Encontre milhões de e-books, audiobooks e muito mais com um período de teste gratuito

Apenas $11.99/mês após o término do seu período de teste gratuito. Cancele a qualquer momento.

Três meses no século 81
Três meses no século 81
Três meses no século 81
E-book206 páginas2 horas

Três meses no século 81

Nota: 5 de 5 estrelas

5/5

()

Ler a amostra

Sobre este e-book

O Viajante no Tempo explica assuntos recônditos.
O próprio H. G. Wells é um personagem de Três meses no século 81, obra-prima do "pai" da ficção científica brasileira, Jeronymo Monteiro. Nesta história publicada pela primeira vez em 1947, o futuro com que Campos se depara é muito diferente do esperado, e agora ele tem que correr contra o tempo para mostrar à humanidade o que realmente importa.
A coleção ZIGUEZAGUE atravessa o tempo celebrando e resgatando a produção nacional de ficção científica, reunindo obras das três ondas da nossa literatura.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento11 de dez. de 2019
ISBN9788554350079
Três meses no século 81

Relacionado a Três meses no século 81

Ebooks relacionados

Ficção Científica para você

Visualizar mais

Artigos relacionados

Avaliações de Três meses no século 81

Nota: 5 de 5 estrelas
5/5

1 avaliação0 avaliação

O que você achou?

Toque para dar uma nota

A avaliação deve ter pelo menos 10 palavras

    Pré-visualização do livro

    Três meses no século 81 - Jeronymo Monteiro

    1946

    1. A entrevista

    Campos ergueu o copo à altura dos olhos, mirando a lâmpada através do transparente liquido dourado, e disse, pensativo:

    — Na verdade, a entrevista com Wells deixou-me decepcionado. O meu jornal queria algo positivo, e nada consegui. Foi então que me veio a ideia maluca.

    — Mas, afinal, que disse Wells? — perguntou Da Silva.

    — Nada importante, nem animador.

    — E por que é que você não insistiu?

    — Pareceu-me inútil. Aliás, tive que voltar logo depois, e não avistei mais com ele. Curioso… saí dali decidido a tentar a experiência. Wells havia de se convencer de que eu tinha razão…

    — Não me pode dar detalhes da entrevista, Campos?

    — Por que não, Da Silva? Já agora… tudo perdeu o interesse para mim.

    — É que você está ainda sob a impressão desse acontecimento extraordinário. Dentro de dois ou três meses, voltará ao normal.

    — Pode ser, Da Silva, mas… depois de tudo o que me aconteceu…

    Campos suspirou profundamente e cravou o olhar vago e sem brilho nos velhos volumes amontoados no alto da estante. Depois sorveu um gole de uísque, e continuou, descendo o olhar:

    — Quando lhe falei na máquina de explorar o tempo, Wells sorriu agradecido. Mas percebi logo que ele mal se lembrava do livro. Escrevera-o havia quase cinquenta anos!

    — Ele anda pelos oitenta, não?

    — É verdade. Mas é um velho admirável, de espírito moço. Depois, resumi alguns dos pontos principais do seu livro. E então, Wells recordou-se e teve momentos de êxtase, findos os quais, murmurou: Ah! Sonhos da juventude! Como vai longe esse tempo!.

    ‘Mas o senhor acreditou na sua máquina"?’, perguntei.

    "‘Acreditei e acredito, jovem. O futuro da humanidade pode perfeitamente ser aquilo… quem sabe?’

    "Então, senti qualquer coisa e falei:

    "‘Pois eu tenho outras ideias. De qualquer modo, gostaria de fazer a experiência.’

    "Wells não se admirou. Riu bondosamente, paternalmente. Acomodou-se melhor na poltrona, olhando-me de certo modo particular, e disse:

    "‘Gostaria? Receio que tenha que esperar… Creia na reencarnação, e aguarde a passagem dos séculos!’

    Você não acha essa resposta um tanto… atrevida, Da Silva?

    — Bem, Campos… conforme…

    — Pois eu fiquei decepcionado. Wells continuava sorrindo. Decerto, intimamente divertia-se comigo. Fiz um esforço para retomar o fio da reportagem que interessava ao meu jornal e perguntei:

    "‘Mas o senhor chegou a pensar seriamente naquela máquina?’

    "‘Não! Não! Fiz como todos os ficcionistas. Precisava de um ponto de partida para desenvolver uma ideia… e adotei aquele. Parti de uma exagerada possibilidade. Você sabe… a quarta dimensão…’

    "E ele se interrompeu, sem continuar a explicar a ‘quarta dimensão’. Seus olhos cerraram-se, e quando os abriu sua fronte estava estranhamente iluminada. Lembro-me de como fiquei impressionado com isso. Depois, continuou, sem que eu o provocasse:

    "‘Realmente… Mover-se ao longo do tempo! Que sonho! Se isso fosse possível!’

    "‘Mas é possível!’, disse eu, impetuosamente. ‘É perfeitamente possível! O tempo é meramente uma dimensão, como as outras. O que se faz necessário é agir! Agir! Imaginar só, não adianta! Creio firmemente que tudo o que podemos imaginar, poderemos realizar! Não acredito que o cérebro humano possa conceber coisas sobre-humanas.’

    "Wells olhou-me admirado. Devia ter se impressionado com a minha impetuosidade. Eu mesmo me estranhei.

    "‘Eu também pensava assim, rapaz! E, depois… por que não? A inteligência humana não tem feito sair do nada coisas espantosas: Não temos realizado verdadeiros milagres? Então?! Não temos?’, corroborei, ansioso.

    "‘É verdade… temos feito coisas espantosas… que os nossos antepassados não poderiam sequer imaginar… E aí estão palpáveis, reais…’

    "‘Pois então!’, murmurei, pendente dos lábios do famoso novelista.

    "‘Acha, então, que poderíamos construir a máquina de viajar ao longo do tempo?’, perguntou ele, olhando-me fixamente. Creio que havia certa dose de sarcasmo na sua voz.

    "‘Não’, respondi resolutamente. ‘Não num aparelho de qualquer espécie, sr. Wells. Não creio que a mecânica nos possa ser de qualquer auxílio nessa empreitada. Penso noutras forças, nas forças que o homem começa a descobrir em si mesmo e que talvez sejam as mais possantes de que a humanidade vai dispor no futuro…’

    "‘Sim? Refere-se à metapsíquica?’

    "‘Isso, sr. Wells. Refiro-me à energia psíquica, que apenas começa a deixar-se entrever…’

    "‘Sim, sim. Compreendo. Continue…’

    "‘Porque nós não somos apenas este corpo’, fui falando, arrebatado, ‘este corpo irremediavelmente preso a todas as imposições físicas que esmagam e limitam. A matéria de que somos feitos se estende sob uma forma ainda não definida, não compreendida— uma forma transcendental, sublime que pensa, age, raciocina e imagina… Decerto, o senhor está a par dos progressos da metapsíquica…’

    "‘Naturalmente! Interessam-me muito!’

    "‘Pois, então, saiba que têm sido estudados fenômenos absolutamente extraordinários, incompreensíveis, mas nem por isso menos reais do que a força do vapor ou da eletricidade…’

    "‘De acordo’, falou Wells, que parecia bem interessado. ‘Mas não se conseguiu ainda explicação alguma aceitável, nem sabemos como controlar essa força de que apenas podemos suspeitar. Por enquanto, todos os fenômenos do gênio se prestam a interpretações diversas, e até contraditórias. Richet…’

    "‘Não importa’, atalhei eu atrevidamente. ‘Não conhecemos, de igual modo, muitas das forças que usamos. Aproveitamos os seus efeitos sem nos termos, ainda, apoderados das causas. E por que não faríamos o mesmo com as forças psíquicas? Por que não nos aproveitaremos do fenômeno em si?’

    E, enquanto eu me entusiasmava, Wells sorria. Pensei, ao depois, que ele me considerava meio louco. Não lhe parece, Da Silva?

    — É possível, Campos. Mas… e depois?

    Campos engoliu mais um gole de uísque e guardou silêncio por um lapso de tempo muito curto. Mas foi um silêncio fecundo, em que seu olhar se fixava em algo do passado que ninguém mais poderia ver.

    — Depois… Wells me perguntou:

    "‘Bem… e de que maneira pensa que poderiam ser usadas as energias do espírito para viajar ao longo do tempo?’

    Era uma pergunta positiva, como vê, Da Silva, e exigia, também uma resposta positiva, resposta que eu não estava preparado para apresentar. Você sabe que o que me levara à presença do grande escritor não fora isso — pelo menos, não fora isso especialmente…

    — E como é que você se arranjou?

    — Vacilei por um momento, e logo, me acudiu uma resposta:

    ‘Precisaríamos de meia-dúzia de médiuns" da melhor qualidade. Com eles, nosso espírito poderia ser lançado ao futuro…’

    E desta vez, Da Silva, Wells sorriu de maneira toda peculiar, maneira que me irritou profundamente. Tinha um ar superior de quem já compreendeu tudo. E disse-me:

    "‘E em que lhe posso ser útil, sr. Campos?’ Note-se que eu seu tom havia mudado, esfriara.

    "‘Na verdade, sr. Wells, pensei que se interessasse pelo assunto.

    ‘Enganou-se. Esse tipo de experiência não me seduz. Se acha viável o método, experimente-o sozinho.’

    — Ele disse isso? — perguntou Da Silva, razoavelmente admirado, e enquanto servia nova dose.

    — Disse. Eu nem sei o que senti. Esperava da parte dele um estímulo, pelo menos. Portanto, dei por terminada a entrevista. Mas não pude me conter e disse-lhe:

    ‘Muito bem, sr. Wells. Vou tentar. O senhor terá notícias minhas. E espero que os resultados da minha viagem ao futuro sejam bem diferentes daqueles que o senhor conseguiu com a sua máquina de explorar o tempo…’

    — E ele, Campos?

    — Ele passou-me o braço por cima dos ombros enquanto me levava até à porta e disse cordialmente:

    ‘Não importa, moço. A verdade é relativa. A verdade é aquilo em que acreditamos sinceramente. O desejo do homem é viver feliz. Se a felicidade se encontra num sonho — sonhemos! Se a felicidade reside na mentira — mintamos! Sinceramente, desejo-lhe sucesso.’

    Campos sorveu lentamente um gole, e ficou calado, pensativo.

    Da Silva olhava-o curiosamente, analisando as profundas modificações que se haviam operado naquela fisionomia, o estranho aspecto que ela adquirira durante os três meses de ausência. Não havia dúvida: Campos envelhecera extraordinariamente nesse curto tempo. Rugas acentuadas lhe circundavam a boca o os olhos; na testa havia três vincos profundos. O aspecto geral do rosto era macilento, como que nimbado de um halo invisível, mas irrefutável. Além disso, o seu olhar, que se tornara mortiço, tinha às vezes reflexos desvairados, que eram como portas subitamente abertas para um infinito inalcançável. Não era, decerto, a fisionomia apropriada a um moço de trinta anos. Depois, era visível em Campos, após seus três meses de ausência, um certo desinteresse por tudo, o que fizera com que várias pessoas deixassem de o estimar. Mas isso não era atitude. Já se passara um ano desde que viera da Inglaterra, e Campos, simplesmente, voltara assim. Da Silva compreendia-o. Talvez fosse, mesmo a única pessoa a compreendê-lo. Por isso é que Campos estava contando todas aquelas coisas — que não contara ainda a pessoa alguma. E Da Silva sentira certo escrúpulo em provocar as suas confidências, apesar de estar, há muito tempo, ardendo de vontade de saber tudo. É que Campos, a convite dele, viera passar uma temporada na Estância Crizlalu, de sua propriedade. Queria que Campos descansasse. E o clima do Sul estava lhe fazendo bem. Os pitorescos costumes de fronteira brasileiro-uruguaia contribuíram, também, poderosamente, para distrair o seu conturbado espírito. Como Da Silva insistira muito para que aceitasse a estada na Estância, parecia-lhe abusivo, agora, fazê-lo falar na estranha aventura que correra. É verdade que Campos começara a falar de vontade própria, e agora Da Silva achou fácil perguntar:

    — E foi então que você resolveu tomar a coisa a sério, hein, Campos?

    — É verdade, Da Silva. Antes da entrevista eu não havia pensado seriamente na aventura.

    Considerava a coisa como interessante, do ponto de vista especulativo. Há um certo encanto em se imaginarem coisas assim, impossíveis, ou aparentemente impossíveis. Haverá algo mais fascinante que o futuro? Creio que o homem, quanto mais se preocupa com o futuro, mais está subindo na escala da perfeição. Não lhe parece?

    — Sim… evidentemente…

    — Claro. Não é admissível que o nosso antepassado de Lagoa Santa ou dos Sambaquis se preocupasse muito com o dia seguinte… A preocupação do futuro indica já um prolongamento espiritual da humanidade, que tende a se aperfeiçoar constantemente. É um dos caminhos para o alto. Assim o homem vai se aperfeiçoando no seu juízo geral sobre o mundo; aprendendo a prever, ele acabara por profetizar com segurança. Não se esqueço de que todos os iluminados deixaram, como traço mais característico e essencial de sua ação ente os homens, o dom da profecia…

    — E… foi mesmo, Campos?

    Campos teve novamente um daqueles hiatos, com os olhos fixos no ponto vago que o fascinava, as rugas do rosto mais profundas e rudes.

    — Bem… — Campos se interrompeu de novo. E desta vez houve alguns minutos de silêncio. O fogo da lareira crepitava vivo e alegre, e algum pedaço de madeira verde chiava fortemente, esguichando fogo como um lança-chamas mirim. De repente ele se voltou para Da Silva e encarou-o fixamente:

    — Da Silva. Você se interessa realmente em conhecer a história da minha viagem ao futuro?

    — Sem dúvida, Campos. Sem a mínima dúvida.

    — Bem. Vou aproveitar, então, o seu interesse para realizar um plano que formei desde a minha volta. Vou escrever a história.

    — Por que não a conta, simplesmente?

    — Prefiro escrever. Fá-lo-ei com calma, recordando tudo. E você lerá, também, sossegadamente, quando quiser. Se não acreditar, não terá necessidade de compor a fisionomia, como o faria se estivesse me ouvindo.

    — Ora! Francamente, Campos! Então, você pensa que eu…?

    Campos sorriu, apaziguador:

    — Não. Não estou afirmando. É que prefiro escrever.

    — Está bem, como queira, Campos.

    Campos sorriu ainda, meio contrafeito, como que justificando uma vaidade e acrescentou, pouco firme:

    — E, depois… tenho-me na conta de… digamos, de um narrador bem aceitável. É uma vaidade, bem sei, mas que só descubro diante de você. Penso que escrevo mais ou menos bem…

    — Está certo. Lerei a sua história com todo o prazer. Quando a terá pronta?

    — Dentro de uma semana, Da Silva.

    Campos despediu-se e retirou-se para o seu quarto.

    Da Silva continuou ali, sentado à lareira, sob o seu quebra-luz, tomando o seu uísque e fitando alheiamente o fogo crepitante. Quando se levantou para se recolher, disse a si mesmo:

    — Decerto, Campos já tem a história escrita. Na verdade, lê-la-ei com prazer.

    Na semana seguinte, Da Silva estava de posse do manuscrito do seu amigo Campos.

    2. A atrevida experiência

    Tive que insistir com ele:

    — É inútil, Perth. Sei o que digo. Preciso do seu auxílio, e assumo toda a responsabilidade.

    — Mas é perigoso, Campos. Pense bem. Não sabemos, não podemos saber quais serão as consequências. Jamais foi tentada uma experiência dessas. O resultado pode ser trágico.

    — Assumo toda a responsabilidade, Perth. Deixarei uma declaração inculpando-me de tudo o que possa acontecer. Não é bastante?

    Perth hesitava. Era evidente o seu receio em tentar a atrevida experiência.

    — Francamente… não sei. Isso dependeria de tantos fatores incontroláveis! É preciso que coincidam várias coisas sobre as quais não temos domínio algum.

    — Estou disposto a arriscar, Perth. Isso é comigo.

    — Compreenda, Campos. Não é por mim. É por você mesmo. Nenhum de nós, nem o mais profundo mestre em metapsíquica está seguro do que pode acontecer em certas circunstâncias. Não conhecemos bem as propriedades do ectoplasma; não sabemos, absolutamente, o que poderá acontecer ao espírito que se ausente por longo tempo da matéria… Em resumo: não temos certeza de coisa alguma!

    — Mas eu tenho, Perth. Corro todos os riscos e assumo a responsabilidade.

    Perth ficou silencioso, a testa franzida, os negros olhos brilhantes semicerrados. Era noite e estávamos no seu gabinete, uma pequena peça sombria, onde as lombadas de inúmeros volumes se alinhavam interminavelmente dando volta às paredes. O silêncio se fazia demorado. Perguntei:

    — E então?

    Perth continuou com o olhar fixo, sem se mover. Em sua testa alta nasceu uma ruga que se acentuou rapidamente, e apenas moveu os lábios:

    — Experimentaremos.

    — Muito bem, Perth! Eu sabia!

    Ele voltou a cabeça para meu lado, num movimento rápido, e fitou em mim magníficos olhos negros.

    — Fica entendido, Campos: não me responsabilizo pelas consequências!

    — Não há dúvida, Perth. Combinado.

    — Esteja aqui sábado próximo,

    Está gostando da amostra?
    Página 1 de 1