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Direito Internacional: Teoria dos Fatores Dinâmicos de Legitimidade
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Direito Internacional: Teoria dos Fatores Dinâmicos de Legitimidade
E-book482 páginas6 horas

Direito Internacional: Teoria dos Fatores Dinâmicos de Legitimidade

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Sobre este e-book

Afinal, por que Estados cumprem normas de direito internacional? Quais fatores atraem sujeitos de direito em direção ao cumprimento de normas internacionais? A resposta clássica da dogmática internacionalista, em torno do fundamento da obrigação, sustenta que o "pacta sunt servanda" é uma abstração teórica que procura resumir os elementos político-jurídicos da legitimidade de normas internacionais; legitimidade essa reconhecida e assentada na existência de Estados. Neste livro, Felipe Kern Moreira desenvolve uma teoria sobre fatores dinâmicos de legitimidade do Direito Internacional. Segundo essa contribuição, o princípio do que é comumente entendido como "cumprimento de boa-fé daquilo que foi pactuado" consiste em um elemento de legitimidade estático. A fragmentação do direito internacional e as interdependências normativas constituem os elementos dinâmicos de legitimidade.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento13 de mai. de 2019
ISBN9788547319830
Direito Internacional: Teoria dos Fatores Dinâmicos de Legitimidade

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    Direito Internacional - Felipe Kern Moreira

    Editora Appris Ltda.

    1ª Edição - Copyright© 2019 dos autores

    Direitos de Edição Reservados à Editora Appris Ltda.

    Nenhuma parte desta obra poderá ser utilizada indevidamente, sem estar de acordo com a Lei nº 9.610/98.

    Se incorreções forem encontradas, serão de exclusiva responsabilidade de seus organizadores.

    Foi feito o Depósito Legal na Fundação Biblioteca Nacional, de acordo com as Leis nºs 10.994, de 14/12/2004 e 12.192, de 14/01/2010.

    COMITÊ CIENTÍFICO DA COLEÇÃO SOCIOLOGIA DO DIREITO

    Este livro é dedicado ao Heitor José Silva Moreira.

    PREFÁCIO

    LEGITIMIDADE: EXPECTATIVA E EXPERIÊNCIA

    Felipe Kern Moreira explora, em cuidadosa análise de uma sólida tradição da teoria do direito, o fundamento oferecido por Hans Kelsen para sustentar a razoabilidade da expectativa internacional quanto à validade das normas pactuadas pelos agentes políticos mediante a legitimidade possível (ou necessária) de suas ações e decisões.

    Não raro, percebe-se que a experiência coligida na cena internacional leva a constatar que o pragmatismo da defesa incondicional do interesse próprio (inclusive o nacional) choca-se com a expectativa da normatização que assuma como horizonte de referência o valor maior do bem comum, para além da realidade empírica da geopolítica, das hegemonias, das rivalidades, das concorrências, dos confrontos, dos conflitos.

    De certa maneira, pode-se imaginar como utópica essa esperança. Esperanças, no entanto, são intrinsecamente utópicas, ao almejar realizar amanhã o que a realidade de hoje deixou de fazer ou fez de modo incompleto, de maneira insuficiente, de forma viciada. A perspectiva histórica permite entender como, a cada hoje imperfeito, corresponde a esperança idealizada de um amanhã perfeito – malgrado o reconhecimento de que a cada tempo frustrações e expectativas se sucedem e entremeiam.

    Mesmo se cada tempo rege os atos que nele se praticam, a inércia dos pactos não basta para satisfazer a angustiante expectativa de que o quadro jurídico – já que a existência de um tal quadro parece ser por sua vez uma premissa ampla, se não universalmente aceita – assegure meios e garantias de que decisões sejam tomadas e ações feitas de forma legítima, vale dizer: de feitio a atender substantivamente a todos e a cada um.

    Tal expectativa é de cunho eminentemente moral. Mesmo que Kelsen discordasse. Encontra-se nela uma concepção (ao menos presumida) de que todo ser humano apenas reconhece legitimidade em decisão ou ação se, e somente se, corresponder a valores maiores pensados como essenciais à natureza humana. A legitimidade do aparato normativo decorreria de tal legitimidade originária. Assim argumenta Jürgen Habermas, em 1987, ao abordar a questão da legitimidade mediante legalidade¹: um problema decisivo na teoria kelseniana e na interpretação de Felipe Kern Moreira.

    A racionalidade dos fins entretece-se com a política, a moral e o direito. A história das relações internacionais modernas, em particular desde os tratados de Vestfália, deixa claro o quanto conhecer, reconhecer e gerir essa tessitura tornou-se estratégico para o cenário mundial. É certo que os paradigmas jurídicos elaborados para enquadrar o ‘mundo’ pretendem, na lógica da teoria pura do direito, enraizar-se em um a priori universal relativo à precedência de uma consciência coletiva da norma como instituidora da sociedade e do Estado. A prevalência da perspectiva jurídica na normatização das relações entre os Estados e dos campos de interação internacional ou supranacional distingue o pensamento de Kelsen e representa um ponto nodal na sistematização do direito. Sua hipervalorização da autonomia do campo jurídico como fonte de si mesmo e como autossuficiente para sustentar a segurança jurídica é compreensível no contexto da primeira metade do século XX e na fase da Guerra Fria. Em tempos conturbados, sob o influxo da injustiça e do desrespeito às mais comezinhas das normas, a defesa da intocabilidade dos princípios pactuados e das regras deles decorrentes parecia impor-se como uma salvaguarda incontornável.

    A discussão levada a cabo por Felipe Kern Moreira tem presente tal pano de fundo, convidando a refletir criticamente sobre as teorias que se apresentem como únicas, insubstituíveis, necessárias. A legitimidade individual, social, política, econômica, jurídica, sistêmica enfim, carece de criteriosa análise histórica, que coloque em perspectiva o feixe de fatores em cujo entrecruzamento faz sentido falar-se de eficácia normativa. Legitimidade, pois, não é uma qualidade metafísica da natureza humana, tampouco a consequência automática da força política de mandantes, nem mesmo decorrência automática da mera existência de códices e das ações que os efetivam. Nem uma autopoiese sistêmica nem uma metafísica do poder seriam suficientes, entre outras carências, para amparar um quadro legal eficaz no sistema internacional de decisão e ação.

    A leitura deste livro permitirá concordar com a conclusão do autor, que normas são conectadas à vontade humana, que a norma fundamental da teoria pura do direito é inaplicável enquanto fundamento único de legitimidade do direito internacional, as relações internacionais [...] observadas em qualquer época da história [demonstram estar] o conteúdo último da norma fundamental [...] inalterado[,] e este conteúdo é o eixo de definição do conceito de legitimidade.

    Tal ‘conteúdo último’ carrega em si um forte laivo kantiano, de caráter formalista, de imperativo categórico abstrato, em constante conflito com a concretude do aparato normativo positivo vigente a cada tempo.

    Felipe Kern Moreira convida o leitor a debater e a criticar o que manifestamente é um paradoxo no pensamento de um dos grandes patronos da teoria do direito no século XX.

    Estevão C. de Rezende Martins

    Professor titular de Teoria da História e de História Contemporânea

    Universidade de Brasília

    Sumário

    INTRODUÇÃO

    1

    DIREITO E LEGITIMIDADE NA SOCIEDADE INTERNACIONAL

    1.1 A QUESTÃO DA LEGITIMIDADE NO DIREITO INTERNACIONAL

    1.1.1 Legitimidade no pensamento de José Guilherme Merquior

    1.1.2 Legitimidade enquanto ‘propriedade da norma’ em Thomas M. Franck

    1.1.3 Legitimidade em Carl Schmitt: status quo e flexibilização da legalidade

    1.1.4 Legitimidade enquanto consenso em Jürgen Habermas

    1.1.5 Legitimidade enquanto consenso em Norberto Bobbio

    1.2 LEGITIMIDADE E PRINCÍPIOS DO DIREITO INTERNACIONAL

    1.2.1 Os princípios gerais do direito aplicados ao direito internacional

    1.2.2 Princípios e legitimidade no direito internacional

    1.3 LEGITIMIDADE E FONTES DO DIREITO INTERNACIONAL

    2

    A CONSTRUÇÃO TEÓRICA DO CONCEITO DE LEGITIMIDADE NO DIREITO INTERNACIONAL

    2.1 DIREITO INTERNACIONAL: narrativas históricas e ideias jurídicas

    2.2 O DIREITO INTERNACIONAL NA ANTIGUIDADE

    2.3 O DIREITO INTERNACIONAL NA IDADE MÉDIA

    2.4 O DIREITO INTERNACIONAL NA IDADE MODERNA

    2.5 O DIREITO INTERNACIONAL NA CONTEMPORANEIDADE

    3

    A RESPOSTA DA TEORIA PURA DO DIREITO DE HANS KELSEN À QUESTÃO DA LEGITIMIDADE

    3.1 HANS KELSEN: breves referências biográficas e teóricas

    3.1.1 O pensamento filosófico de Immanuel Kant

    3.1.2 Os círculos intelectuais de Viena

    3.2 A NORMA FUNDAMENTAL INTERNACIONAL

    3.2.1 A norma fundamental no positivismo jurídico kelseniano anterior à primeira versão da Teoria Pura do Direito de 1934: pressupostos teóricos

    3.2.2 A norma fundamental internacional após a primeira versão da Teoria Pura do Direito de 1934

    3.3 A RESPOSTA DA TEORIA PURA DO DIREITO DE HANS KELSEN À QUESTÃO DA LEGITIMIDADE

    3.3.1 O conceito de legitimidade na teoria pura do direito

    3.3.2 A norma fundamental enquanto resposta à questão da legitimidade

    4

    FRAGMENTAÇÃO E INTERDEPENDÊNCIA COMO FATORES DINÂMICOS DE LEGITIMIDADE DO DIREITO INTERNACIONAL

    4.1 DOIS ESTUDOS DE CASO RELATIVOS À LEGITIMIDADE DE NORMAS INTERNACIONAIS

    4.1.1 A criação da Unidade de Inteligência Financeira no Brasil

    4.1.1.1 Análise do caso

    4.1.2 A tutela da Floresta de Iwokrama, na República Cooperativa da Guiana

    4.1.2.1 Análise do caso

    4.2 LEGITIMIDADE ESTÁTICA E DINÂMICA

    4.2.1 Legitimidade estática e a norma fundamental da teoria pura do direito

    4.2.2 Sistema estático e dinâmico de normas na teoria pura do direito

    4.3 FRAGMENTAÇÃO E INTERDEPENDÊNCIA ENQUANTO FATORES DINÂMICOS DE LEGITIMIDADE DO DIREITO INTERNACIONAL

    4.3.1 Fragmentação no direito internacional

    4.3.1.1 Fragmentação segundo o decisionismo de Carl Schmitt

    4.3.1.2 Fragmentação segundo o pluralismo jurídico

    4.3.2 Interdependência no direito internacional

    4.3.2.1 Interdependência normativa

    4.3.2.2 Interdependência normativa e decisões em direito internacional

    4.4 RITORNELO

    CONSIDERAÇÕES FINAIS

    REFERÊNCIAS

    INTRODUÇÃO

    A presente contribuição consiste na proposta de uma teoria sobre a legitimidade no direito internacional. A obra é organizada em quatro partes: 1. Direito e legitimidade na sociedade internacional; 2. A construção teórica do conceito de legitimidade no direito internacional; 3. A resposta da teoria pura do direito de Hans Kelsen à questão da legitimidade; e 4. Fragmentação e interdependência como fatores dinâmicos de legitimidade do direito internacional.

    O propósito do primeiro capítulo é propor um conjunto de referências teóricas para o conceito de legitimidade no direito internacional. Não é objetivo deste capítulo chegar a um conceito acabado e definitivo do que seja legitimidade no direito internacional, pois diferentes conceitos de normas internacionais possuem consequências para a forma como essas normas são legitimadas, no contexto dos discursos teóricos. Também não é objetivo do primeiro capítulo fazer uma ampla varredura em conceitos de legitimidade oferecidos pelas teorias jurídicas, tendo em vista a quantidade e complexidade de teorias às quais se teria que fazer referência para cumprir com esse objetivo.

    O conceito de legitimidade localiza-se na intersecção entre o campo da política e o do direito. Procura-se tratar o tema da legitimidade o tanto quanto possível dentro do campo jurídico. Isso significa que existem dois recortes: tratar o tema da legitimidade com ênfase no campo jurídico e, então, concentrar o raciocínio no plano do direito internacional. Em virtude desses recortes, a segunda parte do primeiro capítulo dedica-se à relação entre legitimidade e os princípios e fontes de direito internacional.

    O propósito do segundo capítulo é traçar breves referências historiográficas do direito internacional, a partir de reflexões acerca da conformação entre semântica teórica e práxis jurídica. Longe de impor-se o objetivo de escrever um tratado historiográfico, a linearidade argumentativa centra-se nos fatores de legitimidade a partir do conjunto de ferramentas teóricas propostas no primeiro capítulo.

    O terceiro capítulo tem por objetivo tratar da resposta da teoria pura do direito de Hans Kelsen à questão da legitimidade no direito internacional contemporâneo. Para atender a tal propósito, desenvolve uma descrição detalhada da elaboração teórica da norma fundamental na teoria pura do direito, de forma a acrescentar argumentos à hipótese de que a norma fundamental é inaplicável enquanto fator legitimador único de normas no plano internacional. A inaplicabilidade a que este trabalho faz referência diz respeito ao esgotamento e à falibilidade que o conceito de norma fundamental possui para explicar e descrever a legitimidade de normas internacionais. São retomadas considerações dos dois capítulos anteriores: resgata-se o debate sobre as referências teóricas ao tema da legitimidade e sobre a relação dinâmica entre a teoria e a práxis do direito internacional. Pode-se dizer que os dois primeiros capítulos adquirem significado neste livro na medida em que permitem compreender os argumentos do terceiro capítulo, no sentido de um esgotamento teórico-explicativo da norma fundamental, enquanto fator legitimador único de normas jurídicas internacionais.

    O quarto capítulo propõe que os fenômenos denominados fragmentação e interdependência são fatores dinâmicos de legitimidade do direito internacional. A norma fundamental é reconhecida como fator estático ao que não responde integralmente por uma explicação acerca da legitimidade do direito internacional. A fragmentação do direito internacional e a crescente interdependência normativa são fatores que podem ajustar a hipótese do positivismo kelseniano para teorizar o direito internacional.

    O final do quarto capítulo cuida de dois casos para exemplificar a inaplicabilidade da norma fundamental enquanto fator único de legitimidade de normas internacionais: o caso da criação da unidade de inteligência financeira no Brasil e o da tutela da Floresta de Iwokrama, na República Cooperativa da Guiana. A referência a casos concretos é uma forma de escapar do discurso puramente abstrato e teórico. De toda forma, os casos não foram escolhidos para se ajustarem ao modelo teórico desenvolvido, relativo à legitimidade estática e dinâmica, no sentido de uma profecia autocumprida. Também não foram escolhidos para testar ou provar uma hipótese. Entre inúmeros casos que poderiam ser mencionados para contextualizar os argumentos teóricos, entende-se que os sugeridos são ricos em elementos de análise e refletem tendências no direito internacional.

    A teoria jurídica é tão mais eficiente na medida em que mais bem consegue descrever, explicar, compreender e responder a problemas concretos da sociedade. As ideias expostas neste livro são resultantes da preocupação com a distância entre argumentos teóricos e práxis jurídica. O fundamento (de legitimidade) do direito internacional, a atração gravitacional em direção ao cumprimento de normas internacionais e a geração de comportamento de sujeitos de direito internacional não se restringem à justificativa teórica do voluntarismo jurídico ou à abstração de uma norma hipotética, conforme o sugerido por Hans Kelsen.

    A teoria das normas de Hans Kelsen e, particularmente, o papel da norma fundamental nesse sistema teórico não constituem um paradigma científico inconteste no pensamento jurídico internacionalista. O propósito desta obra não é invalidar ou desconstituir a teoria de Hans Kelsen, senão, reconhecendo-lhe o valor científico, propor que possa ser aprimorada.

    Acerca das versões bibliográficas utilizadas neste livro, certas obras de Hans Kelsen, como a segunda edição de Hauptprobleme der Staasrechtslehre, de 1923, a primeira edição da Reine Rechtslehre e a edição francesa, sob a alcunha de Théorie Pure du Droit, não foram editadas em língua portuguesa no Brasil, pelo menos essas traduções não chegaram a constituir fontes deste livro. De qualquer forma, procura-se citar as versões na língua original, seja o alemão, inglês ou francês, quando se entende que a referência à versão original pode ajudar na compreensão do argumento. Essa opção ocorre não somente com as obras de Hans Kelsen. No caso específico das obras somente acessíveis em língua alemã, procura-se colocar o texto original nas notas de rodapé. Já no caso de obras traduzidas para o português, cujos exemplos mais evidentes são a Teoria Pura do Direito, de 1961, e a Teoria Geral do Direito e do Estado, de 1945, entende-se que a utilização e a citação das versões traduzidas não comprometem o rigor científico. Em outros casos específicos, os textos disponíveis encontravam-se disponíveis somente em língua espanhola, como é o caso das últimas conferências de Kelsen publicadas em 1942, sob o título de Derecho y Paz en las Relaciones Internacionales, e uma curiosa versão da Teoria Pura do Direito, publicada somente em língua espanhola, como Introdución a la Teoría Pura del Derecho – e, embora coincidente na data, diversa da tradução da segunda edição de 1961.

    A primeira versão das ideias contidas neste livro foi publicada em 2013, no artigo Norma Fundamental enquanto Fundamento de Legitimidade do Direito Internacional: notas acerca da limitação teórico-explicativa da teoria das normas de Hans Kelsen, no livro organizado por Eugênio Garcia Flores, sob o título Globalización y Derecho Internacional en la Primera Década del Siglo XXI, publicado pela Universidad Nacional Autónoma de México. Devo registrar a honra pelo convite feito, em 2008, por este destacado jurista mexicano, o qual veio a falecer no mesmo ano do lançamento dessa coletânea. Em 2011, publicou-se o artigo We are only in it for the money: o caso da tutela da floresta de Iwokrama na República da Guiana, no periódico Textos & Debates, do Centro de Ciências Humanas da Universidade Federal de Roraima, sobre um dos casos analisados no quarto capítulo deste livro. Em 2012, foi publicado, na Revista Direito GV, o artigo A Legitimidade de Normas de Direito Internacional: um diálogo com Thomas Franck e, no mesmo ano, publicou-se o livro Direito e Legitimidade na Sociedade Internacional, pela Editora da Universidade Federal de Roraima, obra esta que contempla parte do primeiro capítulo da versão original do presente livro. Em 2014, o autor foi convidado a contribuir com a então nascente Revista de Direito Cosmopolita, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, o que resultou no artigo A Legitimidade de Normas Internacionais na Teoria Pura do Direito, que é constituído basicamente da segunda parte do terceiro capítulo deste livro. Finalmente, o artigo Legitimidade Estática e Dinâmica de Normas Internacionais, foi publicado em 2014, em um livro organizado pelo Prof. Dr. Wagner Menezes, editado pela Arraes, que foi a forma de apresentar uma síntese da teoria proposta neste livro a meus colegas da Academia Brasileira de Direito Internacional.

    Devo registrar ainda algumas notas de cunho mais pessoal. Iniciei minha formação em nível de pós-graduação (mestrado e doutorado) no Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília, após concluir o curso de bacharelado em Direito na Universidade Federal do Rio Grande. A decisão por esse itinerário deve-se à convicção, a qual ainda sustento, de que para se compreender e explicar direito internacional é necessária uma formação sólida em política e história das relações internacionais.

    Após um período de experiência e maturidade profissional, parece ser difícil definir a ubiquidade inequívoca – se é que isso seja possível – de minhas pesquisas nos campos científicos do direito e das relações internacionais. Destarte, não estranharia se um jurista classificasse este livro como uma obra no campo das relações internacionais ou se – mutatis mutandis – um internacionalista entendesse que se cuida de uma pesquisa na área do direito internacional.

    Em 2006, o Prof. Estevão C. de Rezende Martins, no autógrafo que fez para mim em seu livro Relações Internacionais: cultura e poder (Brasília, Ibri, 2002), escreveu: Ao talentoso e promissor Felipe, com o incentivo amigo do Estevão. Para mim, não há medida para o impulso e a responsabilidade dessa generosa mensagem, a qual traduz – de minha parte – o período de grande aprendizado sob a orientação deste que é um dos homens mais eruditos que conheci. Este livro é um eco concreto dessa confiança depositada, a qual muito me distingue. Somado a isso, em 2008, em Frankfurt am Main, em uma das reuniões de orientação com Gunther Teubner, eu o consultava sobre suas contribuições teóricas, para utilizá-las em minhas pesquisas. Para minha surpresa, o Prof. Teubner sugeriu: Felipe, não reproduza minhas teorias, desenvolva a sua teoria. Esse insight foi emancipador e propulsou-me a desenvolver reflexões com autonomia, disciplina e criatividade.

    Este livro cuida da proposta teórica que desenvolvi sobre fatores dinâmicos de legitimidade do direito internacional. Naturalmente, enfrentei a autocrítica de pretender caracterizar minhas reflexões como ‘teoria’ e publicar um livro sobre temas tão amplos e complexos em um campo científico caracterizado pelo predomínio do prestígio de intelectuais anglo-saxões e europeus. Por essas razões, quero expressar minha gratidão a todos que apostaram na potencialidade de minha contribuição teórica, instituições e indivíduos, colegas e alunos(as), em especial, ao incentivo dos professores Estevão Chaves de Rezende Martins e Gunther Teubner.

    Felipe Kern Moreira

    Balneário Cassino-RS, primavera de 2017

    1

    DIREITO E LEGITIMIDADE NA SOCIEDADE INTERNACIONAL

    Este primeiro capítulo tem por objetivo propor um conjunto de referências teóricas para o conceito de legitimidade no direito internacional. Para cumprir esse objetivo, entende-se que a pesquisa não deve ser limitada ao campo de estudo das teorias jurídicas, e sim procurar estabelecer diálogos científicos harmônicos com o campo da filosofia, das teorias políticas e da história. Não se pretende chegar a um conceito definitivo de legitimidade o qual poderia servir de referência instrumental ao longo deste texto, mas compor um quadro de referências teóricas.

    O método exige a clareza na determinação dos conceitos. Ocorre que o conceito de legitimidade é utilizado em diferentes acepções em diferentes campos do conhecimento e encontra variantes conceituais mesmo dentro de campos específicos, conforme é observado nas ciências jurídicas. Disso se conclui que a formulação de um quadro de referências teóricas sobre o conceito de legitimidade possui pelo menos duas exigências: interdisciplinaridade e conhecimento do conceito de norma em diferentes teorias jurídicas.

    A exigência de interdisciplinaridade decorre do fato de legitimidade não ser um conceito puramente jurídico e tão menos um conceito exclusivo da política. Isso sugere que o conceito de legitimidade encontra-se numa certa intersecção entre campos do conhecimento dentre os quais se destacam a Filosofia, o Direito, a Ciência Política es Relações Internacionais. Friederich Kratochwil descreve, a partir sua experiência de pesquisador, que, se por um lado o diálogo interdisciplinar amplia o debate e torna o objeto de estudo mais ‘conhecido/compreendido’, por outro a intersecção entre diferentes campos possui o perigo de os resultados de pesquisa não satisfazerem aos especialistas. De qualquer forma, a possibilidade de

    cooperação parece ser mais viável para quem assume a identidade de um ‘insider’ tanto do campo político quanto do jurídico².

    A norma jurídica possui acepções particulares em diferentes sistemas teóricos legais, e essas acepções possuem consequências imediatas para questões sobre legitimidade. Pode-se dizer que a questão da legitimidade é a causa eficiente de um sistema jurídico no plano da práxis e a justificação discursiva no plano teórico. Por isso, é necessário percorrer diversos sistemas teóricos, não restritos ao campo jurídico, para a montagem do quadro de referências sobre a questão da legitimidade.

    Quando se fala de diferentes campos do conhecimento, também se pode falar em usos da linguagem de forma particular. Esse tipo de aproximação indica que, para se dominar um campo do conhecimento, é necessário o domínio de uma sintaxe e de um vocabulário próprio. Determinadas áreas do conhecimento assumem tal sofisticação conceitual que há quem argumente que ciência é linguagem³.

    Algum conceito que possua certo significado dentro de determinado sistema teórico noutro pode não deter esse mesmo significado⁴. Isso é resultado não somente de um vocabulário próprio no campo científico, mas também de um sistema de significações que caracteriza as sociedades num contexto comunicativo⁵. Ao optar-se por uma conceituação instrumental única de legitimidade, correr-se-ia o risco de esta assumir significado semântico específico dentro de determinados sistemas de pensamento – esse também é um argumento a favor da montagem de um quadro de referências teóricas, o que não impede a análise crítica de que determinados conceitos são mais adequados do que outros.

    A diferença entre campos do conhecimento ou mesmo entre teorias enquanto sistemas discursivos conduz este trabalho a tecer considerações sobre a autonomia de campos científicos, em particular da ciência jurídica. A autonomia de determinado campo é caracterizada pela apropriação de elementos próprios que o distingue de outros campos concorrentes. Esse tipo de identidade científica contribui para a adoção de um vocabulário próprio e um conjunto de conceitos que permitem a comunicabilidade entre cientistas. A nitidez, a univocidade e a objetividade desses conceitos determinam a eficiência da comunicação.

    Além da importância dos conceitos, do vocabulário e da semântica, no campo das teorias jurídicas também o argumento ocupa uma posição de destaque, em particular enquanto conceito da teoria da argumentação jurídica, levada a efeito a partir das reflexões seminais de Robert Alexy. O conceito central da teoria da argumentação jurídica é o que o argumento é o átomo que junto a outros átomos formam moléculas complexas (argumentações). A partir da análise do fundamento de decisões de direito é possível uma reconstrução da argumentação em termos de quais fundamentos são relevantes e quais são irrelevantes. Por isso, pode a teoria da argumentação jurídica ser compreendida como uma disciplina analítico-descritiva. Este é mais um exemplo de que no campo científico e, em particular, no campo jurídico, os conceitos básicos e a montagem argumentativa destes conferem significação ao sistema teórico como um todo. Esses elementos conceituais e argumentativos possuem particular importância para a questão da legitimidade ou legitimação de normas dentro de um sistema teórico específico⁶.

    Nos parágrafos posteriores, adota-se a divisão em torno de temas que permitem compreender o que é legitimidade no campo do direito internacional. Para cumprir tal objetivo, o primeiro capítulo se subdivide em três tópicos, a saber: 1.1. A questão da legitimidade no direito internacional; 1.2. Legitimidade e princípios do direito internacional; e 1.3. Legitimidade e fontes do direito internacional.

    1.1 A QUESTÃO DA LEGITIMIDADE NO DIREITO INTERNACIONAL

    À tentativa de conceituar o que é legitimidade no direito internacional podem ser aplicadas as palavras de Agostinho de Hipona em relação à definição de tempo: […] se ninguém me perguntar, eu sei; se o quiser explicar a quem me fizer a pergunta, já não sei⁷. Não poucas vezes, diz-se que tal norma ou decisão é (ou não) legítima, e isso é percebido como uma pista. Norma é ou não legítima em função de algo. Legitimidade é um dedo que aponta para algo, e aqui se está mais preocupado com o dedo do que com o algo. Com efeito, talvez, legitimidade seja uma palavra da qual muito se faz uso e pouco se sabe com precisão, e isso talvez ocorra porque ela remete a um conjunto de significações e valores utilizados em larga escala no vocabulário jurídico e político.

    Em 1918 Max Weber propôs sistematizações sobre o tema legitimidade que mais tarde foram reunidos na obra Economia e Sociedade. Weber escreveu sobre fenômenos sociais como um todo e buscava compreender interpretativamente a ação social e assim explicá-la causalmente em seu curso e em seus efeitos⁸. O conceito de legitimidade para Weber diz respeito tanto às convenções sociais como ao sistema jurídico o que iria ser caracterizado, neste último caso, pela probabilidade de coação⁹. Contudo a coação não será o fundamento da legitimidade, apesar de ser sua função forçar a observação de determinada ordem ou castigar por sua violação. Ainda, segundo Weber, a garantia da legitimidade dirá respeito no campo do direito – que difere do campo da afetividade ou religiosidade – à crença na vigência de valores supremos e obrigatórios relativos à moral e à estética, por exemplo; relacionados então ao elemento racional de garantia da legitimidade.

    Weber defined legitimacy in empirical terms as ‘belief in legitimacy’. Where political subjects recognize rule as legitimate, he argued, it can be considered legitimate. In keeping with his commitment to value-free social science, Weber did not consider some foundations of legitimacy superior to others. His approach to legitimacy as an empirical, not a normative, matter informed much subsequent research.¹⁰

    Max Weber estava mais concentrado na questão da legitimidade da autoridade do que especificadamente na legitimidade sob o viés jurídico. Weyma Lübbe aplicou as categorias de Max Weber sobre a questão da legitimidade às sistematizações teóricas de três autores: Hans Kelsen, Jürgen Habermas e Niklas Luhmann, buscando avaliar em que medida a legitimidade fortalece a legalidade¹¹. De qualquer forma o conceito de legitimidade para Lübbe possui no plano jurídico uma relação decisiva com o conceito de validade. Validade de uma ordem no sentido jurídico seria a capacidade da validade de fortalecer as normas positivas. No sentido sociológico a validade fortalece a influência sobre as atividades sociais. No sentido filosófico a validade fortalece a fundamentação ou o fundamento de justificação. É difícil dissociar legitimidade de legalidade, já que o conceito de validade jurídica é, nesse contexto, central¹².

    A questão da legitimidade sob a perspectiva jurídica surge como um elemento teórico concomitante ao próprio nascimento do direito internacional. O nascimento dos Estados nacionais e a existência do direito internacional são um processo único de reconhecimento mútuo de personalidades jurídicas que possuem a consciência de pertencimento a uma comunidade. Esse raciocínio basilar da dogmática jurídica internacionalista aponta para um paradoxo; dois dos elementos mais evidentes do direito internacional ao mesmo tempo podem ser os mais controversos: o reconhecimento de Estados e o caráter obrigatório do direito internacional. Sobre este tópico, a divergência entre os doutrinadores é evidente. De um lado, há quem afirme que: States are subjected to law from the moment, and from the moment only, at which they acquire the marks of a State, ou seja, A State is, and becomes, an International Person through recognition only and exclusively; posição essa defendida por Triepel, Le Normand, Liszt, Lawrence, Wheaton, Anzilotti, Kelsen, Redslob, Lauterpacht¹³. Outros seguem o argumento que le existence de l’État souverain est indépendante de sa reconaissance par les autres états. Cette reconnaissance est la constatation du fait accompli, et c’en est aussi l’approbation, posição defendida, entre, outros por Vattel, Westlake, Moore, Brierly, Williams, Lorimer e Scelle¹⁴. De qualquer forma é difícil imaginar que uma entidade formal (Estado) detenha plena personalidade legal ainda que seus direitos não tenham ainda sido exercidos até que seja reconhecida por outras entidades.

    Teorias sobre o reconhecimento de Estados estão na base do que se pode compreender como a consciência da obrigatoriedade do direito internacional. É nesse capítulo sobre o reconhecimento de Estados que surge historicamente, pela primeira vez, o termo legitimidade aplicado à teoria do direito internacional. A doutrina da legitimidade sustenta que:

    ‘[...] every government that comes to power in a country depends for its legality, not upon mere de facto possession, but upon its compliance with the established legal order of that country.’ Such doctrine had been consistently held by early writers, including Grotius, and it was not until Vattel that the contrary doctrine of de facto was stablished.¹⁵

    Os Estados nacionais modernos europeus que surgem a partir da fragmentação do Sacro Império Carolíngio fundamentam-se no status absoluto de monarcas, os quais governam e mantêm-se no poder a partir do princípio da legitimidade dinástica. O princípio adquire robustez nas formulações argumentativas no plano jurídico com as revoluções republicanas na Europa que causaram o protesto por parte das famílias reais relativo ao não reconhecimento dos governos revolucionários¹⁶. Esse princípio é retomado por inúmeros autores, entre eles Hans Kelsen¹⁷ e Carl Schmitt¹⁸, no contexto jurídico, para explicar as rupturas constitucionais levadas a efeito por revoluções. A norma fundamental de Hans Kelsen e o reconhecimento da primazia do direito internacional sobre o nacional possuem nessa inquietação jurídica sua mais autêntica motivação¹⁹.

    Na prática do direito internacional o princípio da legitimidade não ficou confinado à aplicação do reconhecimento de Estado e governo. Também foi aplicado para o reconhecimento de regimes separatistas que reuniam povos contra soberanos. Esse princípio foi aplicado pela Grã-Bretanha contra a Espanha e Portugal e formou um grande obstáculo no reconhecimento britânico dos Estados latino-americanos²⁰.

    A consolidação e a força do movimento constitucionalista no início do século XX trouxeram mudanças na forma de avaliar a legitimidade de um poder posto, ou seja, do reconhecimento da legalidade de um status quo mesmo que tenha sido resultante da ruptura com a antiga ordem constitucional. Essa ideia obteve ressonância na América, e, em 1907, o ministro de Relações Exteriores do Equador propôs a doutrina que um poder que surja por meios extraconstitucionais não deveria ser reconhecido, ideia esta que delineou o tratado celebrado entre Costa Rica, Guatemala, Honduras, Nicarágua e El Salvador. Apesar de os EUA não serem Estado-partes, este país ofereceu pleno apoio político à ideia²¹. Nesse caso, a forma constitucional é o pré-requisito de legitimidade de um novo governo como legítimo.

    Ti-Chiang Chen defende que, de qualquer forma, o terror levado a efeito na Revolução Francesa e as recorrentes ebulições políticas na América latina levam a crer que a legitimidade, seja dinástica ou constitucional, deve ter como justificativa o desencorajamento de revoluções e do uso da violência, em contraste com o processo legal ordenado²². Aponta que ainda hoje o princípio da legitimidade é defendido no plano do direito internacional, tomando como exemplo o caso Hyde, o qual argumenta que governos não populares estão sujeitos a ter vida curta e, nesse caso, poderia a comunidade internacional ao menos ter verificado a desordem interna a retardar o reconhecimento e dar suporte moral à oposição²³.

    O princípio da legitimidade na perspectiva do reconhecimento de Estados possui, segundo Ti-Chiang Chen, pelo menos três objeções. A primeira é que um dos princípios elementares do direito internacional é o direito de escolher suas próprias regras, livre de interferência interna. A segunda é que, em nenhuma circunstância, um governo deve ser mudado, porque Estados entendem que a mudança é ilegal ou inconstitucional. Neste argumento acrescenta que nenhum governo sobre a Terra, com a duvidosa exceção do Japão, não tenha vindo de uma linhagem rompida na legitimidade governamental. A terceira é que a doutrina da legitimidade foi utilizada não poucas vezes para barganha política, e essas circunstâncias podem se tornar uma arma poderosa na mão de Estados ambiciosos²⁴. Interessante que a contribuição de Ti-Chiang Chen tenha sido concluída como um manuscrito em 1947 na Universidade de Oxford, sob a orientação de J. L. Brierly²⁵, e que Chen não tenha visto o livro publicado, em 1951, em virtude de ter sido obrigado a retornar à China para assumir o posto de professor assistente na Tsing Hua University, em Peking. A República Popular da China, pelo menos até a década de 70, enfrentaria o impasse na comunidade internacional quanto ao reconhecimento de governo legítimo.

    O reconhecimento de Estados no período posterior à Segunda Guerra tornou-se um tema de primeira ordem na agenda internacional. A criação do Estado de Israel, a Guerra das duas Coreias, a Revolução Chinesa e os movimentos independentistas contra o colonialismo tardio na África demonstram o quanto o tema da legitimidade pode oscilar entre o poder e a norma. As lições de direito internacional mostram que a legitimidade pode ser uma solução para o eventual conflito entre o exercício de poder e a continuidade da ordem jurídica, normalmente entendida como continuidade da ordem constitucional. Essa aproximação do conceito de legitimidade, a partir da dogmática jurídica, faz ver que o conceito, sob a ótica da argumentação jurídica, possui dois sentidos opostos na práxis do direito internacional contemporâneo: um poder

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