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Páginas de um Assassinato
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E-book288 páginas4 horas

Páginas de um Assassinato

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Sobre este e-book

Os cadernos encontrados no fundo daquele armário contavam a história da família que ele não conheceu e João Lucas se lançou prazerosamente na leitura. Porém, o que parecia apenas uma crônica do cotidiano, se revelou uma história cheia de mistérios. Previsões e crimes do passado ecoam no presente de João e o levam empreender uma jornada que pode mudar radicalmente sua vida. Ou a sua morte.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento30 de nov. de 2022
ISBN9786599442421
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    Páginas de um Assassinato - Agda Theisen

    CAPÍTULO I

    — Sete e quarenta e cinco! Droga!

    Parou um instante em frente à porta para retomar o fôlego e olhou sua figura no vidro espelhado. Estava descabelado, com rosto vermelho e o suor escorrendo pela testa.

    Arrumou-se como pôde, assumiu o ar de superioridade costumeiro e entrou.

    Dentro da sala, o auxiliar da direção resistia bravamente e não deixava os alunos se dispersarem. O barulho que eles faziam, entretanto, era ensurdecedor. Não era para menos, quarenta adolescentes confinados numa sala há mais de quinze minutos esperando o professor!

    Ele se postou na frente da turma, agradeceu e dispensou o funcionário e não disse mais uma palavra. Aos poucos, os alunos notaram sua presença e foram sentando, calados, esperando um sermão sobre maturidade e disciplina.

    Nada de sermão. João pediu desculpas pelo atraso e, sem perder mais tempo, passou a discorrer sobre os acontecimentos que culminariam na Segunda Guerra Mundial. Falou quase ininterruptamente até o final da aula.

    Quando se viu sozinho, suspirou, desanimado.

    — Já que tenho que fazer, que seja logo! — E deixou a escola, apressado.

    Estacionou próximo à Santa Casa de Misericórdia e o curto percurso a pé lhe deu tempo para pensar em como procederia. Procurou pela assistente social.

    — Sou João Lucas Carvalho, parente de Ana Amélia Filgueiras. Falamos pelo telefone, hoje cedo.

    — Sente-se, por favor. O senhor precisa assinar estes papéis para podermos liberar o corpo.

    Ele cuidou de tudo. Contratou a funerária e ligou para o síndico do prédio onde Amélia residia há anos. Ele se encarregaria de avisar os vizinhos, caso alguém desejasse comparecer ao sepultamento. O velório seria curto, o enterro estava marcado para cinco da tarde.

    Entrou na capela do cemitério por volta das duas horas. A funerária foi eficiente. Estava tudo como deveria ser, muitas flores, velas, ambiente frio. João se aproximou lentamente do caixão, veria Amélia pela primeira vez.

    O ar sereno da mulher o impressionou, na realidade, transmitiu-lhe simpatia. Ele parou de se queixar por não haver outra pessoa que pudesse tratar do enterro, afinal, não havia sido tão difícil assim.

    Sentou-se numa cadeira próxima e ficou recordando o que sua mãe contara sobre a prima. As duas tinham idades próximas e haviam sido muito unidas na infância. Amélia morrera só. Filha única, não casara nem tivera filhos.

    — Irônico — sussurrou, como se Amélia pudesse escutá-lo —, retornei ao Brasil há oito anos e nunca quis conhecê-la e, agora, precisamente, sou o único aqui. Não leve a mal, mamãe estaria aqui também, se pudesse.

    Ele se sentiu ridículo dando explicações à morta, mas dizer tudo aquilo a quem? Devia estar rezando, pensou sem muita convicção.

    Inquieto, andou pela sala, verificou cada detalhe. Sentou-se novamente.

    As horas se arrastaram, alguns amigos compareceram, outros enviaram flores. Aparentemente, Amélia era bastante querida.

    Finalmente, chegou o padre. Depois de um rápido serviço religioso, a prima foi enterrada no jazigo da família, onde já estavam os restos mortais de três gerações da família Filgueiras.

    Missão cumprida, sentia-se mais leve. Chegou em casa, pegou uma cerveja e foi sentar na pequena sacada do apartamento. Aos poucos, o álcool baniu os resquícios de tensão deixados pelo dia difícil. Seus pensamentos tomaram rumos mais agradáveis, como o encontro que teria com Hilda no dia seguinte. Ficou imaginando como seria. A princípio, iriam discutir apenas assuntos de trabalho, já que a colega assumiria algumas turmas do ensino médio e queria trocar ideias com alguém mais experiente nessas classes. Foi João quem sugeriu saírem para beber alguma coisa enquanto conversavam, e ela aceitou.

    Ainda pensava nisso quando se levantou para atender o telefone.

    — Oi, mãe, já ia te ligar. Foi, foi tudo como você queria. Sim, o jazigo estava todo em ordem. Fica tranquila, eu cuidei de tudo.

    Conversaram um pouco mais. Falar de Amélia deixou-o com uma sensação incômoda. Na verdade, ele admitiu, estava triste por ignorá-la tanto tempo. Resolveu tomar um banho, ver um pouco de TV e dormir cedo. Queria estar bem descansado no dia seguinte, pois prometia muitas emoções. Estas, porém, seriam boas.

    Entrou na sala de aula sorridente, a perspectiva de sair com Hilda deixava-o alegre. Perguntou como iam todos, se tinham visto o jogão da final do campeonato. Tanta simpatia causou até estranheza. Mesmo desconfiados, os alunos do terceiro ano trataram de aproveitar a aula, que, apesar do temperamento do professor, era sempre brilhante.

    No meio da manhã, ele foi procurar o advogado de Amélia. Toda a herança deveria ser destinada à caridade, particularmente a uma instituição que ela já ajudava. Tudo certo com a lei, restava ir até a casa dela. O apartamento ficava num prédio antigo, na Av. Angélica. Procurou pelo síndico.

    — Infelizmente, não pude ir ao cemitério. Como foi que aconteceu? — O senhor de idade parecia abalado.

    — Ela se sentiu mal na rua e a levaram para o hospital mais próximo. Sofreu um infarto e não resistiu, é tudo o que eu sei.

    — Nunca pensei que ela tivesse algum problema de saúde, ela era tão ativa, tão…

    O homem se deixou ficar por alguns instantes nas próprias recordações, emocionado. João mirou o chão, um pouco constrangido. Depois, como para explicar sua aparente frieza diante do caso, confessou:

    — Eu não a conhecia, na verdade. Minha mãe, que não mora aqui no Brasil, mas sempre manteve contato com ela, também não tinha conhecimento de que ela tivesse qualquer doença.

    — Entendo. E o que posso fazer por você?

    — Eu preciso trazer um chaveiro, pois as chaves do apartamento não estavam com ela. Acho que, na confusão, se perderam.

    — Não será necessário, tenho uma cópia — tirou a chave do bolso. — Amélia sempre me pedia para molhar suas plantas quando viajava — sorriu.

    — O senhor conhece alguém que possa embalar os pertences dela para a mudança?

    — Isso é fácil. Tem o Zé Mário da manutenção. É de confiança e está sempre disposto a um trabalho extra. Vou ver onde ele está e peço para te procurar lá em cima.

    Assim que entrou no apartamento, João sentiu algo estranho, como se estivesse atrasado. Olhou o relógio, ainda era cedo. Esquecera de algo? Não. Deixou para lá. Devia estar impressionado por estar na casa de uma pessoa morta.

    Percorreu os cômodos aconchegantes, muitos livros, souvenires de diversos lugares sobre os móveis, fotografias em que Amélia parecia estar sempre de bem com a vida, só ou acompanhada. Recolheu algumas, imaginou que sua mãe gostaria de guardá-las. Voltou à sala e sentou na poltrona entre a janela e a estante de livros. Um lugar perfeito para uma xícara de café e um bom livro, concluiu; e, a julgar pelas envelhecidas manchas redondas sobre a mesinha ao lado, era isso mesmo que Amélia fazia. Sorriu.

    De repente, uma sombra enorme obstruiu a luz que entrava pela porta aberta e o assustou.

    — Eu sou o Zé Mário, seu Jonas disse que você queria falar comigo.

    — Entra — suspirou, aliviado — faz tempo que você trabalha aqui?

    — Faz uns doze anos.

    — Perfeito. Você, por acaso, sabe que abrigo, orfanato ou alguma coisa assim Amélia ajudava, parece que até ensinava as crianças?

    — Ah, sei, várias vezes dona Amélia me pediu para levar encomendas lá. Eram livros que conseguia como doação, ela estava montando uma biblioteca para a garotada. Eu levava quando saía daqui, mas não aceitava pagamento, afinal, era caridade, né?

    João concordou com a cabeça.

    — E onde fica?

    — Lá no Bexiga. Chama Lar São Francisco.

    — Certo, você já me resolveu um problema. Também preciso de alguém para encaixotar as coisas do apartamento…

    Assim que terminou de fazer os acertos sobre o trabalho, voltou apressado para a escola, ainda tinha as aulas da tarde para dar. No fim do dia, estava exausto, mas a expectativa do encontro, logo mais, o animava.

    Às oito em ponto estava no local combinado. Ouvia as sugestões do garçom quando Hilda chegou. Para seu desapontamento, acompanhada de uma amiga.

    — Essa é Greta, formamos juntas na faculdade. Ela está chegando de um curso de aperfeiçoamento na Itália e está cheia de novidades. Achei que você adoraria conhecê-la!

    Ele se resignou, exibiu seu sorriso mais simpático, ajudou-as com as cadeiras e pediu mais cardápios ao garçom. Apesar do imprevisto, gostou da noite. Viu-se genuinamente discutindo formas de abordagens pedagógicas, motivação de alunos e viagens educativas. Depois, conversaram descontraidamente até quase a madrugada.

    — Nossa, como é tarde! — Hilda conferiu o celular.

    — Até parece que você nunca chegou numa aula sem dormir, e dormiu bem na frente do professor! Roncou, se quer saber! — Provocou a amiga.

    — Mentira — riu — tempos de faculdade, minha amiga, agora é outra história!

    João deteve-se para apreciar o belo rosto da colega, sua risada espontânea, seu jeito seguro e natural de se expressar. Ela retribuiu um olhar direto, e ele, sacudindo a cabeça para disfarçar, espantou os pensamentos que a visão evocava e propôs a saideira.

    Acordou com a cabeça estourando.

    — Bendita gincana — comemorou aliviado pelo evento que envolvia todas as classes do último ano e o dispensava de ir à escola pela manhã. Só bem mais tarde conseguiu se levantar.

    Aproveitou o tempo livre para procurar o telefone do orfanato. Conversou com o diretor, Padre Osório, e o colocou a par da morte de Amélia e da disposição de sua mãe, como herdeira, de doar tudo o que foi dela para a instituição. Combinaram que João passaria lá para acertarem os detalhes e, diante da insistência do religioso, conhecer as crianças.

    Na escola, à tarde, encontrou-se com Hilda.

    — Como você está? Eu acordei péssima!

    — Estou só com um pouco de sono — mentiu João, ainda pálido.

    — Pois eu fiquei com a maior ressaca, mas, de qualquer forma, foi divertido, não? A Greta adorou você!

    — Podemos repetir a dose qualquer dia des…

    — Claro, mas agora preciso ir, estou em cima da hora!

    Ela saiu rapidamente, deixando-o ainda com a boca aberta. Desde que ela havia começado a trabalhar na escola, ele esperava uma oportunidade de aproximação, mas ela se mantinha muito reservada. E ainda agora, que conversavam um pouco mais, deixava bem claro que o via apenas como um colega. Mal-humorado, resolveu ir logo para casa, dormir cedo e esquecer sua musa por algumas horas.

    No outro dia, foi novamente ao apartamento de Amélia.

    — Aconteceu uma coisa muito estranha ontem — contou Zé Mário, enquanto subiam.

    João arregalou os olhos, esperando algum relato sobrenatural. Dizia não acreditar, mas histórias de fantasma sempre o impressionavam.

    — Eu estava no apartamento arrumando as coisas e, de repente, ouvi o barulho de chave na porta, e um homem entrou. Eu sou fortinho, por isso acho que ele se assustou quando me viu e saiu correndo para o lado das escadas. Saí atrás, mas quando cheguei lá embaixo, ele já tinha desaparecido. A nossa câmara está com defeito, justo ontem não gravou. O síndico chamou a polícia, eles olharam o prédio todo e não acharam ninguém. Ele devia estar com as chaves sumidas…

    João meneou a cabeça, pensava no susto do sujeito. Zé Mario era bem mais do que fortinho, estava mais para um lutador peso pesado, riu.

    Entraram no apartamento.

    — Que belo trabalho você já fez!

    — Eu separei umas coisas que encontrei no fundo do armário, acho que não servem para nada. É um monte de cadernos escritos a caneta mesmo, velhos, com as páginas amareladas, umas rasgadas. Talvez seja melhor jogar fora. Vem ver.

    Era uma caixa grande com vários cadernos antigos. João pegou um e olhou. Era um diário. Olhou outros, todos pareciam diários. Como Amélia gostava de escrever, pensou.

    Observando mais atentamente, viu pelas datas assinaladas que os cadernos não podiam ser dela. Procurou o nome do autor. Vasco Filgueiras.

    Tentou lembrar de quem se tratava, mas não conseguiu. Mesmo assim, sentiu-se atraído por eles. Resolveu levá-los para casa e ver com mais calma se serviam ou não para alguma coisa. No domingo, ele os examinaria, planejou.

    CAPÍTULO II

    Sentou-se comodamente no sofá para iniciar a leitura do primeiro volume dos diários. Na véspera, ele os organizara em ordem cronológica e arrumara um lugar para eles na estante.

    Vasco havia começado a escrever muito jovem, o primeiro relato datava de quando ele completava quinze anos. João ainda tinha em mente as palavras de sua mãe, Ivone, sobre o autor dos cadernos.

    Ele era meu tio, pai de Amélia, um médico muito conceituado que, depois de se envolver num escândalo policial, abandonou a carreira e passou a viver recluso dentro de casa. Sua mulher não suportou o exílio social e as dificuldades financeiras em que a família mergulhou, a partir de então, abandonou o marido e a filha.

    Ivone não sabia acrescentar muito mais à história do tio. Ela lembrou que o assunto era um tabu na família, não se falava do que acontecera com ele. Sabia apenas que seu avô se decepcionara tanto com o filho que se recusara a encontrá-lo durante toda a vida, voltando a vê-lo somente no seu enterro.

    — E ele vivia como, digo, com que dinheiro?

    — Ele tinha um ou dois imóveis, que lhe rendia alguma coisa em aluguéis. Claro que o padrão de vida da família caiu muito. Continuaram a morar na casa que tinham, mas os empregados foram dispensados. Aos poucos, a casa foi ficando com aspecto abandonado, com o mato crescendo pelo jardim e a pintura descolando das paredes.

    Minha mãe e minha avó quiseram levar Amélia para criá-la, segundo elas, de forma mais decente. Meu tio, então, perguntou se ela queria ir. Diante da resposta negativa, ele não permitiu que se tocasse no assunto novamente. Mais tarde, Amélia cursou a faculdade de letras e ensinou até poucos anos atrás, quando se aposentou e passou a se dedicar à filantropia.

    — Você e Amélia foram muito próximas na infância, não?

    — Muito! Mesmo depois que nos mudamos para a Argentina, eu mantive contato com ela. Quando você decidiu voltar para São Paulo, eu não lhe falei que procurasse minha prima? Que poderia ficar na casa dela até se instalar, e você nem quis escutar, dizendo que não ia morar com uma prima idosa?

    — Foi mesmo. Que idiota eu fui! Uma pena! — Suspirou — Acho que teria gostado dela.

    — Com certeza! Amélia teve uma educação pouco convencional, imagine crescer num casarão enorme, cheio de livros, com a liberdade de fazer o que quisesse, já que meu tio não restringia nada à filha. Muitas vezes, suas ideias e atitudes causavam espanto, para dizer o mínimo. Uma vez, passando o dia lá em casa, ela afirmou que jamais se casaria. Minha mãe, com ar condescendente, falou que no dia em que ela se apaixonasse, iria querer se casar. Sabe o que Amélia respondeu?

    Se me apaixonar, terei amantes, mas jamais terei um marido para mandar em mim. Mamãe, que era muito severa, ficou chocada, principalmente porque Amélia só tinha dezesseis anos. E eu, que gostava de copiá-la em tudo, logo gritei eu também. Acabei de castigo!

    João sentia cada vez mais simpatia pela prima.

    — Ela foi feliz, mãe?

    — Posso afirmar que foi, filho. Formou-se no que quis e estava sempre engajada nas causas em que acreditava. Namorou por muito tempo um intelectual, professor também. Depois deste, houve outro, um psiquiatra me parece, mas não sei o porquê, terminaram. Acho que ela era independente demais para dividir sua vida com alguém…

    Voltou a atenção ao caderno aberto na sua frente e leu na primeira página:

    Vasco Filgueiras, São Paulo, 02 de janeiro de 1928.

    Hoje completei quinze anos. Ganhei do meu pai um relógio à prova d’água. Quem iria imaginar uma invenção dessas?! De minha mãe, ganhei este caderno com capa de couro, que agora escrevo. Disse-me ela que é para anotar meus compromissos na nova escola. Papai sempre diz que sou sua grande esperança de ter um doutor na família. Quer que eu me dedique exclusivamente aos estudos e deixe o serviço das lojas para ele.

    Papai não quer que eu siga seus passos, pois teve infância dura e quase não estudou. Meu avô tirou-o da escola assim que ele aprendeu a ler e escrever e a fazer as quatro operações, para ajudá-lo na pequena lavoura que arrendavam. Tenho orgulho dele, não se conformou em ser um pobre agricultor e foi seguir seu destino. Foi ajudante de cocheiro, entregador de leite e vendedor de jornal. Com o primeiro dinheiro que conseguiu juntar comprou uns poucos tecidos e alguns enfeites baratos e foi vendê-los de casa em casa e pelas praças e feiras. Com sua conversa simpática e seu sorriso cativante, logo vendeu tudo e fez freguesia. Não demorou muito, montou sua própria lojinha. Depois dessa, foi uma maior e depois da maior, foi outra. Quando casou com mamãe, já estava com a vida ganha.

    Vasco seguia narrando a sua festa de aniversário. Como comerciantes bem-sucedidos, tinham uma boa casa a qual se encheu de convidados naquele dia.

    João imaginava as cenas descritas no diário como se estivesse vendo um filme antigo. Os dias seguintes foram preenchidos com relatos sobre a nova escola, os colegas e sobre Larissa, sua vizinha de frente, por quem se dizia apaixonado, embora não tivesse tido, ainda, a chance de se declarar.

    O menino escrevia sistematicamente e era minucioso ao descrever os acontecimentos. João começou a folhear mais rapidamente as páginas, lendo trechos intercalados. Parou no último mês daquele ano, Vasco comentava a catástrofe do hidroavião Santos Dumont que havia decolado para recepcionar o inventor quando ele chegava ao Brasil, de navio, vindo da Europa. Por um erro, o avião perdeu sustentação e caiu no mar, matando quatorze passageiros. Mais adiante, falava de amor. Otimista, contava que Larissa e sua família viriam à festa de fim de ano que sua mãe estava preparando. Que chance, finalmente!

    João riu. O romance do garoto lembrava sua situação com Hilda, há meses ele tentava se aproximar e ainda continuava só na vontade. Retornou à leitura, e só percebeu quanto tempo havia se passado quando seu estômago começou a doer de fome. Olhou o relógio.

    — Duas, já? — Colocou o diário na estante. — Fique aí.

    Melhor sair logo, riu de si mesmo, e falar com gente de verdade!

    Passou na casa do amigo e o encontrou ainda dormindo.

    — Isso é que é vida boa, hein? — Brincou ao ver a cara amassada de Celso ao abrir a porta.

    —Vida boa?! Estou quebrado, desde quarta-feira acordo cedo e durmo tarde. Comecei a ensinar na Escola de Música e neste primeiro mês só consegui alunos da manhã.

    — E que tal dar aulas para crianças?

    — Eles têm interesse, são esforçados. Eu fui me candidatar a professor porque precisava ganhar mais dinheiro, e o horário das aulas permitia continuar ensaiando com a banda, mas estou realmente gostando.

    — Descobriu sua vocação — brincou.

    — Você sabe que meu sonho é tocar nos Estados Unidos, mas reconheço que ensinar é legal. E você, como vai com os seus alunos?

    — Bem, são barulhentos e me exigem bastante, mas quando vejo como eles amadurecem na análise dos fatos, como crescem ao longo do ano, me sinto recompensado.

    — No seu caso, esse negócio de vocação é sério!

    — Eu realmente gosto do que faço, mas, mudando de assunto, e a Miriam?

    — Acabou.

    — Mesmo?

    — De verdade, ela, definitivamente, não me quer mais. Eu entendo, até. É difícil namorar músico que vive na noite. A gente não fazia mais programas juntos, porque eu nunca tinha tempo. Estávamos nos encontrando pouco, eu não comparecia a nenhum dos encontros de família, e você sabe como ela é ligada nessas coisas.

    — Você não me parece muito abalado.

    — Engano seu, estou triste, afinal foram dois anos. E você — preferiu mudar de assunto — como foi sua noite com a Hilda?

    — Nem me fale! Ela levou uma amiga, falamos quase só de trabalho, e eu fiquei com uma ressaca de matar!

    — Que noitada, hein? Bem-vindo ao clube dos infelizes.

    — Que ideia ótima!

    — Do clube?! É só uma forma de falar.

    — É a desculpa perfeita para sair com ela de novo, eu falo que tenho um amigo que está sofrendo muito, que foi largado pela namorada…

    — Largado?!

    — Não é verdade?

    — É, mas não precisa colocar as coisas nesses termos.

    — Eu preciso que ela fique com pena de você.

    — Hum.

    — Conto sua história triste e digo que estou muito preocupado, porque você anda deprimido, bebendo muito.

    — Bebendo?!

    — Sim, parece mais grave. Sugiro sairmos os quatro, eu, você, Hilda e Greta, a amiga. Falo que elas são muito divertidas, que têm uma conversa alegre e tal, e que isso com certeza vai animá-lo. O que você acha?

    — Genial!! Acho que ela deve te achar um idiota, mas se você quiser tentar — deu de ombros.

    Chegou em casa ainda pensando em seu plano. Deparou-se com os diários, ali na estante, esperando para serem lidos. Tomou um banho, comeu um sanduíche e pegou o próximo volume para ler antes de dormir. Era 1929.

    Agora, Vasco reproduzia em seu diário as

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