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A Promessa
A Promessa
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E-book468 páginas6 horas

A Promessa

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Sobre este e-book

Ela estava morta. Ela quase podia garanti-lo porque ela não sentia nada. A sua cara estava arranhada e dilacerada, e as suas mãos e pés tinham inchado devido ao frio e aos cortes e há falta de comida, mas ela não conseguia senti-los. Continue! A neve cobria os seus joelhos. Neve verdadeira. Não branca, mas azul. Devia tê-la congelado, mas ela não o sentia. Não olhe para trás. Não ouvia os outros. Provavelmente também estariam mortos.

À distância, ela ouvia os soldados invadindo a mata, os seus cães ladravam excitados pela perseguição, e, provavelmente ela estaria viva pois o seu coração começou a palpitar. Mas ela não o sentia. Minutos antes ela tinha estado a correr, ofegante e aterrorizada, dispersando-se como os outros, coelhos assustados pressentindo o agricultor. Mas agora ela simplesmente andava, porque ela estava sem fôlego e ela não sabia onde estava nem para aonde ia. Apenas sabia que ela tinha de continuar. Continue.

E ela paralisou ao ouvir o som agudo de um tiro disparado por uma arma de fogo, olhou à sua volta tentando avaliar a sua trajetória. Teria sido disparada à sua retaguarda ou defronte? Qualquer que fosse a direção que ela olhasse, as árvores esqueléticas acenava os mesmos dedos esqueléticos nesse sentido. E um terrível pensamento percorreu a sua mente. E se ela estivesse indo ao encontro dos soldados em vez de fugir?

Ela girou. Em todas as direções havia pegadas. Seriam dela? Houve outro disparo. Perto mas ainda assim estranhamente evasivo. Para onde deveria ir? Se ao menos Piotr estivesse aqui. Ele saberia o que fazer. Ela assentiu vagamente para si mesma. E nesse momento um pensamento assolou a sua mente. Seria algo que ela teria feito. Algo terrível. Mas, não. Ela não conseguia pensar nisso naquele momento. Pelo menos não naquele ambiente confuso e naquela neve fria, branca e azul. Não. Ela queria que ele estivesse ali com ela. Queria que ele segurasse-lhe a mão, e lhe dissesse o que devia fazer. Se ao menos ele aparecesse agora, nem que fosse em espírito, pelo menos mais uma vez, para lhe mostrar o que ela tinha de fazer.

IdiomaPortuguês
Data de lançamento14 de mai. de 2019
ISBN9781547571178
A Promessa

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    A Promessa - Lesley Affrossman

    Índice

    Índice

    A Promessa

    Dedicatória

    Capítulo 1

    Capítulo 2

    Capítulo 3

    Capítulo 4

    Capítulo 5

    Capítulo 6

    Capítulo 7

    Capítulo 8

    Capítulo 9

    Capítulo 10

    Capítulo 11

    Capítulo 12

    Capítulo 13

    Capítulo 14

    Capítulo 15

    Capítulo 16

    Capítulo 17

    Capítulo 18

    Capítulo 19

    Capítulo 20

    Capítulo 21

    Capítulo 22

    Capítulo 23

    Capítulo 24

    Capítulo 25

    Capítulo 26

    Capítulo 27

    Capítulo 28

    Capítulo 29

    Capítulo 30

    Capítulo 31

    Capítulo 32

    Capítulo 33

    Capítulo 34

    Capítulo 35

    Capítulo 36

    Capítulo 37

    Livros da mesma autora:

    Para a minha mãe, a qual

    Disse que eu seria

    e

    Para Jim (Urso) Campbell, o qual

    Disse que eu devia

    E

    Tom Campbell por ser um bom amigo

    E eu acredito nisto: que a mente livre, exploradora do ser humano individual é o bem mais precioso deste mundo. E por isso eu lutaria: pela liberdade de expressão, a qual deve seguir qualquer direção desejada, sem direção.

    John Steinbeck, A Leste do Paraíso

    Capítulo 1

    Como é que sabemos que estamos mortos?

    A voz soou tão inesperada e urgente ao ouvido de Mags que tudo o que podia fazer para não enfrentar o seu pequeno interrogador, era olhar de relance. Em vez disso, ela pousou a caneta, e olhando diretamente para a parede oposta, respondeu, Eu não sei. Simplesmente sabe.

    Mas têm de haver uma maneira? Talvez seja quando não há mais pele? Ou quando os seus dedos caem? Ou talvez quando os seus olhos explodem?

    Não. Não é nada disso.

    Então como é?

    Continuando a olhar para a parede, Mags engoliu em seco mais uma vez, depois respondeu cuidadosamente. Só sabemos, quando chegamos ao latíbulo."

    Por um momento prevaleceu o silêncio, e ela quase poderia ter acreditado que ele tinha saído do quarto, quando ele perguntou, Como é?

    "Como é?

    O Latíbulo.

    Mags suspirou. O que é que você quer denotar, como é o quê?

    Qual é a sua cor?

    Outro enigma. Mags pegou o seu lápis e arrastou-o até o topo da página do seu livro de exercícios. Deixando um rasto fino e disperso de tinta, como se fosse o desenho de um céu pintado por uma criança.

    Azul, Respondeu ela por fim. O Latíbulo é azul. Tal como o céu ou o mar."

    O mar não é azul. É cinzento

    Apenas quando chove.

    Bem, é tão azul como o céu, quando o sol brilha. Tal como é nos países quentes.

    "É azul como o teu anel?

    Como as safiras? Sim, esse tipo de azul.

    Enquanto respondia a estas perguntas, Mags manteve a sua cabeça inclinada sobre a pilha desordenada de livros e papéis que ela tinha estado a estudar antes da chegada de Daniel no quarto. Ela estava escrevendo um ensaio, o qual tinha de ser entregue até a hora do almoço e o tempo estava a esgotar. Relanceou-o com um semblante suplicante. Só mais uma página, e então falámos. Está bem? Só mais uma.

    Ele apenas encolheu os ombros o que poderia ser considerado como, um sim, e ele continuou a estudar. No dos lados da antiga mesa, a qual ela sempre se referia como a minha secretária, estava um pisa-papéis elaborado com uma caixa de ovos pintada, o qual lhe tinha sido oferecido por Daniel no Natal passado, os seus óculos suplentes, um cinzeiro a abarrotar, quatro chávenas meio cheias de café expresso frio. O resto da mesa estava coberto com os apontamentos das aulas, livros da biblioteca com as bordas das páginas dobradas, bolas de papel amassadas, assimilando inequivocamente os dejetos de uma voraz, quase neo literária, besta. Perto dos seus pés, jazia um pacote embrulhado em papel castanho. Ela sabia o que continha, mas de vez em quando, empurrava-o curiosamente com o dedo do pé, como um pequeno animal farejando o seu território.

    Ela trabalhava, iluminada apenas por uma lâmpada ofuscadora, amarela sombria brilhante, enquanto o resto do quarto encontrava-se encoberto pela luz acinzentada, entrelaçando-se numa teia com a luz matinal. Mags preferia assim. As sombras escondiam-se nas estreitas esquinas, com as quais formavam um padrão irregular de manchas húmidas que estavam inadvertidamente ocultas atrás de impressões baratas. Criando a ilusão de espaço. E além disso, poupava na eletricidade, se queimasse apenas uma lâmpada.

    Através da janela, entrava o som da rua desperta que se espreguiçava. As vozes das crianças elevavam-se, desagradáveis como o fumo, sobrepondo-se ao som fraco do trânsito.

    Ele empurrou-me.

    Não, ele não empurrou.

    Sim ele empurrou.

    Mags massajou uma têmpora com o seu dedo indicador. Por uns momentos. Mas era inútil. O barulho da sua bola contra o muro da parede, bum, bum, bum, apenas tinha começado. Ela sabia que eles estariam ali o dia todo chutando a bola, outra e outra vez, como uma máquina irracional, até dar cabo dos seus nervos e perder a cabeça. Eu não devia queixar-me, censurando-se. Pelo menos, eles não nos podem atingir aqui. No mês passado, pelo menos três vezes, ela tinha passado pelas janelas estilhaçadas dos seus vizinhos. Tinham chamado a polícia. Mas nada foi feito e eles continuavam a vir.

    Esse era o motivo pelo qual Mags escolhia trabalhar durante as horas crepusculares da manhã, quando tudo estava silencioso. Mesmo nas noites em Daniel mal dormia, o amanhecer encontrava-o sucumbido a um sono agitado. O seu momento era a manhã, quando ela podia olhar para além do padrão húmido nas paredes e através dos caixilhos das janelas que retiniam quando os carros passavam. Um momento, em que podia vislumbrar um mundo novo. Escondida entre as capas cheias de mofo dos seus livros, este mundo realmente não existia para Mags, mas ela gostava de espreitar, como se ao fazê-lo, ela estivesse algum tabo que não tivesse sido escrito. Ela lera.

    A Liberdade é única e exclusivamente liberdade para aqueles que pensam de maneira diferente.

    Era um sentimento que ela apreciava, a excitação de quebrar o molde de que ela tinha sido moldada.

    O Latíbulo é frio?

    A pergunta apanhou-a desprevenida e ela teve de esforçar-se para não olhar para cima. Não. Não, porque é que haveria de ser?

    Eu penso que deve ser azul, como o gelo.

    Não. O Latíbulo é um azul encantador, quente. Ela virou a página do seu livro escolar com grande convicção. Tal como aquelas flores, que encontrámos no parque no verão.

    Como é que elas se chamavam?

    Não-me-esqueças.

    Eu sabia isso.

    Ela leu outra vez. A liberdade é única e exclusivamente liberdade para aqueles que pensam de forma diferente. Mas já não tinha o mesmo sentido. Ecoava dentro da sua cabeça, como uma mosca persistente e maçadora. A mosca zumbia que a busca da liberdade era insignificante para alguém como ela, uma mulher que nunca avançava para a luz porque achava que era mais barato viver na escuridão. E quanto mais ela lia, mais a mosca zumbia, e talvez ela já tivesse desistido completamente de Rose Luxemburg e das suas visões de liberdade, se as circunstâncias tivessem sido outras.

    Assim sendo, ela pegou outra caneta e traçou violentamente o último parágrafo do seu ensaio. E mantendo a voz firme, continuou a descrever a cor do Latíbuloo, como se ela estivesse apenas projetando os seus pensamentos para uma sala vazia. Porque isso era muito importante. Eram as regras do jogo.

    Por fim, quando não lhe ocorria mais nenhuma ideia para descrever a beleza do azul a um pequeno rapaz, ela fez uma pausa e esgueirou um olhar a Daniel. Ele estava encostado na borda da sua cadeira, franzindo as sobrancelhas, concentrado. Ele parece estar melhor hoje, ela pensou. Quase muito rosado. O seu olhar recaiu sobre a distância entre o seu corpo e o cós das calças. Mais magro? Estaria ele mais magro? Mas ele estava a crescer. Os rapazinhos emagrecem sempre antes de crescer.

    Mas de repente, ele começou a tossir. Uma tosse seca e sibilante que o destroçava, como quando pisamos madeira morta. Ela ficou aterrorizada quando os seus lábios tornaram-se azulados.

    Meu Deus, não o tires de mim. Por favor. Pelo menos não agora.

    Ela conseguia ver claramente o molde das suas veias azuis a destacar-se da sua testa, e ela queria desesperadamente alcança-lo e aconchega-lo a si. Mas ele detestava isso. Um soldadinho tem de ser forte. E ela manteve o controlo com muita dificuldade.

    Ele parou de tossir, e levantando os olhos, contemplando o seu rosto ansioso. Com ar de culpada, ela desviou o olhar. Ele esperou, ao seu pé, observando-a severamente até ter certeza que ela estava debruçada sobre o seu trabalho outra vez, então perguntou: Há alguma estrela grande no Latíbulo, como o sol?

    Sim. Uma luz muito grande.

    Como o sol?

    Não, maior, muito maior. E mais brilhante também. Tudo é maior e mais brilhante no Latíbulo.

    Daniel ponderou nesta revelação por um momento, antes de perguntar, Então as pessoas têm muitas queimaduras solares?"

    Um sorriso irrompeu nos lábios de Mags, e ela teve de suster a respiração para o manter aí. Não, meu querido, ela disse atenciosamente. No Latíbulo, a luz não pode magoar-te.

    Nem mesmo se olhar diretamente?

    Nem mesmo se olhar diretamente.

    Ela queria contar mais, mas uma tosse ligeira capturou-lhe a atenção e ela virou-se.

    Ewan?

    Ewan. Soava-lhe estranho chama-lo pelo seu primeiro nome. Tal como noutro mundo, aquela familiaridade parecia-lhe algo proibido.

    Eu não ouvi a campainha. Ela relanceou um olhar rápido ao seu relógio. Tinha parado outra vez e ela simulou ver as horas no mostrador imobilizado. É mais tarde do que eu pensava.

    Ele sorriu, por uns momentos. A sua boca contraída num brilhante esboço, que iluminava o conjunto angular das suas caraterísticas. Depois o sorriso desvaneceu e a sua expressão retomou as suas facetas solenes habituais. Ela viu que ele estava pronto para a lição, as calças cinzentas de lã, e um casaco mesclado de lã verde azeitona, um pouco antiquado mas impecável. As sombras tenebrosas de um homem, o qual parecia um pouco Auto consciente da maneira como vestia as suas roupas, como se achasse surpreendente a maneira como elas lhe assentavam. Aristóteles despertava num vestido moderno. Debaixo do braço tinha o diário com a manchete sobre John Major, que referia qualquer coisa sobre um governo conservativo liderando a economia de vento em popa.

    Ela ponderou tecer um comentário num tom irónico, mas Ewan estava olhando Daniel por cima dos seus pequenos óculos com um formato de meia-lua. Aqueles que ele ponha quando estava a conduzir ou quando decidia estar enfiado na biblioteca por horas. Mags notara que ele, muitas vezes, esquecia-se de os tirar, por isso transportava aquele ar consigo de professor distraído para o mundo. E aquele pequeno esboço de presunção sempre lhe suscitava um ímpeto de inesperada ternura, a qual lhe era dirigida. Era a ponte que costumava atravessar para chegar ao mundo dele. Mas encontra-lo ali, intrometendo-se nos seus preciosos momentos com Daniel, de repente ficou ressentida, e deu por si a pensar, Ele não devia ter vindo cá. Ele não pertence aqui.

    Então invadiu-lhe um sentimento de culpa pela sua falta de benevolência. Ewan era um bom homem. E se ele não aparecia mais vezes, a culpa não era dela?

    Eu preciso de tempo, sabe? Para provar que eu consigo.

    E ela era sortuda, Ewan tinha sido compreensivo, nunca a pressionando para assumir mais responsabilidade. Ela forçou um sorriso. Vai para a biblioteca?

    Ele relanceou um olhar deliberadamente lento para os livros que estavam entre o seu braço curvado e depois até os seus olhos se cruzarem, e Mags sentiu alguma da sua indignação retornar. Os pequenos gestos irónicos, à primeira vista muito encantadores, mas às vezes davam-lhe vontade de gritar e quebrar coisas. Ela mordeu o seu lábio. Talvez seja isso que ele espera de mim. Gritar e estrebuchar violentamente, como uma mulher espalhafatosa. Mostrando o meu verdadeiro eu.

    Ele estava olhando de soslaio, procurando o pacote embrulhado em papel castanho.

    Por acaso já começou-

    Não. Ela interrompeu bruscamente. Eu tenho um ensaio para acabar."

    Compreendo. Ele assentiu distraidamente, mas ela sentiu a sua deceção. Ela tinha-o desiludido.

    Eu começarei esta noite, ela disse rapidamente. " Eu apenas precisei de algum tempo.

    Mas o seu olhar recaia sobre Daniel outra vez. Eu acho que nós precisamos de falar.

    Oh? O sangue subiu-lhe à face.

    E a raiva. A raiva que surgia do nada, que deflagrava à mínima provocação nestes dias, explodindo como fogo de artificio e alastrando-se incontrolavelmente nos seus lábios. Ewan estava olhando-a, examinando as suas ações com uma calma académica, e ela teve de respirar fundo para evitar mandá-lo embora. Não era da sua conta. Julgar-me quando ele pode afastar-se sempre que quiser. Os homens podem fazer isso. Mas as mulheres nunca. As mães nunca.

    Ela tinha sido presa, apanhada nas malhas da maternidade. Não há cláusula de rescisão.

    Ela olhou de relance para ver se Daniel se tinha apercebido da súbita tensão que se tinha apoderado dela, mas à sua estranha madeira de homenzinho velho, estava dirigindo-se para a porta.

    Eu quero pintar um desenho no meu quarto, ele disse.

    Mags assentiu e esboçou um dos seus sorrisos luminosos e forçados de encorajamento. Não demore muito. Têm de ir para a escola daqui a meia hora.

    Tudo bem. Eu já começará ontem.

    Eu comecei. Ela corrigiu-o automaticamente, mas Daniel estava agora a falar com Ewan.

    Será sobre o latíbulo, ele disse, enfatizando a última palavra deliberadamente. Eu pintá-lo-ei azul com uma grande luz brilhante.

    Ewan franziu as sobrancelhas, então prestou-se a vê-lo: Eu dou um pulo aqui mais tarde e dou uma olhadela.

    Não pode, Daniel afirmou enfaticamente. Eu tenho de ir para a escola.

    Mags sentia-se dividida entre o impulso de repreender Daniel por ter sido rude e o orgulho que ela sentia por Daniel falar com o homem mais velho como seu semelhante. Não suje a sua roupa com tinta, ela disse por fim, tentando parecer severa. Daniel assentiu vagamente, olhando para um lugar indefinido acima da sua cabeça, então saiu, fechando a porta atrás de si. Como sempre, Mags sentiu um aperto sempre que ele desaparecia da sua vista. Não se esqueça de tomar os seus comprimidos, ela advertiu. Lembra-te do que o Dr. Collins disse. Ela sorriu outra vez. Mas tal como o sol no latíbulo, o seu sorriso não tinha nenhum calor.

    Capítulo 2

    O entrelaçamento entre o sonho e o sono, o qual havia mantido Sadie tão aconchegada durante as horas incertas da noite, foi subitamente arrancado, precipitando a sua cabeça até às profundezas geladas da consciência. Ela acordou sobressaltada, e balbuciante e ofegante, levantando-se com dificuldade para se sentar na cama, tentando em vão lembrar-se onde estava.

    Por um momento, a sua mente sonhadora recusava-se a aceitar os contornos vulgares do quarto como reais, a cómoda espelhada e o armário alto, Luís XIV em carvalhos altos e desfolhados. O padrão de volutas e espirais do tapete formando uma mata subaquática, e a sensação fria que se sentia, mantinha a promessa de nevar.

    Mas as coisas foram, lentamente e dolorosamente reavendo as suas formas familiares e ela começou a aceitar aquelas sombras cinzentas pelo que elas eram e a pôr o tremido Kodachrome dos seus sonhos de lado.

    Com dificuldade, ela ligou o interruptor da luz de cabeceira e olhou em redor do quarto. Algo a tinha acordado. Mas o quê? Tudo estava na mesma. A coberta da cama não tinha sido remexida. Ela sempre tivera um sono mais pacífico do que Isaac. A mobília grande e pesada estava tão estável como sempre, e as cortinas ornadas de veludo estavam tão esticadas que nem sequer a mais fina frincha de luz poder-lhe-ia escapar. Ela abanou a cabeça, como a tentando descartar as teias de aranha. Se não sido algo dentro do quarto que a acordara, então o que poderia ter sido?

    Uma pontada aguda na cabeça volveu. Ela tinha sonhado com uma fuga.

    Há muito tempo que não tinha aquele sonho, pensou. Quase uma vida. Haveria algo de errado desta vez? Algo relacionado com o fim? Ela estalou os dedos instintivamente. Era algo muito importante. O único problema era, que ela agora não conseguia lembrar-se o que a coisa era importante.

    Por alguns momentos, ela debateu-se para fazê-lo emergir à superfície, mas por fim ela sucumbiu exausta, nos travesseiros. Os seus olhos pareciam areosos, e ela esfregou-os com as costas da mão. Dormira demais outra vez. Era sempre algo ruim. Dormes demais de manhã, depois passas a noite a contar as estrelas. Isso era o que Isaac sempre dizia, e Deus o abençoe, se ele não tinha sempre razão. Ela sentiu uma angústia quando se lembrou de Isaac. Não importava há quanto tempo, ele tinha morrido, apenas a memória dele despoletava-lhe uma dor cruciante. Sammy não percebia. O pai morreu já há vinte anos, mãinha, ele disse. Já é hora de seguir em frente. Mas Sammy era jovem, e o que é que os jovens sabem?

    A simples reminiscência de Sammy, deixou subitamente Sadie a ponderar se a sua mulher tinha recebido o presente que ela tinha-lhe enviado. Não era nada demais. Era apenas um frasco de água-de-colónia. Ela não tinha a certeza se como é que ela se chamava- Qual era o nome dela? Sammy dizia que ela esquecia-se de propósito, mas não era verdade. Mas isso simplesmente não encaixava. Jodie or Codie? Um desses nomes que soavam nada americanos. – De qualquer forma, ela nem sequer sabia se a como se chamava gostava de perfume. Mas o que é que se podia fazer, quando dependia-se de uma pensão? Se Isaac fosse vivo as coisa seriam diferentes, mas assim era a vida. Bem, não valia a pena chorar sobre o leite derramado, assim é a vida. Recordar-se do presente, de repente veio-lhe à memória, a coisa importante que ela esquecera, e afinal não era assim tão importante.

    Sadie sublevou-se da cama e arrastou-se até a cómoda. Ela examinou a sua cara no espelho. O espelho tinha adquirido um tom esverdeado ao longo dos anos e era muito difícil distinguir alguma coisa. Na última vez que ele lá estivera, Sammy dissera-lhe que devia comprar um espelho novo, prontificou-se a compra-lo. Mas Sadie tinha afeiçoado- se ao espelho. Tinha sido um presente de casamento ou de aniversário de Isaac ou era da mãe dele? De qualquer forma, o que é que os jovens sabem sobre o valor das coisas? A partir do momento, em que algo está um pedacinho lascado ou um pequeno risco, eles deitam fora e compram um novo. Você tenta avisá-los, mas quem é que ouve?

    Sadie inclinou-se para frente e entrecerrou os olhos ao reflexo esverdeado. O reflexo esverdeado entrecerrou também. " Aos oitenta e um, os aniversários não são mais importantes.

    ––––––––

    Daniel estava escutando. O seu pequeno, tenso corpo pressionando a porta do seu quarto, esforçando-se por ouvir todas as palavras. A sua mãe estava irritada. Ele sabia-o pelo estrondo, pelo barulho dos pratos sujos atirados para a pia. Mags sempre arrumava quando estava irritada. Não que ficasse mais limpo quando ela terminava. Era demasiado pequeno e eles tinham muitas coisas. Nem mesmo quando Mags tinha tempo para lavar loiça, havia sempre roupas penduradas para enxugar, brinquedos e jogos, os quais ele tinha brincado antes da hora de dormir mas que tinham-se tornado entediantes, e pilhas de livros e papéis presos com canetas e lápis, como enormes, instáveis porcos-espinhos. Quando a sua mãe estava de bom humor, costumava brincar dizendo que debaixo daquilo tudo devia haver um tapete. Mas quando ela estava de mau humor, como agora, ela agitava as coisas e atirava as coisas para a pia, como se ela conseguisse reestabelecer a ordem, simplesmente movendo tudo à volta.

    Você não percebe como são as coisas, ela disse. Você não percebe."

    A voz de Ewan era um grunhido, baixo e estrondosa, mas Daniel ouviu-o dizer, Eu só acho que você está pisando terreno minado.

    Você sabe?

    A voz de Mags era irritadiça, e soava como se estivesse a arremessando palavras quando ela preferia atirar pratos.

    Daniel não conseguia ver Ewan, mas imaginava-o imóvel como ele sempre ficava durante as argumentações, com os pés afastados, mãos nos bolsos, com uma expressão facial indecifrável. O objeto imóvel contra a força imparável.

    Eu apenas estou dizendo, ele disse lentamente, que é perigoso começar uma discussão sobre o latíbulo com ele.

    Não era uma discussão, ela vociferou defensivamente. Ele só colocou algumas questões.

    Mas por que raio disseste-lhe que é azul?

    Porque, ela retorquiu furiosamente, era a única coisa que eu conseguia pensar além de vermelho. Você sabe o quanto ele detesta a cor vermelha. E você sabe o motivo.

    Daniel entorpeceu. Sangue. Não pense em sangue.

    Continuo a achar que foi um erro.

    Porquê? Você acha que ficará aborrecido se descobrir que eu estou errada?" Havia uma rasteira na maneira que Mags entoara a pergunta, mas Daniel não ouviu-o. Ele tinha cerrado as mãos em forma de punhos e os seus olhos ofuscaram-se pela dor.

    Se ele descobrir que eu estou errada.

    As palavras ocorriam-lhe pela mente. Palavras perigosas, palavras cujo significado ele não conseguia atingir.

    Descobrir que eu estou errada.

    Ela não sabe. As suas sobrancelhas colidiram com os seus pensamentos. Mas ele não conseguia detê-los, e eles emergiam, formando uma espécie tenebrosa de razão na sua confusão. O latíbulo é azul, foi isso que ela disse. Mas agora ela está dizendo que ela pode ter-se enganado. Era a pergunta mais importante, mais especial em todo o mundo e ela tinha mentido. Ela tinha-lhe mentido.

    A voz de Ewan elevou-se um pouco, como se estivesse impaciente. Não, claro que eu não disse isso. O que eu quero dizer é que quando começamos a mentir, é muito fácil contradizermo-nos. E se amanhã, disséreis-lhe que o Latíbulo é cor-de-rosa. As crianças são muito suscitáveis a estas coisas.

    E você percebe tudo, não é? Mags gozou mas arrependeu-se assim que terminou a frase. Ewan corou, uma sombra profunda mas não favorável Eu não finjo ser nenhum perito em crianças, ele disse calmamente. Mas gosto muito do Daniel, e eu gostaria que você percebesse que não é a única que se preocupa com ele.

    Mags não respondeu. Ela revolteou os pratos dentro da pia, alheia de que aquele gesto pouco impacto causava na água morna. Ela queria dizer que lamentava aquele golpe baixo. Mas ela também estava irritada com ele, por ele ter sido condescendente com ela. E, ao mesmo tempo, ela receava que ele tivesse certo. Finalmente, ela disse, É melhor eu me certificar que o Daniel vestiu o casaco. Acho que vai chover."

    Daniel. Danny. Está na hora de ir para a escola. Ela abriu a porta do seu quarto, mas não havia vestígio dele. As suas pinturas estavam espalhadas pelo chão, e ele nem sequer havia começado a pintura do latíbulo. Mags estava desiludida. Ela gostava de observá-lo no portão da escola, ficava de pé, simulando desinteresse, assim que ele acenava apressadamente e corria para juntar-se aos seus colegas. E esta manhã, ela esperava que Ewan desse-lhes boleia, deixando-os desempenhar o papel de família por uns minutos. Uma oportunidade para descobrir como seria quando eles finalmente tivessem juntos. Mas, talvez fosse pelo melhor. Pelo menos, Daniel tinha ido embora sem ter testemunhado a sua explosão de raiva. Inconscientemente, coçou o seu pulso direito com as unhas da mão esquerda. Estúpida. Estúpida, ela disse em voz alta. Quando é que aprendes a manter a boca fechada?

    Ela pegou na tela na tela ainda húmida, e examinou-a. A parte superior da tela estava coberta com uma massa de azul-marinho. Abaixo da linha do horizonte estava o esboço de um anjo. Mags podia dizer que era um anjo, porque tinha uma grande, improvável aparência de asas, que ressaiam das suas costas, tal como o anjo de plástico que eles colocavam na árvore de natal todos os anos. Parecia transportar alguma coisa nas suas mãos, uma forma oblonga que poderia ser um bolo ou o painel de controlo de um computador. Abaixo do anjo, estava um rapazinho com um grande sorriso desproporcional que alongava-se para aceitar o presente celestial. Olhá-lo, constringiu o coração de Mags, e ela pousou-o rapidamente sobre a cama desfeita e apressou-se a sair do quarto.

    E na sua precipitação, mal notara que a bolsa de Daniel tinha sido colocada no canto mais distante do quarto, onde tinha sido arremessada. Estava deitada impotentemente de cabeça para baixo, como uma tartaruga virada de pernas para o ar, com as entranhas espalhadas sobre o tapete; o trabalho de casa da noite anterior, as sanduíches ineptas que ela prepara carinhosamente para o seu almoço; os comprimidos que o Dr. Collins havia receitado.

    Capítulo 3

    Sadie pousou as agulhas e olhou para o interior do seu cesto de tricot. Havia meada de lã cinzenta e ela pegou-a e unia-a com a manga incompleta pendurada numa das agulhas. Talvez combine. Nesta luz a tonalidade parece idêntica. Mas era muito difícil de afirmar. E quando fosse vestido para sair? Até as mais pequenas diferenças tornavam-se óbvias, quando vistas à luz do dia. Ela examinou cuidadosamente a lã, tentando encontrar alguma mudança de tonalidade.

    Mas a luz no salão era tão subtil logo pelas primeiras da manhã. Não era possível distinguir a cor entre as sombras. Ela tentou não desviar o olhar para a porta. Mas não havia dúvida de que a luz era melhor no corredor. Ela podia nota-lo apenas espreitando pela porta, como um dedo oscilante. E apenas demoraria um minuto. Ela pôs-se de pé, e tentou não andar tão rapidamente, saindo apressadamente.

    Uma vez lá, ela deu um grande espetáculo ao examinar a lã, tentando enganar uma audiência composta só por si mesma. Mas, por muito que tentasse, os seus olhos continuavam a recair sobre o tapete debaixo da caixa de correio, verificando que estava vazia.

    Continuava ainda vazia quando ela foi verificar se o solo do cântaro do gerânio estava húmido, e mais tarde quando decidiu que não podia deixar passar outro dia sem limpar o corrimão.

    Finalmente, quando o relógio do avô, na sala de jantar, chiou um asmático quarto de hora, ela teve que admitir que já passara há muito da hora da entrega do correio matinal. Havia uma segunda entrega de correio à Sexta-Feira? Ela não conseguia lembrar-se. Mas uma pessoa não podia estar sempre a inventar desculpas só para entrar no corredor.

    Porque não? Questionou uma voz na sua cabeça? Mas está tão ocupada com o quê?

    Pare de se comportar como uma velha tonta, ela disse severamente a si mesma. Foste tu mesma que disseste que aos oitenta e um, os aniversários já não são mais importantes.

    Mas era estranho e triste que ninguém se lembrasse do seu aniversário, e dececionante, ela voltou para a cozinha para preparar uma chávena de chá para si mesma. Em cada lado da arcada estucada havia fotos de Sammy. Fotos a preto e branco de nariz arrebitado, uma criança com cabelo aveludado numa moldura dourada. Retratos da escola severa e rígida. Os anos rebeldes da adolescência. E, finalmente, a sua predileta, a do seu dia da sua formatura, um jovem homem orgulhoso, de olhos escuros pronto para abandonar o ninho.

    Esta era a imagem de Sammy que Sadie tinha arquivado na sua memória, e era assim que ela o imaginava, sempre que ele aparecia nos seus pensamentos. E na última vez, que ele a tinha vindo visitar, ela tinha ficado sensivelmente chocada ao descobrir que ele tinha uma barba.

    Porque é que havias de ter notado, Mãinha? ele disse. Eu só a deixei crescer há doze anos atrás."

    Mas assim era Sammy. Tinha sempre uma resposta na ponta da língua.

    Não, ele não esqueceu, ela determinou. Um rapaz tão atencioso. Telefona regularmente. Não é como o filho mais velho de Ruth, e ela apenas está do outro lado do país. Agora Sammy, nós temos o Oceano Atlântico a separar-nos.

    Sammy sempre fora um bom rapaz. Mas ultimamente, ele andava tão ocupado. Pressões do trabalho, ele dizia. Talvez ele estivesse um pouco atrasado este ano. Não era o fim do mundo.

    E alguém já morrera porque o seu postal de aniversário estava atrasado?

    Os seus olhos pousaram numa foto de bebé. Sammy envolvido num xaile de renda trabalhada. O xaile que Isaac conseguira arruinar colocando no sótão quando ela dissera-lhe que havia lá mariposas do tamanho de morcegos. Mas assim são os homens. Não podemos dizer-lhes nada. O padrão do xaile ainda estava bastante nítido ainda mesmo que a foto tivesse-quantos anos tinha a foto? Certamente quase quarenta anos.- Ainda assim, era um lindo xaile, delicado como uma teia de aranha, mas aconchegante. Um bebé sentir-se-ia protegido num xaile como aquele.

    Não abras os teus olhos.

    As palavras eram tão nítidas, que por um momento, Sadie pensou que elas tinham sido pronunciadas em voz alta. Mas isso era apenas a sua memória a pregar-lhe partidas outra vez. Sons e imagens do passado escoavam por entre o presente recentemente, envolvendo-a quando ela menos esperava. Esse era o problema de envelhecer, ela supôs. E então ela lembrou-se que aquela não era a primeira vez que ela supunha isso, e concluiu que isso também fazia parte do envelhecimento.

    Ela entrou na cozinha e ignorou o frasco de grãos de café descafeinado que Sammy havia- lhe trazido na sua última visita, tirando um pacote de chá Earl Grey. O aroma das folhas perfumadas espalhou-se pelo ar assim que ela abriu o pacote, suavizando o seu desapontamento, e deixando entrever que uma pequena coisa que pudesse adoçar o seu sabor não seria o fim do mundo dadas as circunstâncias. Ela pousou o pacote e dirigiu-se ao armário para buscar açúcar.

    Não abras os teus olhos.

    As mãos da sua mãe tapavam os seus olhos, ocultando a luz. Ela dava risadas que tanto eram de medo de cair como de excitação, mas a sua mãe orientava firmemente virando para este lado e girando-a em círculos até não ter a mínima ideia de onde estava.

    Olhe agora. Ela tirou as suas mãos de seus olhos e tudo o que Sadie podia ver era estrelas deslumbrantes de luz. Mas, após um momento, as estrelas solidificaram-se e ela encontrou-se a balançar no convés de um barco deslumbrando um mundo cinzento. Edifícios cinzentos, erguendo-se sombrios como gigantes a encontrar-se com os céus, ainda mais cinzentos.

    Um mundo monótono de chumbo e cinza. Pendurados nas paredes estavam monstruosas imagens de homens de aparência severa, e faixas proclamando: Longa Vida Ao Partido Comunista e Aos Nossos Irmãos Proletários. Parecia que tinham sido pintados de vermelho, mas o pigmento tinha sangrado, de modo que agora pareciam o rosa sujo das faixas manchadas.

    Os olhos perplexos de Sadie procuravam a sua mãe. Ela contemplava o trilho, os seus olhos eram negros ilegíveis. Esta é a Rússia, ela disse docemente, quase como ela não conseguisse acreditar. A nossa nova casa.

    Receosa, Sadie olhou para trás, deslumbrando o caminho que haviam percorrido. Mas não havia nada para ver, apenas milhas e milhas de água cinzenta alcançando todo o caminho até se encontrar com um céu de peltre. Ela podia ter sonhado que existia um mundo para além daquele. A mão da sua mãe estava sobre o seu ombro e ela inclinou a sua em direção a ela.

    Voltaremos alguma vez a Glasgow? ela perguntou num tom assustado. E a sua mãe respondeu,

    Nunca.

    Á medida que a memória desvanecia, Sadie encontrou-se a segurar a porta do armário, olhos enevoados com a passagem resinosa do tempo. Ela esforçou-se por retornar ao presente com dificuldade, censurando-se mentalmente por se deixar arrastar novamente.

    Velha tonta, ela repreendeu-se. Têm de arranjar algo para se entreter. Isso era o que Sammy diria. Ela relanceou culpadamente para uma enorme lata de metal de biscoitos que estava em cima de uma das prateleiras. O arquivo. Ela não lhe mexia há meses. Sammy ficaria irritado.

    Ela puxou uma cadeira para se sentar, então cuidadosamente alcançou e esforçou-se por abrir a capa, perturbando uma camada de pó, enquanto o fazia. Estava tudo como ela se lembrava, as páginas amareladas, as bordas curvadas, fotografias desvanecidas esquecendo as suas imagens. As memórias de uma senhora velha. Uma caixa de folhas secas.

    Ela levantou a folha que estava no topo. Era mais nova do que o resto e continha o lema da Universidade de Glasgow numa pequena faixa no topo da página, Caminho Verdade Vida. Ela colocou-o com a frente para baixo em cima do tampo querendo evitar a crítica educada contida no seu conteúdo. Eu agradeceria que me contactasse quando tivesse o rascunho final até....

    Ela aniquilou as palavras e começou a virar as fotografias, uma a uma.

    Rivka Lazareva

    Falecido.

    Mikhail Leskov

    Falecido.

    Leib Kagan? Não tenho notícias dele há anos. Ela colocou-o junto aos outros. Provavelmente falecido.

    A pilha de falecidos crescia, projetando-se das suas molduras com olhos indiferentes e vazios, como se lembrassem-lhe que já tinham partido. E na sua partida, ela tinha sido esquecida, desvanecendo pouco a pouco da memória a cada ano que passava. Repentinamente, ela deitou as fotos dentro da lata. Meu Deus, ela pensou. Estou a desaparecer.

    Por alguma razão, o chá já não lhe parecia tão apelativo. E, pensando bem, desde que Sammy tinha arrumado o seu armário por ordem do Dr. Farmer, não havia nada que ajudasse a engolir o chá. E como é que podia beber um bom chá forte sem uma fatia de bolo ou mesmo um biscoito doce? Mas isso já ajudava. Ela pôs-se de pé, e, já com a mente decidida, foi buscar o chapéu e o casaco, e apressou-se a sair de casa.

    Daniel não tencionava entrar no autocarro. Ele tinha saído cegamente do apartamento, como um sonâmbulo que negoceia um país estrangeiro. O latíbulo é azul. Ela não compreendia. Durante este tempo todo, ele tinha estado a colocar questões sobre o latíbulo, transbordando com a expectativa do que o esperava mais à frente, e ela tinha estado a trata-lo como uma criança

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