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Você morre quando esquecem seu nome
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Você morre quando esquecem seu nome
E-book111 páginas1 hora

Você morre quando esquecem seu nome

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Sobre este e-book

Salvador, a cidade mais negra do Brasil, é o palco dos oito contos reunidos neste livro. A violência policial e o racismo descritos no livro faz com que essas histórias se tornem uma espécie de realidade brasileira disfarçada de ficção. Tenente Marcus, um das histórias da coletânea, venceu o Prada Feltrinelli Prize 2016.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento4 de jun. de 2020
ISBN9786587042015
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    Você morre quando esquecem seu nome - Flávio VM Costa

    Céline

    Parte I

    CHORAR UM AMIGO

    Sim, eu sou preto. Nunca neguei a ninguém. Sou um preto diferente porque nunca perdi um amigo para a violência. Nunca tinha perdido, quero dizer. Todo preto é diferente, você me dirá. Toda pessoa é única, tem suas particularidades, suas idiossincrasias. Você usará palavras bonitas, como se eu estivesse desacostumado a ouvi-las. Fui morador deste bairro periférico de Salvador, de uma parte por assim dizer diferente do bairro, uma zona quase de classe média, repare na qualidade das casas na rua onde me criei, saboreie esse sorvete daqui, é o mesmo servido aos sócios do Clube Inglês, no centro da cidade. É o mesmo, prove! Delícia o de manga, não é? Eu estava dizendo que nunca um amigo meu havia sido assassinado, nem pela Polícia Militar, nem pela gente do crime, essa mesma gente com quem joguei bola no Centro Social Urbano, que fica aí do lado, caras que agora disputam cada boca de fumo de Pernambués. São três, quatro, cinco, dez facções… um amigo meu nunca tinha sido varado de bala até o sábado anterior ao carnaval. Recebi a notícia num quarto de hotel de praia, onde me hospedava em companhia de minha esposa. Sou um homem formal que diz a alguém que acaba de conhecer esta é minha esposa. Sou um cara meio antiquado e até galguei alguns patamares na escala social, pois passo férias em balneários onde os comerciantes têm coragem de cobrar duzentos contos por uma moqueca de peixe com camarão e eu tenho a petulância de pagar, pois sou conhecido como um perdulário, e aqui em Pernambués nós sempre tratamos bem o português, fique você sabendo, em casa era proibido usar gírias e meus pais implicavam com meu tá ligado, você entende? Não precisávamos entrar no movimento negro, nos filiar a partido de esquerda para andar com altivez, nós nunca precisamos disso, de bengalas coletivas, da proteção grupal, andamos sós, nos viramos sós, acredito sim nisso, que cada um se vira como pode e vamos deixar de demagogia, você me desculpe a prepotência, nós somos mesmo pretos diferentes e houve um chefe que me chamava de Rei do Congo, pelo meu andar, o meu andar altivo. Era ironia, claro, uma piada e também um reconhecimento dissimulado de minha postura nada servil. Nós somos filhos de trabalhadores de nível médio do Polo Petroquímico, filhos de taxistas, de sargentos do Exército, e meu avô era dono de duas padarias. Não somos pouca merda, somos um prato cheio de cocô. Estávamos e estamos longe da riqueza, só que somos remediados. Não estamos assim lá embaixo, lá no final de linha do bairro, no Alto do Cruzeiro, na Guine, onde meu amigo foi assassinado com não sei quantos tiros. E o que se faz quando um amigo morre, se chora, não é mesmo? Não consegui chorar porque a morte dele já era um fato esperado, ele até durou demais, morreu depois dos trinta e eu sabia que ele havia passado um tempo na Lemos de Brito por participar de assaltos a bancos, veja como era adequado o apelido de Loucão que demos a ele, o abestalhado furtava carros na Guine, não se rouba em sua própria área, uma regra elementar do mundo do crime. Ele era um cara digamos assim meio rebelde, corajoso, audacioso. E altivo também ele era assim como eu sou. Porém, altivo do jeito dele. Era também um sujeito extrovertido, lembro que rimos muitas vezes juntos e era difícil vê-lo abatido pelas chamadas dificuldades da vida. Sinto agora saudade de nossas risadas simultâneas e sei que agora sempre sentirei essa saudade. E ele se destacava também pela inconsequência em seu modo de agir. Uma vez a gente quase morreu nas mãos de um policial civil bêbado e esse policial civil bêbado saía do antigo Espaço Útil, que ficava ali no começo do Cabula, após a ladeira, e era para lá que nós estávamos indo, para tomar umas cervejas e paquerar mulheres, quando no final da rua Thomaz Gonzaga, quase na esquina, Loucão encarou o policial civil bêbado que vinha na direção contrária à nossa, saindo justamente do Espaço Útil, e Loucão disse o que você está olhando? vá se foder, meu irmão, foi algo assim que ele disse, Loucão não admitia olhares atravessados, e o policial civil bêbado disse como é que é? e apontou uma pistola em nossa direção, e naquele exato momento eu estava encostado em um poste e fiquei paralisado, de lá eu não saía, não conseguia reagir, foram poucos segundos em que achei que iria morrer, morrer do nada, e se não fosse a atitude de Michel que teve a frieza, Michel, o Gato Mestre, teve a frieza de chegar no policial civil bêbado e dizer calma, calma, eu conheço você, rapaz, talvez eu tivesse morrido mesmo, e Michel realmente conhecia o policial civil bêbado, que por sua vez respondeu você me conhece de onde, rapaz, de onde é que você me conhece? e Michel repetiu calma, calma, calma e aos poucos conseguiu convencer o policial civil bêbado que realmente o conhecia e que nós éramos gente boa e que tudo não passou de um mal-entendido, e assim o policial civil bêbado não atirou, recolheu a pistola, ainda com desconfiança, recolheu a pistola e o policial civil bêbado era preto e se ele tivesse disparado contra nós, seria mais um caso de preto matando preto em Salvador. Não que os brancos não cometam assassinatos, entenda. Brancos quase sempre são mandantes, convém não sujar as mãos. O ódio racial não está em mim, porém vejo o que acontece e naquela noite tinha pelo menos dois pretos, Loucão e eu, um pardo, Michel, e um digamos socialmente branco, Fabrício, que também ficou paralisado, igual a mim, apenas à espera de receber seu tiro, sem qualquer reação. Loucão já naquela época havia experimentado cocaína, o que marcou o começo do fim de sua trajetória. Michel me deu a notícia da morte de Loucão pelo WhatsApp e como não me respondia, eu falei com Fabrício, que me confirmou a notícia de que Loucão foi alvejado no campo da Guine. Naquele campo eu joguei algumas vezes, não sei dizer quantas, só sei que jogamos uma vez contra os caras de lá, um desafio de galeras, e naquela vez eu me lembro, eu fui goleiro na maioria do tempo que durou a partida e tomamos de doze a quatro, ou de treze a quatro, só sei que acabamos sendo goleados e aquela foi uma partida que mostrou que, por mais que eu fosse bom, por mais que superasse a miopia e fosse ágil, eu nunca seria um goleiro profissional e então era melhor optar pelo plano B, e o plano B me levou a um quarto de hotel de praia, onde estávamos nus minha esposa e eu, lado a lado na cama, e assim dessa forma eu soube que Loucão tinha sido fuzilado pelos caras da Guine, e minha primeira reação foi procurar um short para vestir, pois me incomodava receber nu a notícia da morte de meu amigo, que também deveria estar nu, naquele mesmo momento, ou poucas horas antes, não que isso importe, o corpo de meu amigo deveria estar nu em uma maca gélida do Nina Rodrigues e depois de me vestir com o short e ficar assim digamos mais apresentável, eu pensei será que alguns dos caras que participaram do assassinato de Loucão jogaram aquela partida, será que um dos assassinos fez gol em mim naquele jogo? O jogo foi disputado lá em 1995 ou 1996 ou 1997, não

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