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A caixa de Natasha e outras histórias de horror
A caixa de Natasha e outras histórias de horror
A caixa de Natasha e outras histórias de horror
E-book379 páginas5 horas

A caixa de Natasha e outras histórias de horror

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Sobre este e-book

Um estranho retrato pendurado no corredor da casa de sua avó causa um assombroso fascínio no jovem Alfredo, em "O retrato tétrico". Duas irmãs sozinhas em casa em um dia nublado, frio e silencioso revelam um segredo que talvez devesse ter permanecido oculto para todo o sempre, em "As inocentes". A mais pura essência do medo e do terror, personificada em "Malpurga", é finalmente superada por um homem no começo da velhice – será? A caixa de Natasha e outras histórias de horror reúne 17 contos, 3 poemas e uma narrativa longa do estreante Melvin Menoviks. As histórias, originais e aterrorizantes, exploram várias facetas da ficção de horror, desde o terror psicológico sutil até o exagero escatológico de sangues e carnificinas, passando por todos os sinistros mistérios que existem entre esses dois extremos. Não se atreva! Após tensão e suspense crescentes, a atormentadora revelação final de "A caixa de Natasha" poderá causar pesadelos eternos mesmo no mais corajoso dos leitores.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento20 de mai. de 2015
ISBN9788542805314
A caixa de Natasha e outras histórias de horror

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    A caixa de Natasha e outras histórias de horror - Melvin Menoviks

    Dedicado ao Murilo Toffanelli, que me mostrou o caminho; e ao João, à Zilda e à Juliana, que possibilitaram que por ele eu caminhasse.

    A G R A D E C I M E N T O S

    Agradeço a toda minha família, em especial aos meus pais, João e Zilda, ao meu irmão e sua esposa, Rafael e Mariana, e à minha sobrinha, Sofia, simplesmente por existirem.

    Agradeço à Juliana, para quem não tenho palavras suficientes.

    Agradeço a TODOS os meus amigos: de Tabapuã, de Londrina, de Catanduva, Maringá, Cambé, Ribeirão Preto, Ponta Grossa, São Paulo, Presidente Prudente e onde mais vocês estiverem – a vida não valeria a pena sem vocês.

    Agradeço ao Trolium Nafiellof, provavelmente o maior sábio da paradoxal psicoalquimia, pelos fundamentais apoios metafísicos e imprescindíveis conselhos de transcendental sabedoria (Se cuidem garotos, ouçam muito Danzig).

    Agradeço, finalmente, ao Pennywise.

    N O T A    P R E L I M I N A R

    Caros leitores,

    Uma terrível maldição aguarda a todos aqueles que revelarem o final de A Caixa de Natasha a quem ainda não a leu. Atenciosamente,

    M.M.

    O retrato tétrico

    Natan

    A narrativa de Jonathan

    Malpurga

    A experiência de William

    A orquestra diabólica

    O garoto que pingava sangue

    As inocentes

    Obscuros desejos

    O quarto de Gabriel

    A mansão da noite eterna

    O mendigo

    Memórias

    Vermelho

    Rua Pandora

    Nós comemos corações de crianças

    O amigo suicida

    Três poemas macabros

    A caixa de Natasha

    Nota do autor

    Sempre que Alfredo olhava para aquele estranho retrato pendurado na parede do corredor da casa de sua avó Judith, ele sentia uma sensação pavorosa e inquietante tomar conta de seu corpo e de sua mente. Ele já tinha pouco mais de treze anos, mas, mesmo assim, sempre que entrava na casa da avó e se deparava com aquele retrato antigo, de negra e lustrosa moldura ovalada e cores apagadas, quase em preto e branco, exibindo um garoto muito pálido que vestia um terno escuro e o encarava constantemente com olhos macabros, Alfredo ficava com a alma desesperada como se fosse uma criancinha longe dos pais que, no quarto escuro, tem de abrir o armário onde se esconde o temível bicho-papão de seus mais terríveis pesadelos. Apesar disso, Alfredo não se exaltava e, com exceção de sua pele, que ficava fria, e de suas pupilas, que perversamente e contra sua vontade buscavam a imagem do retrato a todo o momento e se dilatavam em terror, ele não dava indícios do que sentia ao ver aquele retrato que, para os outros, segundo lhe parecia, era completamente indiferente e banal.

    O medo de Alfredo em relação àquele pequeno retrato era muito diferente de qualquer outro medo que ele já havia experimentado. Quando mais novo, sentia medo de palhaços e corria gritando e chorando para o colo da mãe, sem nem sequer conseguir olhar novamente para a grotesca criatura multicolorida e de nariz vermelho que o apavorava. Com o retrato, porém, o medo era outro. Ele sentia um pavor inexprimível, mas não conseguia deixar de olhar para o estranho garoto pálido que o encarava de dentro da vetusta moldura oval. Na verdade, algo naquela imagem o induzia a olhar para ela, como se nela existisse algum segredo oculto que, apesar de perturbá-lo, atraía seus olhos irresistivelmente para as cores sombrias e funestas que engendravam alguma constante mensagem subliminar. De fato, quando se reunia com a família na sala da casa da avó, imediatamente tentava se sentar no sofá que dava visão à abertura do corredor onde o misterioso retrato se encontrava; e, mesmo com as luzes acesas e com todas as pessoas rindo e conversando alto, ele ainda não conseguia abandonar aquelas sensações ruins e quase paradoxais que o dominavam ao ver o retrato assombroso. Os sons se transformavam, todos, em um único zumbido abafado que era ignorado pelo jovem Alfredo, e as luzes eram esquecidas, de modo que sua visão se concentrava na região sombria do corredor onde, entre a penumbra, o retrato tétrico jazia pendurado.

    As pessoas percebiam que Alfredo não conseguia tirar os olhos do retrato, mas não percebiam seu terror. Achavam que ele apenas o olhava por estar entediado com as conversas dos adultos e que devaneava sobre alguma bobagem, como naturalmente fazem as crianças quando estão cansadas do assunto ou quando esse não lhes interessa. Assim, enquanto seus pais ficavam entretidos em conversas com a avó em um canto mais afastado da sala, apenas sua prima, Giovanna, ocasionalmente notava Alfredo de cabeça baixa e olhos semicerrados, encarando o retrato, ou, ao contrário, inutilmente tentando evitar a imagem no corredor enquanto a olhava pelo canto dos olhos, sempre taciturno, o que não era muito comum em sua personalidade. Mas Giovanna não dava grande importância ao que reparava e, quando não deixava o primo do jeito em que se encontrava, apenas o chamava para brincar na varanda ou ir à cozinha para comer algo. Além disso, Alfredo nunca conseguia falar com ninguém sobre as sensações contraditórias e perturbadoras que se apoderavam de sua mente na sala da casa da avó, de maneira que tudo aquilo ficava pesando dentro dele, fazendo sua cabeça doer, seu coração palpitar mais forte e sua alma reprimir toda para si a inquietação que o assolava.

    Com o passar do tempo, Alfredo foi estranhando o fato de que ninguém nunca comentava sobre aquele retrato que tanto o assombrava. Quem era aquele garoto, afinal de contas? Por que sua avó o deixava ali, à vista de todos, sem nenhum motivo aparente para isso? Por que a imagem era tão esquisita e sem cores, assemelhando-se mais a uma turva pintura gótica de um passado distante e inacessível do que a uma fotografia propriamente dita? Diante de tantas questões, as perguntas permaneciam sem respostas, e a mente de Alfredo, nada tranquila.

    Um dia, enquanto seus pais, tios e avó estavam na cozinha, Alfredo e sua prima Giovanna foram brincar no quarto de visitas da casa, no qual, para se chegar, era necessário passar pelo corredor. Para concluir tão excruciante tarefa, ele abaixou a cabeça e passou em passos rápidos na frente do retrato, evitando olhá-lo para conseguir disfarçar o medo, afinal ele não queria admitir a estranha fobia para a prima, pois não saberia nem ao menos como explicá-la, preferindo, portanto, guardá-la para si mesmo, escondendo-a em seu íntimo o mais seguramente possível. Quando estavam no quarto, no entanto, Alfredo e a prima ficaram conversando e, sem que ele percebesse de que maneira, o assunto da conversa desviou-se para o retrato do corredor.

    – A vovó sempre teve aquele retrato na parede – comentou Giovanna, em tom de circunspecta desconfiança.

    O quarto em que conversavam estava de janelas fechadas, com apenas uma fina fresta aberta, e as luzes estavam apagadas. Apenas a mínima luminosidade da sala que conseguia penetrar pelo corredor chegava ao quarto, deixando-o um pouco sombrio, o que não estava agradando Alfredo de maneira nenhuma. Com aquela conversa, ele estava ficando nervoso e não sabia ao certo o que falar. De cabeça baixa, sem olhar para os lados, balbuciou, com receio:

    – Mas... de quem é aquele retrato?

    Logo após proferir aquelas quase inaudíveis palavras, ele não acreditou ter feito tal pergunta. Metade de seu ser queria desesperadamente saber a resposta, mas a metade habitualmente mais forte tremia de medo ao pensar naquilo. E, ainda assim, as palavras haviam escapado de seus lábios.

    – Ninguém sabe ao certo – respondeu a prima, abaixando a entonação da voz como se fosse dizer algo que não deveria ser dito. – Ninguém fala muito sobre isso. As pessoas evitam conversar sobre ele, por causa da tragédia.

    Alfredo arregalou os olhos para a prima. Naquele ponto da conversa, eles já estavam praticamente sussurrando para se comunicar, como se estivessem trocando algum segredo perigoso. De alguma forma, ambos pressentiam que ninguém poderia ouvir o que estavam dizendo.

    – Parece que aquele menino era parente da vovó, da época em que ela era mais nova – continuou Giovanna, sussurrando ainda mais baixo. – Ouvi dizer que, numa noite, ele estava brincando sozinho perto de alguns cachorros pretos que tinham raiva e eles o atacaram. Eram muito grandes, quase do tamanho de uma ovelha, e eram violentos. Parece que os cachorros estraçalharam todo o rosto do menino com mordidas. Ele morreu depois de algumas horas e só foi achado de madrugada, jogado no frio, com o rosto todo aberto, ao lado de uma poça de sangue. Dizem que, no outro dia, encontraram pedaços de carne na boca dos cachorros e tiveram de matá-los, porque, quando um cachorro come carne humana, ele começa a atacar todas as pessoas que passam na frente dele, para matar e devorar… Aquele retrato no corredor foi pintado um dia antes da morte do menino... Na época, ainda não existiam muitas câmeras fotográficas, por isso eles faziam pinturas.

    Alfredo estava atônito. O quarto parecia ainda mais escuro. Sua prima permanecia séria, não mostrava indícios de estar brincando ou inventando nada naquela história toda. Ele estava com medo e com repulsa. Aquela palavra – estraçalharam – o afetara intimamente, como uma facada na alma. Ele podia ver os cachorros negros devorando o rosto do menino, arrancando pedaços, mastigando a carne... – os cachorros estraçalharam todo o rosto do menino com mordidas, foi o que ela dissera.

    Aquela palavra o afetara de verdade, mais forte do que se tivessem lhe mostrado um vídeo com os cachorros rasgando o rosto do garoto, dilacerando e brutalmente destroçando a face enquanto ele gritava e berrava, no frio da noite deserta, implorando por ajuda sem que ninguém o ouvisse, enquanto o sangue espirrava aos jorros dos ferimentos, com os cachorros latindo, rosnando e mastigando. Mastigando e babando sangue borbulhante. Os pedaços de carne grudando nos caninos afiados e nas grossas gengivas espumantes de raiva, o frio adentrando dolorosamente nos cortes abertos, as mordidas arrancando e mutilando lábios, orelhas e bochechas, a ferocidade canina rasgando o pescoço e cruelmente devorando a carne em grandes pedaços grotescos e molhados... Até sobrarem apenas ossos, sangue e morte.

    Um rosto mutilado afogado em sangue e raivosas babas caninas.

    Estraçalharam.

    Os cachorros estraçalharam todo o rosto do menino com mordidas.

    Alfredo estava imaginando aquela carnificina sem fim, a dor e o sofrimento do garoto sendo devorado vivo, quando seu pai apareceu na porta do quarto e disse:

    – O que estão fazendo aqui? Vão bagunçar o quarto de visitas da vovó. Vamos, levantem-se, estamos indo embora. Vamos dar um beijo na vovó Judith para dar tchau.

    Alfredo levantou-se em um pulo e seu coração disparou, mas, depois, ele se acalmou e seguiu o pai pelo corredor para ir dar o beijo na avó. No caminho, olhou de soslaio para o retrato na parede e um arrepio percorreu-lhe todo o corpo.

    Em casa, Alfredo não conseguia parar de pensar na pavorosa história que sua prima lhe contara no quarto escuro, e um terror sem igual dominava-o por completo. Alguma coisa naquela história toda lhe era estranhamente familiar, como se ele já a conhecesse, como se ele já a houvesse sentido. Como se ele já houvesse vivido aquilo tudo e uma perturbadora memória distante tentasse, como um fantasma, sussurrar algo em seu ouvido para lhe revelar o que significava. Mas sombras negras turvavam-lhe os pensamentos e ele não conseguia compreender o que se passava em sua mente e em seu espírito. No quarto fechado e pouco iluminado, as sensações que o controlavam enquanto involuntariamente remoía a história dos cachorros pareciam-lhe irreais, como se ele estivesse em outro plano de existência, mas, mesmo assim, elas lhe eram medonhamente familiares; insuportavelmente familiares. Tudo se assemelhava a um perturbador déjà vu de uma realidade lúgubre e sinistra em que pesadelos e realidade se mesclavam como sombras trêmulas em um corredor escuro.

    Os dias foram passando e, noite após noite, em seu quarto, Alfredo pensava na história dos cachorros e se lembrava daquela imagem funesta no infausto retrato do corredor. A imagem, assustadora, vinha nítida em sua mente quando fechava os olhos: um garoto, mais ou menos da idade dele, extremamente pálido e com cabelos da cor do mais negro dos breus impecavelmente penteados para o lado, vestindo um terno escuro e encarando quem quer que o olhasse, independentemente de onde o observador estivesse, como uma lutuosa versão amaldiçoada da Monalisa. O rosto do misterioso menino possuía uma incompreensível expressão gótica e fria que não era natural, mas, por trás das leves olheiras que davam a todo o retrato uma impalpável, porém, por isso mesmo, irremediavelmente penetrante atmosfera de depressão e melancolia, as feições daquele garoto assemelhavam-se muito às do próprio Alfredo. De fato, ele percebia que o garoto no retrato se parecia demais com ele mesmo, apesar de não querer ou ao menos conseguir admitir isso para si de maneira articulada e consciente. De forma indireta e mascarando os próprios pensamentos, dizia a si mesmo que aquela semelhança (que ele, contraditoriamente, insistia em não reconhecer) era devida à relação de parentesco que tinha com o menino: ora, se sua avó era parente do garoto, nada mais natural do que entre eles haver algumas semelhanças... Mas a região mais recôndita e profunda da mente de Alfredo via que entre ele e o garoto existia algo a mais do que mera semelhança por laços sanguíneos.

    Dia após dia, mais o pensamento de Alfredo se direcionava para a atmosfera sombria causada pelo retrato. Quando visitava a avó com a família, com mais frequência olhava com sentimentos inomináveis e desesperadores para o retrato, e cada vez mais acreditava que o garoto pálido era muito parecido com ele próprio. Aliás, não demorou muito para ele perceber que, na verdade, o garoto era exatamente igual a ele.

    Aquela revelação súbita (pois, inconscientemente, Alfredo caminhou de maneira muito gradativa para perceber a semelhança absurda que havia entre ele e o garoto) atingiu-o como um raio que inflama terrífica e instantaneamente todos os nervos do corpo em um choque devastador e paralisante. Perceber que o garoto no retrato era a sua imagem levemente distorcida foi como revelar de uma só vez terríveis significados que não podiam ser compreendidos de imediato. Mas aquela percepção fora suficiente para causar o mais irreversível desespero em Alfredo, apesar de ele ainda não saber o que exatamente lhe provocava tamanho medo. Afinal, qual era o problema naquela similaridade? Tudo poderia não passar de mera coincidência, no fim das contas. Mas... Por que ninguém nunca havia observado a semelhança exageradamente evidente que ele notara? Por que é que todos evitavam conversar com ele a respeito do garoto no retrato e pareciam fazer segredo sobre a história da pequena imagem emoldurada no corredor? Estariam escondendo alguma coisa dele? Ele percebia que, entre pequenas fugas disfarçadas e pretensas desculpas que poderiam passar despercebidas, ninguém nunca tocava no assunto na presença dele. Mesmo sua prima havia contado a história do garoto de forma muito segredada e imprecisa...

    Algum segredo sujo estavam escondendo dele, e isso o inquietava profundamente.

    Com o passar dos dias, Alfredo transformou seus pensamentos a respeito do retrato em uma verdadeira monomania. Quando estava perto dele, escrutinava-o com os olhos pormenorizadamente para tentar extrair dele todas as mensagens subliminares que trazia em segredo entre sombras e nuances artificiosas. Quando estava em casa, relembrava o aspecto fúnebre de sua imagem no retrato ovalado e tentava entender o que aquilo significava. Quando saía com o pai e passava na frente de algum terreno baldio perto de sua casa, era com desconfiança e receio que ele olhava para os cachorros de rua que lá viviam. À noite, no quarto, demorava para dormir, pois se lembrava daquele lutuoso rosto acinzentado, macilento, com detestáveis olheiras melancólicas. E não podia ouvir um latido de cão vindo da vizinhança sem que sua pele se arrepiasse e ele se pusesse a tremer incontrolavelmente sob os lençóis. Em seguida, aquele rosto retornava à sua mente com toda a força: o rosto pálido de cadáver. O seu rosto pálido de cadáver.

    E então ele compreendeu.

    A mensagem se tornou tão clara quanto aterradora. Agora, tudo fazia sentido. O garoto no retrato era ele! Ele estava morto! Aquele retrato era dele!

    Alfredo nunca havia pensado muito sobre a vida após a morte, mas conhecia histórias de almas que vagavam no limbo entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos. Ele sabia que espíritos perdidos ficavam presos em um lugar estranho, purgando seus pecados sem saber que haviam morrido, exatamente como estava acontecendo com ele agora. Pois um espírito, quando abandona o antigo corpo, não sabe que morreu, mas vagueia em seu próprio universo para descobrir seu caminho, para conhecer sua situação e seguir a escada para a luz ou a queda para o abismo das trevas. Nunca é fácil para uma alma descobrir que já morreu e aceitar essa realidade, ele sempre ouvira dizer, pois os indícios da morte são sutis e, ainda fragilizada, a alma demora a perceber as dicas que o mundo lhe dá para compreender que já não está mais em seu corpo, que passou para o outro lado.

    Mesmo estando aterrorizado, por dias e dias Alfredo guardou aquela verdade apenas para si. Queria se adaptar à nova realidade antes de conversar com as pessoas para que elas diretamente lhe fizessem a revelação derradeira. Por outro lado, vez ou outra, Alfredo ainda tinha dúvidas de sua morte, o que lhe causava receios e incertezas sem esclarecimentos. Quando caminhava por perto dos cachorros de rua que viviam no terreno baldio dos arredores de sua casa e eles latiam à sua passagem, temia por sua vida, o que não deveria fazer sentido, estando ele morto. Durante as noites, cobria-se inteiramente e, na escuridão do quarto, tremia e suava por horas a fio sem ter a coragem de tirar a cabeça de debaixo do sufocante lençol para olhar o que havia por ali. Ele sentia os fantasmas deslizando pelo quarto, assombrando-o, pairando em impossíveis brumas funéreas do Além que vinham para arrastá-lo. E, em medo irreprimível, preferia suar com calor sob as cobertas a enfrentar o que lhe esperava fora delas.

    Estaria ele realmente morto ou tudo aquilo não passava de ilusão de sua cabeça? Dessa pergunta Alfredo já não mais sabia a resposta. Tudo estava muito confuso em sua mente.

    As imagens dos cachorros estraçalhando o rosto do garoto não saíam de sua cabeça. Pedaços de carne enroscando-se nos dentes ferozes, gritos de dor, rosnados e sangue na escuridão fria. Tudo era mais real do que se ele estivesse vendo a cena na sua frente. A cabeça doía. Alfredo precisava esquecer aquelas imagens horríveis, mas também precisava de uma resposta. Então, sem saber o que fazia, no meio da madrugada insone, levantou-se da cama sem acordar os pais e, impulsionado pela inquietação nervosa que vinha lhe dominando como um espírito maligno que retira a vida do corpo para nele embutir apenas medo e desespero, decidiu sair de casa para descobrir o que sua intuição estava tentanto lhe mostrar com tamanha força angustiante. Enquanto saía de debaixo dos lençóis e deixava o quarto, viu, com o coração gélido como uma enorme pedra de gelo, em carne e osso, o garoto do retrato parado no meio do corredor de sua casa, com sua pele macilenta contrastando com a escuridão e seus olhos de morto o encarando fixa e friamente, arrancando-lhe a alma do corpo e petrificando-lhe os nervos. Alfredo, então, correu para fora e, desamparado no silêncio da madrugada úmida com o acinzentado garoto morto o seguindo em passos lentos que, no entanto, faziam-no permanecer colado às suas costas, gritou, entre lágrimas de desespero:

    Eu não posso estar morto!

    Os cães uivaram à distância.

    Alfredo andou desconcertado pelas ruas escuras e desertas. Correu sem rumo pela vizinhança, tentando deixar para trás o garoto que o perseguia, mas aquelas imagens imundas o acompanhavam, giravam ao seu redor.

    Quando se deu conta, Alfredo já estava na frente de um familiar terreno baldio. Entre o matagal iluminado tão só pela fraca luz de um poste velho e desgastado, cachorros negros destroçavam algo que parecia ser a carcaça de algum animal. Alfredo se aproximou e mal teve tempo de notar que uma espuma branca escorria da boca dos enormes cães. Quando tentou correr, o primeiro pulou nas suas costas e o derrubou. Em poucos segundos, toda a matilha estava se alimentando e descontando sua fúria irracional ao repuxar e se debater com os restos retalhados e mutilados da carne que encontraram naquela madrugada fria.

    Os cachorros estraçalharam todo o rosto do menino com mordidas.

    – Por que essa água queima minha pele, papai? – perguntou o pequeno Natan, com medo.

    João Antônio, o pai de Natan, não sabia a resposta. Mesmo assim, ele deixava transparecer em seu rosto apenas uma indiferença banal, apesar de estar mais abalado e com medo do que o próprio filho.

    – Não sei, filho. Talvez seja porque ela esteja muito quente – disse ele, fingindo dar de ombros, embora estivesse com a pele toda arrepiada e com a cabeça pesada como se nela residisse uma enorme bigorna de chumbo.

    – Mas ela nem morna está, papai. Tente, você, colocar o dedo nela.

    – Deixe disso, Natan – ordenou o pai. – Passe-me essa jarra aqui. Vamos guardá-la.

    – Mas eu estou com medo. Veja o que ela fez comigo – disse o garoto, mostrando ao pai a queimadura que a água havia feito em seu braço esquerdo.

    A queimadura, um círculo negro, roxo e ressecado com algumas lustrosas bolhas avermelhadas, única mácula na pele extremamente branca e macia de Natan, parecia a mórbida marca de uma maldade insana contra a alva pureza de um bondoso querubim dos céus.

    João, no entanto, sabia que aquilo não era o que parecia ser. Ele conhecia o filho que tinha. Até então, ainda nutria algumas dúvidas e esperanças, mas, agora, já tinha certeza. E, com a certeza, todas as esperanças murcharam, morreram.

    Sobraram apenas o medo e a repulsa.

    João pegou a jarra de água com mãos trêmulas e guardou-a no altar em que ela sempre estivera. Sua experiência havia dado certo, mas o resultado, apesar de ser o esperado, não fora o que ele queria.

    Ele se recusava a acreditar, mas já sabia que seria aquele o pavoroso resultado de seu inevitável teste – ele sabia disso desde o momento em que sua mulher morrera ao dar Natan à luz. Ele evitara ao máximo e demorara o quanto fora possível para fazer o teste, mas já sabia que, quando o fizesse, seria aquele o resultado. Apenas não admitia para si mesmo. Caso contrário, o que explicaria os crucifixos invertidos nas paredes, os sons guturais durante as noites e as sombras que corriam sem causa aparente pelos corredores? Se aquela água não queimasse a delicada pele do inocente Natan, o que explicaria os móveis sendo arrastados sozinhos pela casa, as pegadas trifurcadas no carpete da sala e as luzes infernais que, misturando-se à inexplicável névoa quente que saía pela fresta da porta, ofuscavam seus olhos e impediam-no de dormir?

    – Papai, minha queimadura está começando a doer. Passe um remédio nela para mim, por favor – pediu Natan, com suplicantes olhos infantis.

    – Já vou, meu filho, já vou. Vou buscar o remédio no quarto.

    – Mas não me deixe sozinho aqui. Estou com medo. Por que essas imagens ficam me encarando? Elas são más, não são, papai?

    João Antônio olhou para os santos sobre a escrivaninha e seu sangue, agora gelado, ficou mais fino dentro das veias. Pela primeira vez, aquelas imagens angelicais que só lhe traziam paz e conforto estavam lhe transmitindo angústia e desespero. Em terror, ele não soube o que pensar. Sua mente estava confusa; então, respondeu o que Natan queria ouvir.

    – Sim, filho. Elas são, sim. Vamos tirá-las daí um dia desses. Agora, espere aqui um pouco; vou no quarto pegar o remédio para você. Não precisa ter medo.

    João foi quase cambaleando para o quarto, fechou a porta com força, acendeu as luzes e atirou-se na cama, sentindo-se desesperado e impotente. Estava sem chão, aterrorizado, amedrontado e trêmulo. Precisava ficar sozinho.

    Natan ficou na sala, encarando as imagens dos santos e anjos que o ameaçavam.

    João escutou alguns barulhos inquietantes, mas permaneceu deitado, com os olhos fechados, tentando colocar a mente no lugar. Depois de muito tempo, um tempo cuja duração ele não conseguia mensurar, ouviu um estrondo e um doloroso grito extremamente agudo vindo da sala. Saiu da cama em um salto instintivo e correu para onde o filho estava, enquanto ouvia sons de louça sendo quebrada. Na sala, ao lado do pequeno altar com as imagens de santos, Natan estava gritando ensurdecedoramente, com as mãos apertadas sobre as bochechas e as unhas cravando-se na carne macia. Seu rosto, delicado e infantil, agora vermelho e úmido, parecia deformado e nodoso, como se fosse explodir. Seu grito estridente e incessante como o de uma bruxa fazia parecer que a casa estava prestes a ruir. João acreditou ter visto um dos vidros da porta se estilhaçar, mas não sabia direito o que via, pois sua cabeça doía e ele não conseguia pensar em nada. Seus ouvidos sangravam. No altar, as imagens dos santos estavam todas disformes e quebradas, cobertas por alguma negrejante pasta oleosa. A jarra com a água que ele usara para fazer o teste com o filho estava quebrada, e o líquido que havia dentro dela caíra no corpo de Natan, fazendo a pele do menino borbulhar e emanar vapores cáusticos.

    João correu instintivamente para proteger o filho. Colocou as mãos sobre a boca do garoto para abafar o grito de horror e arrastou-o para longe do altar. Enquanto o arrastava, pôde perceber que o crucifixo na parede estava de cabeça para baixo e que as velas estavam derretendo de uma forma incomum, tornando-se uma repulsiva pasta podre e viscosa. O pão sobre a mesa transformara-se em uma asquerosa massa embolorada e fétida. As janelas batiam de modo violento num abrir e fechar desvairado. O garoto se esperneava nos braços do pai e continuava gritando de maneira medonha, com o rosto contorcido e inchado.

    A pele de Natan estava insuportavelmente quente e se descolava do corpo com o toque, grudando como cera derretida na roupa do pai. João levou-o ao quarto e tentou acalmá-lo, mas, nesse momento, os chifres já estavam visíveis. O pai, então, saiu do quarto e trancou a porta, deixando-o gritar e vomitar as substâncias satânicas que saíam em jorros negros de sua boca metamórfica. Sem saber direito o que fazia, limpou o chão dos estilhaços das imagens de santos e passou um pano na água benta que havia se esparramado por todo o altar quando a jarra fora quebrada – a mesma água benta que havia queimado a pele de Natan.

    João ligou para o padre Roberto e suplicou para que ele viesse à sua casa. Desligou o telefone e, perturbado, esperou. O medo

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