Sem os dentes da frente
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Sobre este e-book
Esse apanhado serve como um desenho do caminho trilhado pelo novo livro de contos de André Balbo. Como escreve Cristhiano Aguiar na orelha, Sem os dentes da frente segue uma tradição insólita latino-americana, ficando, no campo das referências, entre um Julio Cortázar e uma Mariana Enriquez.
"A unidade do livro repousa na utilização da ideia de ausência (e a falta de dentes é apenas uma delas) como elo articulador dos contos. Os contos de Balbo nos enredam, a partir do título, a fim de que sempre especulemos sobre qual ausência – e, talvez, de qual signo dentário – será abordada na história seguinte", arremata Aguiar.
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Sem os dentes da frente - André Balbo
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Boa leitura e nunca esqueça: o canto é conjunto.
Dios está en los detalles de la dentadura
Valeria Luiselli, La historia de mis dientes
Casa vazia 5
Os desaparecidos 9
A casa de boneca 19
Híbridos 25
O duelo mais alto 31
Um dragão na praça 37
Búfalos em náusea 43
Com a ponta do cigarro acesa 47
Recenseamento 61
Jogo da memória 65
Sem os dentes da frente 69
Bruxismo 73
Casa vazia
Poderia ter sido uma pulseira, a aliança, um relógio de parede, o controle da
tv
, mas quis o destino que numa manhã ela acordasse no chão frio.
O sumiço da cama não incomodou a dona do apartamento. As coisas sumiam mesmo. Além do mais, tinha passado o último mês dormindo quase sempre no sofá. Depois de duas ou três noites, já nem mais sentia o desconforto. Era pequena e cabia com folga nos três assentos, pegava uma manta aveludada e estava feita. Noites bem dormidas não eram mais uma necessidade diária, estava afastada do trabalho.
Na primeira noite sem cama, assistiu a três filmes. No último deles, um filme de terror hispano-mexicano, quando finalmente sentia as pálpebras pesadas, perdeu o sono ao se dar conta de que um homem gordo que entrava em cena era o mesmo ator que interpretava o Seu Barriga, do seriado favorito do primeiro namorado. Foi dormir por volta das 5h30, se lembrou de ter visto no celular que, algumas horas depois, quando ela acordou, já não estava mais lá.
Como estava sem responder a maior parte das mensagens e não tinha ninguém com quem quisesse falar, não se importou. Sentindo a barriga roncar – fazia talvez dois dias que não ingeria uma refeição de verdade – e a cabeça doer, se empurrou até a cozinha. Não achando nenhuma panela, desistiu dos ovos fritos antes mesmo de abrir a geladeira. Melhor assim: ao abri-la em busca de um pedaço de queijo, os ovos tinham sumido.
Almoçou três fatias de queijo branco e duas torradas. Indiferente ao próprio bafo, porém incomodada com uma lembrança distante de ter tido cárie na infância, foi até o banheiro. Esfregou os dentes com o indicador mentolado e fez bochecho com a água do chuveiro, dizendo para si mesma que a pia que tinha desaparecido era mesmo feia.
E assim nos próximos dias as coisas continuaram sumindo. Não doía, não era ruim. Acordava, abria os olhos, e a coisa já se tinha ido. Chegou a arriscar um inventário mental, por pura distração, percorrendo os cômodos com olhos minuciosos, sempre evitando o quarto dos fundos em suas contagens. A porta ficava trancada, e a chave, presa a um chaveiro da Hello Kitty, enfiada no bolso da calça. O importante eram os outros objetos.
Lâmpadas, abajures, vasos, porta-retratos, livros, prateleiras, clipes, lápis, canetas, caderninhos, notebook, mesas, cadeiras, calcinhas, gavetas, cômoda, cortinas, penteadeira, maquiagens, pratos, talheres, micro-ondas, bisnaguinhas, requeijão, chocolate em pó, mel. A cada desaparecimento, ela por algum tempo se pegava pensando nas suas memórias da coisa sumida. Não chegava a sentir saudade, mas algo instintivo a fazia querer confirmar para si que algumas coisas tinham de fato existido.
Atenta para o frio que se intensificava e para a permanência do armário, ela, cuja legging frouxa tinha desaparecido das pernas, vestiu uma calça de moletom grossa e duas blusas de lã. Na mesma semana viu desaparecerem as mantas e os cobertores. Dormiu enrolada num tapete e, ao acordar, com o umbigo para baixo, não se viu acometida por uma crise de espirros. O pó tinha desaparecido.
Os últimos itens a fugirem do apartamento, numa mesma manhã, foram a maçaneta da porta de entrada, o espelho na parede sem pia e duas fatias de pão bolorento. Pouco se importava: não pretendia sair nem receber ninguém, muito menos fazia questão de comer e encarar os hematomas espontâneos do próprio rosto. No máximo, de tempos em tempos, quando se deixava entregar a um instante de inquietude, tocava os dentes da frente, provando se ainda estavam ali.
Aos poucos, já acostumada aos cômodos vazios, começou a perceber que não só as coisas mas as memórias associadas a elas também estavam desaparecendo. Dias depois do sumiço da
tv
já não se lembrava de nenhuma série ou filme assistidos nas últimas semanas. Em algum momento sequer sabia a diferença entre uma série e um filme. Lembrava-se de ter perdido álbuns e retratos, mas não sabia que fotos estavam neles. Só sabia como tomar banho – lavava o mínimo – porque o chuveiro ainda não tinha desaparecido.
Numa madrugada, olhando pela janela a luz acesa de um apartamento no prédio da frente, chegou a se questionar se morava de fato no 14º andar. A ideia de organizar as coisas com números pareceu arriscada: se eles sumissem, ou se embaralhassem, para onde iriam as coisas elas mesmas? E ainda assim talvez fosse menos perigoso dar números do que dar um nome. Tentou cantarolar para afastar a ideia, mas se engasgou com a saliva, sem saber se aquilo era uma tosse ou a própria melodia.