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No Rendilhado do Cotidiano:: A Família dos Libertos e seus Descendentes em Minas Gerais (C. 1770 – C. 1850)
No Rendilhado do Cotidiano:: A Família dos Libertos e seus Descendentes em Minas Gerais (C. 1770 – C. 1850)
No Rendilhado do Cotidiano:: A Família dos Libertos e seus Descendentes em Minas Gerais (C. 1770 – C. 1850)
E-book475 páginas6 horas

No Rendilhado do Cotidiano:: A Família dos Libertos e seus Descendentes em Minas Gerais (C. 1770 – C. 1850)

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Sobre este e-book

Esta obra, intitulada No rendilhado do cotidiano: a família dos libertos e seus descendentes em Minas Gerais (c.1770 - c.1850), tem como objetivo analisar a constituição da família e as redes sociais dos libertos no transcorrer do século XVIII até meados do século XIX, tendo como recorte espacial três principais freguesias da Comarca do Rio das Mortes, Minas Geras.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento11 de mai. de 2020
ISBN9788547343538
No Rendilhado do Cotidiano:: A Família dos Libertos e seus Descendentes em Minas Gerais (C. 1770 – C. 1850)

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    Pré-visualização do livro

    No Rendilhado do Cotidiano: - Sirleia Maria Arantes

    COMITÊ CIENTÍFICO DA COLEÇÃO CIÊNCIAS SOCIAIS

    Para Maria Rita, Maria Alice e Helvécio, para que se lembrem sempre: Quem elegeu a busca, não pode recusar a travessia... (João Guimaraes Rosa)

    AGRADECIMENTOS

    Duas questões me acompanharam na tessitura desta obra: uma é uma frase escrita no muro da UFBA e a outra é o Tratado de Gratidão de Santo Tomás de Aquino. A primeira é simplesmente uma frase pinchada em tinta fresca no muro: Viver não cabe no Lattes!. A leitura, a pesquisa, a escrita de um livro e a vida não cabem nessas linhas, não têm espaço para serem lançadas no Lattes. Os desafios de escrever cada linha que compõe um trabalho científico dessa envergadura só podem ser mensurados por aquele que passa pelo processo. Um processo que parece uma eternidade para quem tem que conjugar as funções da maternidade, de dona de casa, de estudante e de professora, típico da maioria das mulheres deste país.

    Junto com os desafios cotidianos do trabalho educacional e da pesquisa foi preciso, paulatinamente, conjugá-los com a angústia do devir existencial, que mescla a decepção com o ser humano e com o jogo de interesses de cada ser. E, de repente, não mais que de repente, a verdade existencial se desvela, estamos sós, como sempre estivemos enquanto ser humano. O engodo do companheirismo e da amizade se esvai e aqueles que se comprometeram com a travessia simplesmente buscam outros caminhos. A dor existencial das perdas humanas, das decepções, dos conflitos, das doenças do corpo e da alma não tem espaço no Lattes e nem nas linhas deste livro.

    A outra questão que me acompanhou foi o sentido da gratidão a partir do tratado de Santo Tomas de Aquino, utilizado por António Nóvoa. Para Santo Tomas, a gratidão tem três níveis: um nível superficial, um nível intermédio e um nível mais profundo. Segundo Nóvoa, dentre as línguas que expressam a gratidão, somente o português consegue abarcar o terceiro nível, o mais profundo do tratado da gratidão, em que nós dizemos ‘obrigado’. E obrigado quer dizer isso mesmo. Fico-vos obrigado. Fico obrigado perante vós. Fico vinculado perante vós.¹

    Nesse sentido, quero agradecer, em primeiro lugar, à Capes, ou melhor, aos pesquisadores e professores que lutam por uma educação pública de qualidade e compõem esse órgão, e aos professores da Universidade Federal de Minas Gerais, que possibilitaram meus dois anos de bolsa. Esses dois anos não foram suficientes para financiar a pesquisa de levantamento e composição do banco de dados, mas ajudaram muito. A minha gratidão a esses tantos professores e técnicos se traduz na atuação enquanto docente e na luta por uma educação pública de qualidade.

    Ao meu orientador, Tarcísio R. Botelho, agradeço pela compreensão e paciência na leitura dos meus pedaços de textos. Agradeço a todos os meus ex-professores e, em especial, a Afonso Alencastro Graça Filho, Eduardo França Paiva, Marcio Mário Rodarte e Clotilde Paiva. Cada um, a seu modo, contribuiu para minha formação, pois a aprendizagem, enquanto bolsista, aluna e orientanda, ultrapassa as fronteiras do saber e circunscreve nas teias da gentileza e da solicitude.

    Agradeço aos meus alunos, pois a sala de aula me renova a cada dia, e com isso aprendo muito. Aos professores colegas do Campus Muriaé e Barbacena do IFSEMG, particularmente do Núcleo de Humanas, pelas discussões e lutas, que tornaram a estadia em Muriaé mais amena e a recepção em Barbacena calorosa. Agradeço às musas da História, a Marciléia e a Erika, pelo companheirismo nas lutas cotidianas do ato de ensinar História.

    Agradeço aos meus bolsistas particulares, pois, ao retornar as atividades de docência, tive que recorrer a bolsistas particulares, que fizeram a transcrição dos registros de batismo, de casamento, dos testamentos e dos inventários de uma forma muito eficiente. Agradeço à Cíntia Vivas, a postura responsável e o cuidado na transcrição dos testamentos e casamentos de Baependi; à Nathalia Ananias dos Santos, que conheci apenas virtualmente, e foi ética e responsável com a transcrição dos dados. Ao Rogério, pela gentileza em revisar meus textos em última hora.

    Agradeço ao meu amigo Adriano Valério, pela companhia, pelo diálogo, pela disponibilidade em ajudar, pelos mapas das freguesias, pelo apoio e pela confiança em entregar as chaves do seu apartamento. Agradeço também à Edriana, por me socorrer, fotografando documentos de última hora e conseguindo cópias de teses que estavam debaixo de sete chaves.

    Agradeço aos funcionários dos arquivos, uma vez que a pesquisa só é possível de ser feita com o apoio deles. Assim, muito obrigada ao Jairo e ao Fernando Conceição, responsáveis pelo Arquivo Técnico do Iphan em São João del-Rei; à Maria Célia Maciel Dias e Alicia Ferreira dos Santos, da Casa de Cultura Filomena, em Baependi; ao Giovani e ao Padre Geraldo Magela, do Arquivo Diocesano da Matriz do Pilar; à Ana Elisa Maria Duarte Loriere Furtado, notaria da Cúria da Diocese de Campanha; ao bispo dom Frei Diamantino Prata de Carvalho; aos funcionários do Arquivo Público Mineiro; aos funcionários da Biblioteca Batista Caetano; ao secretário da paróquia de Nossa Senhora da Conceição da Barra. Como há funcionários que nos apoiam e auxiliam na busca de documentos, há aqueles que fecham as portas, como aconteceu com a secretária e o pároco da paróquia de Nossa Senhora de Nazaré, em Nazareno.

    Uma mãe só pode estudar se tem alguém para cuidar dos filhos, assim, agradeço o carinho e o cuidado que a babá Vânia, a minha irmã Silmara e a minha mãe tiveram com minhas Marias enquanto cursava as disciplinas do doutorado, suprindo a minha ausência. Minha mãe sempre esteve disponível em ajudar sem entender bem esse universo acadêmico e sei que continua sem compreender a minha ausência, agora que estou tão perto fisicamente.

    Ao Helvécio agradeço o companheirismo e por ter compartilhado 21 anos de sua vida comigo. Entremeio às lutas, às decepções, às críticas e ao milagre da vida, tornamo-nos melhor e mais humanos. A vida é um processo contínuo de aprender, começar e recomeçar, mas só tem sentido quando no devir existe amor.

    Agradeço às minhas Marias, por terem me ensinado a paciência, a tolerância, a gratidão nos pequenos gestos, a inocência, um amor sem medidas e a perseverança.

    Assim, no nível mais profundo da gratidão preconizado por Santo Tomas de Aquino, é que digo a todos vocês, MUITO OBRIGADA.

    PREFÁCIO

    A escravidão negra no Brasil apresenta uma série de singularidade que, embora conhecidas, sempre devem ser recordadas. Ela iniciou-se muito precocemente, com a presença de africanos escravizados já na quarta década depois da chegada dos portugueses à América. E perdurou pelos quatro séculos seguintes, extinguindo-se apenas na penúltima década do século XIX, o que o torna o sistema escravista mais longo das Américas. O Brasil foi o penúltimo país do mundo ocidental a encerrar o tráfico transatlântico de africanos e foi o último a extinguir a escravidão institucionalizada. Segundo o site Slave Voyages,² do total de 12,5 milhões de africanos traficados pelo Oceano Atlântico, 5,8 milhões desembarcaram em Portugal e, principalmente, no Brasil. Ou seja, quase metade de todos aqueles que fizeram a travessia forçada do oceano vieram para o Brasil.

    Apenas na primeira metade do século XIX, mais de 2,4 milhões de africanos desembarcaram no Brasil. Em 1854, a população brasileira era estimada em 7,7 milhões de habitantes, dos quais quase um quarto eram escravos. Ao longo das décadas seguintes, com a extinção do tráfico de cativos, ganhou força a imigração de europeus. Na segunda metade do século XIX, entraram 2,1 milhões de europeus, enquanto a população em 1900 era da ordem de 17,3 milhões. E na primeira metade do século XX entraram 2,7 milhões de europeus, com a população em 1950 elevando-se a quase 52 milhões de habitantes. Portanto, entraram mais africanos que europeus no Brasil ao longo de sua história. A grande imigração europeia não superou o tráfico de africanos em volume total. Além disso, os africanos entraram no Brasil em momentos nos quais a população total era ainda relativamente pequena, tendo, portanto, um impacto muito mais profundo na formação do contingente populacional brasileiro.

    O resultado dessa trajetória fica evidente nos censos brasileiros. Em 1872, o primeiro censo nacional brasileiro e único do período escravista, foram contabilizados quase 10 milhões de habitantes. Desse total, foram registrados 3,8 milhões de brancos e menos de 400 mil indígenas (caboclos). Mais de 5,7 milhões de brasileiros, ou dois terços da população nacional, declararam-se ou foram registrados como pretos ou pardos. Nos censos seguintes, a participação de negros e pardos diminuiu, como consequência da chegada dos imigrantes europeus, mas também dos conflitos simbólicos em torno das declarações e registros de cor.

    O que quero argumentar é que compreender a trajetória e o significado da escravidão no Brasil é fundamental para entender o processo de formação da nacionalidade brasileira. A historiografia brasileira tem encarado esse desafio desde muito cedo. Mas nas últimas décadas, a quantidade de estudos e as abordagens se multiplicaram, tornando esse um tema quente no debate historiográfico brasileiro. Mais recentemente, têm se multiplicado os estudos que abordam não apenas a escravidão em si, mas a população de origem africana como um todo. Assim, ganharam força os estudos das alforrias, das famílias de escravos e de libertos, dos processos sociais pós-abolição. Busca-se, enfim, uma compreensão mais completa do que significou a experiência de ser escravo e de ser descendente de africanos no Brasil.

    A obra de Sirleia Maria Arantes insere-se plenamente nesses novos rumos da historiografia. Ela concentra-se no estudo dos libertos e seus descendentes na Comarca do Rio das Mortes, desde o último quartel do século XVIII até meados do século XIX. O espaço da pesquisa é o da comarca economicamente mais dinâmica desde o declínio da mineração aurífera em Minas Gerais. E o recorte temporal permite acompanhar a passagem da condição colonial àquela de Estado nacional independente. Nesse sentido, a escolha não é descabida porque permite observar de modo mais explícito os rumos que a economia mineira tomou à medida que a escassez de ouro vai dando lugar a uma economia voltada para o abastecimento interno ou de províncias vizinhas. Por outro lado, a vila de São João del-Rei, sede da comarca, terá um papel fundamental nos rumos que a independência política brasileira assumirá na capitania e depois província de Minas Gerais.

    Todas essas dimensões aparecem na obra que os leitores agora têm nas mãos: as mudanças econômicas, a evolução do território, as transformações demográficas, os conflitos políticos. Entretanto, sua principal contribuição é apresentar tais dimensões entranhadas nas vidas dos homens e mulheres libertos que viveram nesse período e nesse lugar. As trajetórias de vida entre a escravidão e a liberdade, as redes sociais que perpassavam a conquista da liberdade e a afirmação no universo dos livres, o mundo do trabalho e da (relativa) autonomia econômica, todos esses processos sociais podem ser vislumbrados por meio de sujeitos históricos de carne e osso, e não apenas de dados estatísticos ou generalizações. Músicos e tecelãs, professores e barbeiros-cirurgiões, surgem para nos mostrar os horizontes possíveis de se alcançar nessa sociedade, ainda que carregando a marca do passado familiar no cativeiro. As redes de compadrio mostram algumas das estratégias para garantir o apoio em momentos desafiantes da vida. A busca por distinções sociais explicita as contradições de uma sociedade que se ordenava cada vez mais por princípios liberais desde a Constituição de 1824, mas que ainda carregava em suas vivências as práticas próprias do Antigo Regime.

    Enfim, o leitor tem agora a oportunidade de conhecer não apenas parte da história da Comarca do Rio das Mortes, mas, sobretudo, do Brasil e de alguns dos muitos homens libertos e seus descendentes que forjaram nossa nacionalidade.

    Tarcísio R. Botelho.

    Professor adjunto em História do Brasil, UFMG, CNPq.

    APRESENTAÇÃO

    Desde os anos 1980, os historiadores da escravidão no Brasil vêm se dedicando aos estudos relativos à família escrava, mergulhados na extensa documentação existente em nossos arquivos. Resultou daí o abandono da velha tese, segundo a qual os escravos brasileiros não se organizavam em famílias e viviam em ambiente promíscuo, incentivado por enormes senzalas, onde se misturavam todos. Depois de décadas de competentes pesquisas sabe-se que nada disso foi a regra. As famílias escravas sempre existiram, desde o século XVI, sob distintos formatos, tanto nas áreas rurais quanto nas urbanas, fomentando-se marcadamente a partir do século XVIII. A família foi um dos pilares sobre os quais a escravidão se afirmou e se manteve, mas, também sobre ele a libertação se fez possível e foi propagada. A família dos libertos e dos não brancos nascidos livres iniciou-se, muitas vezes, ainda no cativeiro, e quando se constituiu depois dele, ainda assim reproduziu muito do que se desenvolvera sob o domínio senhorial.

    Depois dos estudos sobre a família escrava e de se conhecer finalmente a importância dela para a conformação de enorme população de libertos e de seus descendentes nascidos livres nas Minas Gerais (e no Brasil), obviamente, os historiadores vêm estudando atentamente a formação das famílias entre esses dois últimos grupos sociais. Cada vez mais e melhor se conhece a complexidade dessa história, que produziu realidades conformadoras de muito do que somos e de como vivemos hoje. Trata-se, portanto, de história relativamente recente, que envolveu nossos ascendentes nem tão distantes. Inúmeras famílias mineiras de hoje nasceram nos séculos XVIII e XIX e ainda trazem marcas dessa trajetória, embora algumas delas, mormente as fenotípicas, passem despercebidas por nosso olhar contemporâneo, por vezes descendente direto dessa experiência.

    Alguns aspectos que marcaram a formação dessas famílias de libertos e de seus descendentes são imprescindíveis chaves de leitura para se compreender a sociedade escravista mineira e devem ser aqui ressaltados, ainda que rapidamente. Primeiramente, a associação entre a grande quantidade de alforrias processadas e a formação dessas famílias. É possível traçar um paralelo entre as duas situações, bem como perceber a dependência mútua. Isso fica claro, por exemplo, no que se refere ao maior número de mulheres entre os alforriados e a grande quantidade de famílias matrifocais existentes, chefiadas por mães, cujos filhos, muitas vezes, eram de pais diferentes. A presença masculina nesses núcleos era quase sempre residual. Essas mulheres eram o eixo em torno do qual filhos, afilhados, parentes e agregados se constituíam em família.

    Outro aspecto importantíssimo era a mescla biológica e cultural que caracterizou esse quadro familiar. Desde o cativeiro até as seguidas gerações nascidas livres, a mistura entre qualidades e condições ocorreu intensamente, atendendo a lógicas sociais as mais distintas, que se processaram ao longo do tempo. Famílias mestiçadas ascenderam social e economicamente em uma sociedade que permaneceu fortemente escravista, desigual e hierárquica. A família, claramente, foi estratégia de inserção social, de mobilidade de indivíduos e de grupos e de formações identitárias, que, juntos, foram elementos imprescindíveis no processo de produção do brasileiro, como o conhecemos hoje, e do universo cultural complexo, rico e multifacetado que surgiu daí e que chegou até nós.

    Ora, o estudo realizado por Sirleia Maria Arantes, originalmente apresentado como tese de doutorado em História, é contribuição importante para se aprofundar o conhecimento sobre a história das famílias no Brasil. O que se pode ler neste livro resulta de uma extraordinária pesquisa realizada em vários arquivos, que abrangeu documentos de natureza diversa, analisados sob a luz de historiografia pertinente e de reflexões conceituais e metodológicas adequadas. A vida das famílias de libertos e de seus descendentes foi investigada de maneira competente pela historiadora, que nos conta sobre como se formaram, quem eram os seus membros, como se relacionavam, onde moravam, como procuravam se vestir e moldar sua aparência, como eram vistos por gente de outras qualidades, como constituíram fortunas e, também, como reproduziram valores sociais e a própria escravidão. Longe de reforçar velhos estereótipos ainda em vigor, Sirleia nos convida a mergulhar com ela em uma realidade escravista complexa, diversa, porosa, plena de conflitos e de negociações que coexistiam. Esse universo ainda é desconhecido do grande público e até de estudiosos que se dedicam a outros temas e, por isso, muitas vezes, gera desconfianças entre os leitores que continuam tomando o imaginário do tronco como marcador de sua leitura histórica. Por isso mesmo, trabalhos como o de Sirleia têm sua importância aumentada. São eles, a partir de sua competente elaboração, que combatem antigas e novas versões históricas construídas ao sabor das conveniências políticas, teóricas e ideológicas de cada época.

    Eduardo França Paiva

    Professor titular em História do Brasil, UFMG,CNPq

    LISTAS DE ABREVIATURAS

    Sumário

    INTRODUÇÃO 23

    Parte I: Dos sertões proibidos à ocupação territorial: as antigas freguesias da Comarca do Rio das Mortes 45

    CAPÍTULO 1

    AS FUMAÇAS DO OURO: AS FREGUESIAS DA COMARCA DO RIO DAS MORTES 47

    1.1 ENTRE A FÉ E A LEI 48

    1.2 A FÊNIX DA COMARCA DO RIO DAS MORTES: A FREGUESIA DE NOSSA SENHORA DO PILAR 66

    1.3 A TOCA DO PAPAGAIO: A FREGUESIA DE NOSSA SENHORA DA CONCEIÇÃO DE AIURUOCA 80

    1.4 UM POUSO ALEGRE: A FREGUESIA DE NOSSA SENHORA DE MONSERRATE DE BAEPENDI 88

    CAPÍTULO 2

    FAMÍLIAS DOS LIBERTOS: OS NÚMEROS ENTRELAÇADOS COM AS VIDAS COSTUMEIRAS 99

    2.1 QUEM ÉS TU? 100

    2.2 QUAL FAMÍLIA É A TUA? 105

    2.3 OS NÚMEROS ENTRELAÇADOS COM O COTIDIANO 121

    2.4 QUEM É TEU COMPADRE? 144

    Parte II: Entre liames, teares, rodas de fiar, agulhas e pontos: as teias das famílias dos libertos e seus descendentes no lado esquerdo do Rio das Mortes 149

    CAPÍTULO 3

    AS FAMÍLIAS DOS LIBERTOS NO LADO ESQUERDO DO RIO DAS MORTES 151

    3.1 AS FAMÍLIAS LEGÍTIMAS DOS LIBERTOS E SEUS DESCENDENTES 153

    3.2 OS CASAMENTOS SEM FILHOS: OPÇÃO OU IMPOSIÇÃO 179

    3.3 AS FAMÍLIAS MESCLADAS: O DESAPARECIMENTO DA COR E DA QUALIDADE 185

    3.4 A FAMÍLIA ILEGÍTIMA: CONCUBINATO OU MATRILINEARIDADE? 187

    3.5 OS FILHOS NATURAIS E A FAMÍLIA CONSANGUÍNEA 193

    3.6 A FAMÍLIA POR AFINIDADE DOS LIBERTOS: SOLTEIROS SEM FILHOS 203

    CAPÍTULO 4

    O MAPA DE POPULAÇÃO NAS FREGUESIAS DO PILAR, DE AIURUOCA E DE BAEPENDI NA DÉCADA DE 1830 209

    4.1 OS MAPAS POPULACIONAIS DAS FREGUESIAS DE AIURUOCA, DE BAEPENDI E DO PILAR 210

    Capítulo 5

    Entre liames e redes: do ofício mecânico, das primeiras letras e, das patentes à mobilidade social e ao parentesco espiritual das famílias dos libertos 219

    5.1 AS VÁRIAS INDÚSTRIAS E OFÍCIOS DAS FAMÍLIAS DOS LIBERTOS 221

    5.2 OS OFÍCIOS MECÂNICOS DOS LIBERTOS: MÚSICO, CIRURGIÃO-BARBEIRO, BOTICÁRIO E PROFESSOR DE PRIMEIRAS LETRAS 229

    5.3 AS PATENTES – A DISTINÇÃO PELO BEM VESTIR 239

    5.4 A INSERÇÃO SOCIAL DOS LIBERTOS E O DESAFIO DA ORDEM SOCIAL NA VILA DE SÃO JOÃO DEL-REI 246

    5.5 DO OFÍCIO MECÂNICO AO PARENTESCO ESPIRITUAL DAS FAMÍLIAS DOS LIBERTOS 251

    5.6 ENTRE TEORIA E PRÁXIS: A ANÁLISE DE REDES SOCIAIS (ARS) 253

    CONSIDERAÇÕES FINAIS 269

    FONTES DOCUMENTAIS E REFERÊNCIAS 273

    a) Fontes manuscritas 273

    b) Sites 280

    c) Fontes impressas 280

    d) Bibliografia 284

    ANEXO 1

    TESTAMENTO (SÉCULOS XVIII E XIX) 303

    INTRODUÇÃO

    Este livro, intitulado No rendilhado do cotidiano: a família dos libertos em Minas Gerais (c.1770 - c.1850), tem como objetivo analisar a constituição da família e das redes sociais dos libertos no transcorrer do século XVIII até meados do século XIX, na Comarca do Rio das Mortes. O conceito de família mobilizado é o que mescla a unidade familiar enquanto unidade produtiva sintetizada pelo conceito das ganze Haus³ e as relações tecidas para além dos laços consanguíneos e dos imperativos da procriação estabelecidos pelos laços de matrimônio, pelo concubinato, pelas redes de compadrio, pelas amizades e pela afinidade. Para perceber a constituição das famílias dos libertos e seus descendentes, foram tomados como referências a produção historiográfica baseada na composição das famílias nas sociedades pré-industriais na Europa, o conceito de família patriarcal mobilizado no Brasil e a linhagem com ênfase nas lembranças africanas marcadas pela tradição. O intuito era chegar a um ou a diferentes modelos de famílias presentes na vida dos libertos e suas redes de relações sociais estabelecidas para ascender e cotidianamente sobreviver e, assim, legar um patrimônio material e imaterial aos seus descendentes.

    A família poderia ser formada no status de livre e no âmbito do cativeiro. Em ambos os casos, pretende-se observar a presença de relações estáveis e se se constituíram em estratégia de distinção social e de obtenção de bens materiais e da liberdade. Desse modo, os libertos e seus descendentes constituíram famílias e estabeleceram as mais diversas teias sociais, quer como pai, mãe ou padrinho. As redes sociais eram desenvolvidas por meio de laços que uniam um grupo de pessoas que desenvolviam relações interpessoais vinculando o indivíduo a outros integrantes da rede social na qual estava inserido. Assim, a análise sobre a família dos libertos e seus descendentes e suas relações consanguíneas, por afinidade⁴ e parentesco espiritual, permite compreender a dinâmica da sua constituição, formação e manutenção de suas redes sociais.

    O termo libertos e seus descendentes constitui uma estratégia metodológica para identificar, quantificar e analisar um grupo classificado de forma diversa na documentação (negro forro, preto mina, preto, crioulo, crioulo livre, crioulo forro, cabra, cabra livre, cabra forro, pardo, pardo forro e pardo livre). Tal conceituação permite apreender tanto a condição de forro quanto a condição daqueles que nasceram de ventre livre. Por sua vez, de alguma maneira eles traziam os resquícios do cativeiro na primeira, na segunda, na terceira ou até mesmo na quarta geração interligados por vários laços. Uma das consequências desses laços era a constituição da família que se constituía nas vilas, nos subúrbios, nos arraiais, nas grotas e nos sertões proibidos da Comarca do Rio das Mortes.

    Para viabilizar esta obra, foram delineados tanto o recorte espacial quanto o cronológico. O primeiro é necessário devido à amplitude territorial e expressiva massa populacional da Comarca do Rio das Mortes. Assim, optou-se por trabalhar com as circunscrições eclesiásticas, precisamente as três freguesias: Nossa do Pilar de São João del-Rei, Nossa Senhora de Monserrate de Baependi e Nossa Senhora da Conceição de Aiuruoca. Ainda no tocante a esse recorte, foi mantida a circunscrição espacial das freguesias, independente dos seus desmembramentos e alterações ao longo do tempo, ultrapassando as divisões jurídicas e eclesiásticas e focando o surgimento e a manutenção das famílias no mesmo espaço. Não obstante, é preciso considerar que nos aglomerados urbanos sem o estatuto de vila havia um território de dinâmicas relações humanas [...] lugar de homens, mulheres e crianças em atividades cotidianas de vivência.⁵ Para representar esse espaço, foram utilizados os mapas confeccionados nos setecentos para além dessas representações e foi feita a opção por utilizar os recursos da comunicação cartográfica e da cartografia digital, a fim de representar a região estudada. A metodologia de análise dos mapas históricos é o georreferenciamento e o tratamento da informação espacial (GIS), elaborando croquis do mapa original por meio de mapa exaustivo, coleção de mapas e mapa de topônimos atuais.⁶

    Os pontos em comum das três freguesias são o período de instituição e o processo de colação. Além disso, geograficamente, estavam na margem esquerda do Rio das Mortes, eram circunvizinhas e partilhavam as divisas eclesiásticas e as civis (os termos pertencentes às respectivas vilas). Já a proximidade dessas freguesias com o Caminho Velho e o Novo facilitava o comércio interprovincial com a praça mercantil do Rio de Janeiro.

    O período da transformação dessas freguesias em vilas são 1713, 1814 e 1834, demonstrando a força política, civil e econômica de cada uma delas. A escolha de três freguesias tem como pano de fundo apreender as diferentes composições populacionais e as redes sociais estabelecidas pelos seus fregueses libertos. As diferenças de formação populacional, econômica e política permitem descortinar a singularidade da Comarca do Rio das Mortes, cuja cabeça, a vila de São João del-Rei, possuía uma dinâmica rede de relações mercantis e uma densidade populacional que demandava serviços e ofícios em boa parte prestados por libertos e seus descendentes. A vila de São João del-Rei possuía expressiva população liberta, desde os recém-chegados da África, como os nascidos no Brasil.

    A freguesia de Nossa Senhora de Monserrate de Baependi foi constituída de maneira distinta da freguesia de São João del-Rei, pois sua formação ocorreu às margens do Caminho Velho e sob a proteção do ilhéu Tomé Rodrigues Nogueira do Ó. Possuía uma densidade urbana menor, com poucas capelas curadas e com um grande número de proprietários de terras e escravos voltados para a produção de tabaco.⁸ Nesse contexto, a política da alforria acontecia, mas em menor número quando comparada a locais marcadamente urbanos. Essa freguesia tornou-se um local atraente para a população livre de cor, uma vez que passou a demandar variados ofícios na então nova vila, particularmente no contexto da crise da mineração e na chamada acomodação evolutiva da economia.

    Para contrabalancear essas realidades com dinâmicas populacionais diferentes, tem-se a freguesia de Nossa Senhora de Aiuruoca, com várias capelas curadas, em uma região de fronteira aberta e limítrofe entre as províncias de Minas Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro. Nessa região era necessária a ocupação territorial para garantir a posse do território provincial, defender os limites da província de Minas Gerais, combater o contrabando nas diferentes trilhas clandestinas e proibir a abertura de novas picadas para além dos caminhos oficiais. A região recebeu desde os descobrimentos auríferos uma expressiva população liberta, que compunha as seis Ordenanças de pé, compostas em grande parte por homens libertos e seus descendentes, na primeira metade dos setecentos. A necessidade de estabelecer a ordem em uma região distante da cabeça da comarca do Rio das Mortes propiciou a criação do Julgado de Aiuruoca, o que possibilitou relativa autonomia na aplicação das leis e nos registros cartorários. Esse contexto permitiu a formação de densa rede comercial no entorno desse Julgado, impingindo um caráter urbano na sede da freguesia, o que propiciou a ascensão social e o acúmulo de pecúlio por parte dos escravos para a aquisição de liberdade. Outro fator a ser mencionado é a proximidade desse local com o Caminho Novo (Registro do Rio Preto), aspecto que permitia uma interligação com a praça mercantil do Rio de Janeiro.

    No tocante ao recorte cronológico desta pesquisa (1770-1850), cabe salientar dois fatores. O primeiro é a disponibilidade de fonte, uma vez que a série de registros de batismos é expressiva para as três freguesias nesse período. Na freguesia de Nossa Senhora do Pilar de São João del-Rei há registros de atas batismais desde 1736, com pequenas lacunas, até 1850; na freguesia de Nossa Senhora da Conceição de Aiuruoca, tais registros estão disponíveis desde 1734, com uma lacuna entre 1749 a 1760, até 1850; e na freguesia de Nossa Senhora de Monserrate de Baependi, os registros disponíveis datam de 1724 a 1850, com uma lacuna entre 1740 e 1770.

    O segundo fator para definir o recorte temporal desta obra fundamenta-se na ordem econômica e social, pois as três freguesias estão localizadas nas proximidades dos caminhos que interligavam o litoral com a região mineradora. Tais freguesias constituíam uma região dinâmica, quer no auge da mineração, quer na chamada acomodação evolutiva rumo à economia de abastecimento,⁹ que transformou a Comarca do Rio das Mortes na principal fornecedora de gêneros alimentícios para a Corte do Rio de Janeiro.¹⁰ O dinamismo econômico dessa Comarca é atestado pelo crescimento populacional e pela ampliação de suas relações comerciais, pois a vila de São João del-Rei se constituiu em importante polo comercial, que centralizava o fluxo de mercadorias de diversas regiões da Capitania mineira para o Rio de Janeiro.¹¹ Cabe ainda ponderar que, mesmo com o processo de Independência do Brasil, não houve mudanças nas estruturas sociais e econômicas do Império. Tais estruturas só foram alteradas com a lei proibindo o tráfico transatlântico e com a Lei de Terras (ambas de 1850).¹²

    As fontes desta obra são os registros de batismos, de óbitos e de casamentos, as listas nominativas, os testamentos, os inventários post mortem, as Cartas Patentes e Nobramentos, os Acórdãos da Câmara e Cartas de Exame de Ofício, a cartografia da Comarca do Rio das Mortes e os Documentos Interessantes para a História de São Paulo. Foram utilizadas, ainda, as fontes impressas da freguesia de Nossa Senhora do Pilar, da vila/cidade de São João del-Rei, de Nossa Senhora de Monserrate do arraial/vila de Baependi e de Nossa Senhora da Conceição do arraial/vila de Aiuruoca no período de 1770-1850. A maioria dos livros de batismo, de óbito e de casamentos está disponível para pesquisa, respectivamente, no Arquivo Eclesiástico da Matriz de Nossa Senhora do Pilar de São João del-Rei (AEMNSP/SJDR) e no Arquivo Eclesiástico da Diocese de Campanha (AED/Campanha), com cópia no site Family Search (https://familysearch.org).

    O banco de dados de batismos, de óbitos e de casamentos para a freguesia de Nossa Senhora do Pilar foi transcrito e organizado pela professora Silvia Brügger, em parceria com a professora Maria Leônia Chaves e Teresa Cardoso. O outro banco de óbitos, que completa o primeiro, foi transcrito e organizado pelo professor Douglas Libby.¹³ O banco de dados, dentro do recorte desta obra, corresponde a 35 livros de batismo, 12 livros de matrimônio e 19 livros de óbito. A esses livros somam-se um livro de batismo de Bom Sucesso, um livro de batismo de Conceição da Barra e dois de batismo de São Miguel Arcângelo de Cajuru.¹⁴ Já a Diocese de São João del-Rei não possui um único arquivo para a guarda de todo seu acervo. Assim, muitos livros de batismos, de casamentos e de óbitos se encontram nas paróquias que se desmembraram da freguesia de Nossa Senhora do Pilar nos oitocentos.

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