Comunicação de más notícias: a distância entre morte encefálica e a doação de órgão
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Comunicação de más notícias - Isabela Castelli
Comunicação de más notícias:
a distância entre morte encefálica
e a doação de órgão
Houve um tempo em que nosso poder perante a Morte era muito pequeno. E, por isso, os homens e as mulheres dedicavam-se a ouvir a sua voz e podiam tornar-se sábios na arte de viver. Hoje, nosso poder aumentou, a Morte foi definida como inimiga a ser derrotada, fomos possuídos pela fantasia onipotente de nos livrarmos de seu toque. Com isso, nós nos tornamos surdos às lições que ela pode nos ensinar. E nos encontramos diante do perigo de que, quanto mais poderosos formos perante ela (inutilmente, porque só podemos adiar...), mais tolos nos tornamos na arte de viver. E, quando isso acontece, a Morte que poderia ser conselheira sábia transforma-se em inimiga que nos devora por detrás. Acho que, para recuperar um pouco da sabedoria de viver, seria preciso que nos tornássemos discípulos e não inimigos da Morte. Mas, para isso, seria preciso abrir espaço em nossas vidas para ouvir a sua voz. Seria preciso que voltássemos a ler os poetas...
(Rubem Alves, em O Médico
).
Lista de Siglas
ABTO - Associação Brasileira de Transplante de Órgãos
AVCH – Acidente Vascular Cerebral Hemorrágico
AVCI – Acidente Vascular Cerebral Isquêmico
CFM - Conselho Federal de Medicina
CIHDOTT - Comissão Intra-hospitalar de Doação de Órgãos e Tecidos para Transplante
DF - Distrito Federal
DIVEP – Diretoria de Vigilância Epidemiológica
HBDF – Hospital de Base do Distrito Federal
HMIB – Hospital Materno-Infantil de Brasília
HRAN – Hospital Regional da Asa Norte
HRP – Hospital Regional do Paranoá
HRS – Hospital Regional de Sobradinho
ME - Morte Encefálica
OPO - Organização de Procura de Órgãos
PD - Potencial doador
SES/DF - Secretaria de Estado de Saúde do Distrito Federal
TCE – Traumatismo Cranioencefálico
UTI - Unidade de Terapia Intensiva
Sumário
Introdução
Transplante de Órgãos e Tecidos
Legislação acerca do Transplante de Órgãos e Tecidos no Brasil
O Tabu Acerca da Morte
O Conceito de Morte Encefálica
O processo de Comunicação de Más Notícias e Implicações para a Equipe de Saúde
Objetivos
Método
Participantes
Material e Método
Resultados
Dados sociodemográficos
Questões da Entrevista Sobre Conhecimento Técnico
Análise de Conteúdo das Entrevistas
Análise Documental de Prontuários
Distribuição dos casos (público vs. privado)
Perfil dos não doadores
Motivo do óbito
Motivo para recusa
Intervalo de tempo necessário para comunicação com a família
Intervalo de tempo entre entrevista familiar e desligamento dos equipamentos de manutenção de vida corporal
Discussão
Análise documental
Dados obtidos em entrevista
Considerações Finais
Referências
Anexo 1. Termo de Declaração de Morte Encefálica.
Anexo 2. Termo de Consentimento Livre Esclarecido.
Anexo 3. Parecer Consubstanciado do Comitê de Ética em Pesquisa
Anexo 4. Roteiro de Entrevista.
Introdução
Nesta seção, são abordados conteúdos, de natureza científica e social, que justificam a realização deste estudo. A fim de facilitar a leitura, a seção de Introdução foi fragmentada em subtítulos, organizados de forma a apresentar os principais elementos que a literatura, nacional e internacional, sinaliza como relevantes.
O primeiro tópico desta seção diz respeito à temática dos transplantes de órgãos e tecidos, fornecendo dados históricos acerca do desenvolvimento de técnicas que levaram à evolução e crescente sucesso da execução de transplantes de órgãos nas ciências médicas, bem como esclarecendo a distinção entre tipos de transplantes e doadores vivos e cadáveres. Ao final deste tópico, o leitor encontra dados estatísticos brasileiros sobre o atual panorama dos transplantes no país.
A seguir, no tópico acerca da legislação brasileira sobre doação de órgãos e tecidos, abordam-se a evolução das leis, suas interpretações e a forma como foram sendo aprimoradas, até a legislação mais recente, vigente desde 2001.
Mais adiante, o leitor encontra uma apresentação dos conceitos de morte e, especialmente, de morte encefálica, incluindo problematizações quanto a dificuldades de compreensão de conceitos e crenças sobre a finitude e irreversibilidade da morte.
Por fim, modelos de comunicação em saúde e de comunicação de más notícias são abordados. Espera-se, ao término da leitura desta seção, que o(a) leitor(a) consiga elaborar uma relação conceitual e funcional entre os temas referidos: a maneira como o campo dos transplantes de órgãos se desenvolveu, as raízes histórico-filosóficas que ainda hoje amedrontam pessoas que lidam com a morte e o morrer, e como esta dificuldade pode influenciar o trabalho dos profissionais de saúde que executam a tarefa de comunicação de morte encefálica e de óbito de pacientes a seus familiares.
Transplante de Órgãos e Tecidos
A palavra transplante significa ato ou efeito de transplantar, i.e., mudar de um lugar para o outro
(Leite, 2000, p.111). O transplante de órgãos é uma modalidade de tratamento que consiste na substituição de um órgão, ou tecido doente, de uma pessoa (receptor) por outro sadio, de doador vivo ou falecido (Brito & Prieb, 2012; Silveira et al., 2009). Este tratamento poderá proporcionar a cura para uma doença ou aumentar o tempo de sobrevida, bem como a qualidade de vida, de um paciente que já não responde adequadamente às demais terapêuticas empregadas e disponíveis (Cappellaro, Silveira, Lunardi, Corrêa, Sanchez, & Saioron, 2014; Silveira et al., 2009).
O histórico de transplante e doação de órgãos e tecidos está intimamente ligado à tentativa de preservar a vida. Lamb (2000) indica que os primeiros indícios de doações de órgãos estão, intrinsecamente, relacionados ao início da história da humanidade. De acordo com a Bíblia Sagrada, no livro do Gênesis, Eva, a primeira mulher, foi criada a partir de uma costela retirada de Adão, o primeiro doador. Posteriormente, os registros levam aos hindus, e ao cirurgião Sushruta (750-800 a.C), que teria sido o responsável pelo primeiro trabalho de reconstrução de um nariz, quando transplantou um pedaço de pele da testa, inaugurando, aparentemente, o campo da reconstrução facial.
Na China, por volta de 300 a.C., há registros, não sistematizados como nos tempos atuais, de que Pien Chiao teria realizado uma troca de órgãos entre dois irmãos. Já na Idade Média, a lenda de Cosme e Damião refere um episódio em que os Santos teriam substituído a perna de um doente pela perna de um cadáver. Nos séculos XV e XVI há relatos de tentativas de reutilizar tecidos e órgãos - o que seria definido, posteriormente, por transplante (Leite, 2000). No entanto, embora as primeiras tentativas de transplante tivessem demonstrado grande interesse dos estudiosos do corpo humano, parecem ter sido realizadas sem finalidade ou preocupações científicas (Leite, 2000).
Foi Ambrosio Paré (1517-1590), com a descoberta da ligação entre artérias, um dos precursores das técnicas atualmente adotadas em transplante (Leite, 2000). O primeiro transplante do mundo, registrado pela literatura, foi realizado em 1933, na Ucrânia, a fim de tratar um paciente com insuficiência renal aguda. Contudo, a cirurgia não teve sucesso, com o falecimento do receptor, 48 horas após a intervenção (Gregorini, 2010). De acordo com a literatura, este também foi a primeira tentativa de transplante da história com doador cadáver (Bragança, n.d).
Já demarcada a fase científica, o cirurgião John Hunter, em 1771, foi o primeiro a usar a palavra transplante, transferindo dentes de um indivíduo a outro. Meneses (2014) indica que, no ano de 1862, na Rússia, o crânio de um soldado atingido em batalha foi reparado com ossos de um cão. Em 1902, em trabalhos independentes, Ullman, De Castello e Carrel implantaram rins em um mesmo animal e em outros indivíduos da mesma ou de diferentes espécies, percebendo que os rins eram capazes de formar urina imediatamente (Meneses, 2014). Em 1931, na Itália, Gabriel Janelli efetuou um enxerto de glândulas genitais, de um indivíduo a outro. Este caso é bastante polêmico pois se tratava de um doador vivo que cedeu a glândula em troca de uma recompensa financeira (Leite, 2000).
Na década de 1950, começam os registros de obtenção de êxito em cirurgias de transplantes de órgãos. Em 1951, em Boston, nos Estados Unidos da América, o médico David Hume realizou um transplante de rim a partir de doador cadáver, na tentativa - frustrada - de salvar a vida de seu paciente. Nos anos seguintes, juntamente com o cirurgião Joseph Murray, realizaram mais de dez transplantes renais a