espia...e a plateia não cansa de gritar...é o Adiron...Adiron da Custódia...do outro lado, só tristeza...agora não adianta chorar...a nêga tá lá dentro...que beleeeeza de gol...e o tempo passa, torcida brasileira...chegamos ao crepúsculo do espetáculo...um beijo no coração...fecham-se as cortinas e termina o jogo...

    No tempo do carro de boi

    Em 1939, quando o cineasta americano John Ford dirigiu o filme No Tempo das Diligências , que projetou John Wayne como astro internacional de Hollywood, a cidade de Tiros estava vivendo a ressaca de uma cena parecida, envolvendo índios e garimpeiros às margens do Córrego dos Tiros, ex-Areado. O município tinha apenas 17 anos de emancipação e o cenário desta Batalha Heróica , nome dado originalmente ao western dos Estados Unidos, era bastante propício para ilustrar, quem sabe, a produção de um seriado tupiniquim, do tipo tomba-carroça. 

    Macaúbas e a neblina sobre o Rio Abaeté

    (Foto: Ivan Mendonça)

    É claro que na época das filmagens não existiam por aqui caubóis, xerifes, nem índios Comanches e Apaches. Apenas e tão somente alguns remanescentes das tribos Cataguás, Kaypós, Goyazes, Caetés e Tapuyus, perseguidos desde os idos de 1790. É certo também que o relevo em volta do Morro do Espia não lembrava nem um pouco o Monument Valley, em Arizona, na divisa com Utah, que deu vida ao primeiro faroeste realmente sério do cinema americano, mas o cotidiano de nossa terrinha natal sempre foi marcado pela truculência adotada nos quartéis-gerais no enfrentamento aos primeiros donos da terra. 

    Erosões, as marcas de um tempo generoso (Foto: Ivan Mendonça)

    Somente em 1956, 17 anos depois, é que o escritor mineiro João Guimarães Rosa transformou em universal a nossa paisagem tupiniquim ao escrever o livro Grande Sertão: Veredas. No romance, obra de quase 700 páginas, ele focou na temática regionalista para mostrar que o sertão é do tamanho do mundo. Nascido em Cordisburgo, cidadezinha parecida com Tiros, também cercada por morros, vales, fazendas e rios, Guimarães Rosa usou e abusou das lendas, tradições e costumes para criar o imaginário de sua narrativa, retratando o jaguncismo que campeava no ambiente interiorano daquela época. Nas entrelinhas, como pano de fundo, relatou a luta, medo e o amor reprimido de Riobaldo por Diadorim. O próprio escritor sempre enfatizou que os seus personagens eram reais e não fictícios: Criaturas de Minas: jagunços, vaqueiros, fazendeiros, pactários de Deus e do Diabo, meninos pobres, mulheres belas. A conclusão que se tira é que não terá sido mera coincidência a semelhança dos massacres de nossos indígenas com a romanceada colonização do Oeste americano.

    Fazenda Aroeira, de Sebastião Luiz: mais velha que Dom Pedro II

    Não dá para imaginar, claro, um comboio de carruagens americanas dando cavalo de pau no Morro do Espia nos idos de 1912, quando meu pai nasceu, mas o carro de boi já fazia parte da vida e do cotidiano de seus habitantes. Ao contrário das antigas diligências, nossas carroças caipiras eram mais lentas, sem velocidade, por um motivo óbvio: suas rodas travavam nas curvas. Introduzida pelos colonizadores portugueses, a invenção do carro de boi foi uma coisa tão boa que até hoje ainda está em uso no meio rural para o transporte de carga e pessoas. A história registra que em 1549, na recém edificada Salvador (BA), já se ouvia o choro do eixo untado com azeite de mamona.

    Travessia de bois no Rio Indaiá próxima à Fazenda Serra Selada do Gentio

    (Foto: Álbum de família)

    Antes de morrer, em 2008, aos 95 anos, meu pai contava que os velhos carroções, hoje transformados em veículos alegóricos e de decoração, tiveram papel fundamental na ocupação do Cerrado, especialmente nas cercanias da cidade de Tiros. Enquanto cavalos e burros levavam cargas leves, os carros de boi eram usados para o serviço mais pesado, especialmente para transportar pedras, areia, madeira e até o adobe para a construção de residências. Só quem viveu no século passado para expressar com nitidez quão era bonito vê-los gemendo morosamente no fim do estradão. Aliás, como diz o velho ditado, carro que não canta vira carroça. 

    Juquinha Rabelo, arte trabalhada com machado

    (Ilustração: Mariosan Gonçalves)

    Cães perdigueiros: caçadores de veados catingueiros (Álbum de família)

    Tião Luiz: mula de sete palmos de altura (Foto: Álbum de família)

    Hoje, talvez nossa geração nem tenha conhecimento que os primeiros carreiros chegaram ao Brasil junto com o governador-geral Tomé de Sousa, em 1549. Tipo prato feito, muitos engoliram a mensagem subliminar do cinema americano em relação à sua colonização. Quem viu o filme O Nascimento de Uma Nação, lançado em 1935, sabe disso. Nele, o diretor D. W. Griffth glorifica a escravatura, justifica a segregação racial e ainda apresenta a Ku Klux Klan como uma força heroica. E pensar que era um filme sem som, totalmente mudo.

    Carapuça bem ajustada, sinto-me orgulhoso por ter nascido junto e misturado com a destreza de meu pai no manejo do machado, da serra, do serrote, da enxó, do grupião, da plaina, da pua, do prumo, da lima e da grosa. Minha primeira máquina de escrever conviveu durante muito tempo com cabeçalhos, eixos, fueiros, canziles, arreias, recavéns, chumaços, chedas, cantareiras, cocões, chocalhos e até com as tiras de couro, chamadas de ajojo, que uniam chifres dos bois facilitando a direção pretendida pelo carreiro.

    Caça e pesca: diversão de pai para filho (Foto: Álbum de família)

    Colosso do sertão

    Aengenharia envolvida na construção de um veículo puxado por bois pode ser rústica, obsoleta, mas está longe de ser simplória. Arrastado por até dez juntas de animais, ele é capaz de carregar carga de uma tonelada e meia, o equivalente à capacidade de uma caminhonete traçada, tipo 4x4. Conduzido por um guia, chamado de candeeiro, o carro de boi é comandado por um carreiro, sempre próximo ao cabeçalho, com o objetivo de desviar dos percalços e trilhar sempre o caminho.

    Fazenda Serra Selada do Gentio: anos dourados

    (Foto: Álbum de família)

    Chamado de Gigante do Sertão por Rogério Borges, em reportagem publicada em 6 de abril de 2014 no jornal O Popular, de Goiânia, o carro de boi é composto por dezenas de peças diferentes que lhe dão uma característica única de durabilidade e resistência. Tudo unido a uma tração animal poderosa em que cada boi da junta desempenha função específica para que o carro se movimente. Veja como se encaixam essas engrenagens que, por séculos, deram sustentação à economia e também à vida cotidiana de nossos antepassados.

    Madeira – O carro de boi precisa ser forte e resistente, mas não pode ser excessivamente pesado. Por isso, é recomendado o uso de madeira mais leve para não sacrificar os animais que o puxam. No feitio das rodas, o bálsamo é a cereja do bolo. Como se trata de uma árvore em extinção, ela tem sido substituída por angelim vermelho, angico e tamboril. No eixo, que suporta o peso de tudo, os carpinteiros preferem aroeira, sucupira e jacarandá.

    Medidas – O carro de boi deve ter o dobro de largura em relação ao raio da roda e um comprimento seis vezes maior. O raio da roda é a base de tudo pela exigência de proporcionalidade ao seu tamanho. 

    Eixo – Unindo as rodas, o eixo garante o seu funcionamento. A peça que faz o encaixe é a mecha, segurada por duas peças adicionais denominadas cavilhas.

    Rodas – Acopladas ao eixo, as rodas são divididas em três partes principais. As externas são chamadas de cambotas e a parte de dentro, no centro, tem

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