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Crítica ao feminismo liberal: valor-clivagem e marxismo feminista
Crítica ao feminismo liberal: valor-clivagem e marxismo feminista
Crítica ao feminismo liberal: valor-clivagem e marxismo feminista
E-book732 páginas10 horas

Crítica ao feminismo liberal: valor-clivagem e marxismo feminista

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A EDITORA CONTRACORRENTE inaugura a coleção Pensamento jurídico crítico, coordenada pelo Professor Alysson Leandro Mascaro, com o título Crítica ao feminismo liberal: valor-clivagem e marxismo feminista. Esta brilhante obra tem como objeto a teoria de Roswitha Scholz e seu conceito de valor vinculado à clivagem de gênero, denominado valor-clivagem (ou valor-dissociação) – modelo teórico ainda pouco explorado em nosso país. A autora empreende uma análise das relações peculiares entre sociedade patriarcal contemporânea e modo de produção, centrado no valor. Esmiúça os contornos da teoria crítica do valor, através de seus principais expoentes; demonstra como as relações do valor-dissociação relativas ao gênero impactam a atuação estatal no que se refere à inclusão das mulheres; afere quais as possibilidades de atuação para o Estado e para o Direito; e questiona a proficuidade da atuação dos movimentos sociais. Trata-se, pois, de uma reflexão não apenas oportuna acerca das interfaces entre sistema econômico e sexismo, mas necessária para que se possa examinar os processos sociais de gênero desde uma perspectiva estrutural e não apenas cultural, evidenciando-se os pilares do patriarcado contemporâneo.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento5 de out. de 2020
ISBN9786588470077
Crítica ao feminismo liberal: valor-clivagem e marxismo feminista

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    Crítica ao feminismo liberal - Taylisi Leite

    polêmicas.

    CAPÍTULO I

    FORMA POLÍTICA, FORMA JURÍDICA E VALOR MASCULINO

    A sorte das minorias, nas sociedades capitalistas, deve ser tida não apenas como replique, no mundo atual, das velhas operações de preconceito e identidade, mas como política estatal deliberada de instituição das relações estruturais e funcionais da dinâmica do capital. Por isso o capitalismo é machista, homofóbico, racista e discriminador dos deficientes e dos indesejáveis. O capital é historicamente concentrado nas mãos dos homens, cabendo à mulher o papel estrutural de guardadora do núcleo familiar responsável pelas mínimas condições de existência do trabalhador e de reprodução da mão de obra.

    Alysson Mascaro¹

    1.1 Forma política

    Diante do monismo jurídico estatal, para compreendermos os limites do Direito em qualquer processo emancipatório (incluindo as relações de gênero), precisamos, antes, entender o Estado (único ente produtor do direito legítimo na sociedade burguesa). A partir da tessitura de toda a trama de conceitos da Teoria do valor-clivagem de Scholz, que aponta amálgama a teoria crítica do valor à dialética do iluminismo para forjar uma compreensão do patriarcado capitalista como estruturalmente dado e, por isso, peculiaríssimo, cumpre-nos perscrutar os aspectos concernentes ao Estado que possam ser extraídos desse teorema. A melhor ferramenta para a compreensão do Estado, nesse sentido, vem da epistemologia marxista, porém, não de qualquer interpretação marxista acerca do Estado, mas daquela que o entende como forma política, desde o surgimento dos denominados debates da derivação estatal, ou teoria materialista do Estado.

    A teoria materialista do Estado não é uma construção teórica fechada. Ao contrário, ela compreende análises bem diferenciadas. O que elas têm em comum é a referência, sempre específica, ao materialismo histórico desenvolvido por Marx e à sua crítica da economia política. Mas o próprio Marx não se ocupou sistematicamente do Estado ou, mais precisamente, da forma política da sociedade burguesa. Em sua obra encontram-se mais exposições esporádicas, por vezes datadas e ocasionalmente também algo equívocas, ou pelo menos mal entendidas sobre esse tema.²

    Em nossa perspectiva, uma adequada compreensão do Estado e da política se dá numa posição relacional, estrutural e histórica, dentro da totalidade da reprodução social. Por essa razão, Alysson Mascaro afirma ser primacial que uma teoria do Estado se fundamente na crítica da economia política capitalista, lastreada, necessariamente, na totalidade social, e, para ele, "o Estado é a forma política do capitalismo".³ As ciências sociais tratam política e Estado identificando-os ao juspositivismo, com base em ferramentas conservadoras, que restringem os fenômenos apreendidos às suas manifestações quantificáveis. A compreensão do Estado está sempre agrilhoada à mitografia contratualista do esclarecimento, e esses padrões não dão conta do entendimento estrutural e histórico dos fenômenos da política e do Estado, nem de seus problemas, contradições e crises. Esse Estado que concebemos hoje nasce como Estado de Direito, liberal (e burguês), fenômeno exclusivo da modernidade, mas vai se reconfigurando; em todas as suas modalidades contemporâneas, só pode ser apreendido como forma política derivada das formas abstratas da economia.

    Conforme Alysson Mascaro: O Estado surge historicamente antes; a forma política estatal surge depois,⁴ isto é, o Estado, primariamente, se compreendido lato sensu, não é um fenômeno moderno/contemporâneo, tampouco uma criação da burguesia, mas há uma especificidade do Estado gestado na modernidade que o aparta de todos os seus antecessores. O diferencial do Estado moderno, cuja formulação metanarrativa vai do Renascimento ao Esclarecimento (modernidade), mas se fixa no Ocidente com as revoluções burguesas (mormente, na contemporaneidade), em relação aos modelos antecedentes, é justamente a forma política, assim como sua relação ideológica com a sociedade civil (polis).⁵

    Deste modo, admitimos que o Estado contemporâneo nasceu atravessado pela luta de classes e pela dinâmica das relações sociais em disputa; no entanto, a instituição Estado não pode ser tomada como elemento fixo do domínio de uma classe, uma vez que o Estado deriva da estrutura do capital, mas não necessariamente é sempre seu agente consciente. Ainda, consideramos que a divisão da sociedade em classes, tal como se verificava no capitalismo liberal clássico e no fordismo, desapareceu. Sabemos que as ideias acerca do Estado não são homogêneas em todo o pensamento marxista, pelo que optaremos por recortar apenas os autores que compreendem o Estado como forma política, correlata às formas do valor, do dinheiro e da mercadoria, vinculando a compreensão da derivação do Estado à crítica do valor (dissociado), permitindo-nos algumas reformulações. Antes, porém, é interessante apresentarmos algumas nuances da compreensão do Estado no pensamento marxista que não aderem à forma política.

    Para começarmos a palmilhar esse trajeto materialista de entendimento do fenômeno estatal, a leitura de Friedrich Engels é oportuna, mas imprecisa para destrinchar completamente o Estado burguês, uma vez que o vincula à uma concepção própria de propriedade privada. Para Engels, o Estado é uma decorrência da propriedade privada e das contradições sociais que esta tem gerado, desde a Antiguidade, situando-se acima da sociedade para promover sua ordenação opressiva.

    Em A Origem da família da propriedade privada e do Estado, ele traz uma definição de Estado nascido direta e fundamentalmente dos antagonismos de classes que se desenvolviam no seio mesmo da sociedade gentílica,⁷ de modo que esta instituição estatal não seria um poder que se impôs à sociedade externamente, da mesma forma que não se configura como a realização da ideia moral na política, tal qual propugna o kantismo, ou como a imagem e a realidade da razão, como na concepção hegeliana, mas um produto da sociedade em determinado nível de desenvolvimento, e que se encontra numa irremediável contradição, dividida em antagonismos irreconciliáveis. Para que estes não destruam a sociedade, seria necessário um poder que se coloca aparentemente acima da sociedade, incumbido de manter os antagonismos em limites aceitáveis, com a manutenção da ordem.⁸

    Mais adiante, na mesma obra, Engels registra certa relativização da concepção restrita, quando reitera o fato de que o Estado nasce da necessidade de conter os antagonismos classistas, mas aponta que este Estado é, por regra geral, o Estado da classe econômica dominante, que, por meio da institucionalidade estatal, vem a se tornar também politicamente dominante, e passa a obter novas formas de reprimir e explorar a classe oprimida. Todavia, segundo Engels, há períodos em que as lutas de classes se equilibram de tal modo que o Poder do Estado, como mediador aparente, adquire certa independência momentânea em face das classes.

    Assim, Engels identifica o Estado com a ideologia do Estado, o que é um equívoco. Conforme bem pondera Pachukanis: O reconhecimento do caráter ideológico deste ou daquele conceito, de modo geral, não nos livra do trabalho de detectar a realidade objetiva, ou seja, aquela que existe no mundo exterior, não apenas na consciência.¹⁰ Além de parecer confundir a forma política com a ideologia, Engels mitiga a função estrutural do Estado, introduzindo uma ampliação da teoria do Estado, justamente como resposta à ampliação ocorrida na esfera política no último terço do século XIX, e inserindo elementos da emergente concepção consensual ou contratualista do Estado no marxismo – o que foi posteriormente aprofundado por Antonio Gramsci. Apesar disso, Gramsci abriu espaço para uma teoria do Estado independente da ciência política, e inaugurou o debate sobre outros lócus políticos na sociedade civil. Nesse sentido, segundo Hirsch et al, ao separar o Estado da política, Gramsci fundou as bases que possibilitaram, posteriormente, a compreensão do Estado e da política como espelhamentos do modo econômico de produção capitalista.

    Foi Antonio Gramsci quem começou a refletir sistematicamente sobre a independência da política e do Estado. O passo decisivo consistiu na superação de um modelo simples de base-superestrutura, no qual Estado e política são compreendidos apenas como reflexo da base econômica. Essa concepção, que tinha menos a ver com Marx do que com a corrente do marxismo dominante no início do século XX, ligava-se a uma noção teleológica dos processos históricos, pela qual a política não tinha lugar enquanto categoria independente. Gramsci, em suas análises das relações de força e de hegemonia, vincula-se a Lenin, mas ultrapassa uma concepção de Estado puramente instrumentalista-voluntarista (BUCI-GLUCKSMANN, 1981, p. 87). Com esse novo passo, que coloca em relação a análise do Estado com a análise de relações de força que não se reduzem a relações econômicas, Gramsci abriu o debate de orientação marxista tanto para uma teorização independente do Estado, quanto para uma compreensão de contingência histórica.¹¹

    No Manifesto do Partido Comunista, Engels e Marx afirmaram que o Estado moderno possui uma vinculação direta com a propriedade privada e com o capital. Segundo eles, o Estado moderno corresponde à propriedade privada moderna, de tal modo que, gradualmente, o próprio Estado é adquirido pelos proprietários privados, por meio dos impostos e das dívidas públicas, ficando completamente à mercê daqueles. Esse Estado possuiria, então, uma existência fora da sociedade civil, através da emancipação da propriedade privada em relação à comunidade, mas ele nada mais seria do que a forma de organização que os burgueses se dão, tanto externa quanto internamente, para a garantia da manutenção de suas propriedades e de seus interesses. Afirmaram categoricamente: o poder político do Estado moderno nada mais é do que um comitê para administrar os negócios comuns de toda a classe burguesa.¹²

    N’A ideologia alemã fica clara uma posição de Engels e Marx avessa ao Estado e à democracia burguesa, pois o ideal democrático plural não convive com o individualismo capitalista, assim como a perspectiva de que os aparatos da superestrutura (como o Estado e o Direito burgueses) devem fenecer com a superação do capitalismo. Para eles, a busca incessante dos indivíduos apenas de seus interesses particulares, na sociedade capitalista, inviabiliza a existência comunitária, e, nesse sentido, o ideal liberal burguês de democracia, no interior desse Estado, é também ilusório.¹³ Seguindo esse raciocínio, em outra passagem d’A ideologia alemã, reiteram a imprescindibilidade do evento revolucionário e a abolição das formas de organização da burguesia:

    (…) tanto para a produção massiva dessa consciência comunista quanto para a realização da própria causa, é necessária uma transformação massiva dos homens que só pode processar-se num movimento prático, numa revolução; que, portanto, a revolução não é só necessária porque a classe dominante de nenhum outro modo pode ser derrubada, mas também porque a classe que a derruba só numa revolução consegue sacudir dos ombros toda a velha porcaria e tornar-se capaz de uma nova fundação da sociedade.¹⁴

    A afirmação, n’A ideologia alemã, de que todas as instituições políticas comuns (gemeinsamen) são mediadas pelo Estado¹⁵ não foi abandonada por Marx em nenhum momento, em todos os seus escritos. Por isso, a partir do olhar de Althusser, os adeptos da derivação afirmam ser possível uma leitura diferente da que fez Lênin, e da qual se extraia a compreensão de Estado enquanto forma política (ou seja, embrionariamente, esta ideia já estaria presente nos textos marxianos). Conforme Joachim Hirsch:

    O Estado é a expressão de uma forma social determinada que assumem as relações de domínio, de poder e de exploração nas condições capitalistas. Para se poder entender isso, devemos, em primeiro lugar, analisar a questão do que é a forma social e como a forma política se relaciona com isso. Uma indicação sobre tal questão pode ser encontrada de forma provisória já em A ideologia alemã.¹⁶

    Na Crítica ao programa de Gotha, Marx, inclusive, não se escusou de levantar o questionamento acerca de como seria o Estado após a superação do capitalismo, dizendo: Então, uma questão se coloca: que transformação sofrerá a essência do Estado em uma sociedade comunista? Em outros termos: que funções sociais – análogas às funções atuais do Estado – nela subsistirão? E pondera: "Essa questão só pode ter uma resposta científica, e não se fará avançar um milímetro o programa, por mais que combinemos de milhares de formas a palavra Povo com a palavra Estado".¹⁷ Porém, ao responder à própria pergunta retórica, em Gotha, propõe uma fase de transição política, na qual o Estado não pode ser outra coisa senão a ditadura revolucionária do proletariado.¹⁸

    A instalação de uma ditadura não seria uma consequência da ausência de uma teoria ou modelo de Estado em Marx, da qual decorreria o primado do partido, mas uma proposta direta para a fase de transição entre o capitalismo e o comunismo, oportunizando as mesmas estruturas do Estado burguês numa de suas piores formas de governo. Ou seja, pela leitura de alguns escritos, a autocracia socialista não seria uma excrescência das lacunas do marxismo, mas uma proposta clara do próprio Karl Marx. É deste eixo, nas obras marxianas, que advém a perspectiva do Estado socialista leninista, e também é aí, em um sentido mais extremo, que está fundado o stalinismo.

    (…) a concepção do Estado como instrumento da classe dominante foi difundida a partir de certas correntes do pensamento marxista. Também mencionamos que essa visão tem suas raízes nas concepções engelsianas, leninistas e revisionistas de Estado (com nuances que as diferenciam entre si), mas que o impulso decisivo para a difusão dessa doutrina se deu por meio do stalinismo e da influência da União Soviética ao redor do mundo. A expansão de tais teorias atingiu inclusive o Brasil (…).¹⁹

    Como, na Crítica ao programa de Gotha, Marx trata o Estado como a máquina governamental, ou o Estado enquanto constitui, em consequência da divisão do trabalho, um organismo próprio, separado da sociedade (…),²⁰ que deve ser superado e abolido com o fim do capitalismo, seu escritos dão margem às mais diversas interpretações, desde a possibilidade de manipulação da máquina estatal no socialismo visando à superação comunista, até a concepção derivacionista da forma política.

    No discurso marxiano, a liberdade e a democracia burguesas são denunciadas como falsas, uma vez que recorrem ao individualismo, ao Estado e ao Direito burguês, como discursos legitimadores e instituições acachapantes, e jamais se transferem do âmbito formal para a concretude da vida. Isto significa, consequentemente, que a democracia burguesa não é, de fato, uma conquista humana para a emancipação.²¹

    As instituições políticas são tanto as internas ao Estado, quanto aquelas que lhe sejam correlatas, gravitando no eixo político da reprodução social. O fenômeno político, no capitalismo, não se limita ao Estado, mas nele se condensa. O Estado figura como núcleo material da forma política capitalista, já que a forma política é derivada das formas econômicas do capitalismo. As revoluções burguesas constituíram o Estado e o Direito como formas acopladas tecnicamente uma à outra. As trocas de mercadorias e o trabalho transformado em mercadoria são os dados que talham a forma-sujeito de direito. A normatividade estatal opera sobre essa forma já dada, conformando-a.

    A partir das formas sociais mercantis capitalistas, originam-se as formas: jurídica e político-estatal. Ambas remontam a uma mesma lógica de reprodução econômica capitalista, tendo como raiz comum a forma-valor. São pilares estruturais desse todo social que atuam em mútua implicação – lembrando que, no juspositivismo, Estado e Direito são vistos como ângulos distintos de um mesmo fenômeno, sendo que o contorno jurídico é constituído pelo político. Essas formas guardam especificidades: o núcleo da forma jurídica, o sujeito de direito, não advém do Estado, por exemplo.

    Acerca dessa mesma ideia fundamental do marxismo com relação ao Estado, seu papel histórico e significação, Lênin fez outra leitura no sentido de que o Estado é produto do antagonismo entre as classes, sendo que a instituição aparece onde e na medida em que os antagonismos de classes não podem objetivamente ser conciliados. E, reciprocamente, a existência do Estado prova que as contradições de classes são inconciliáveis.²² Ao destacar trecho de O 18 brumário de Luis Bonaparte, Lênin compara-o com o tratamento dado à questão do Estado contida no Manifesto, para ele tratada aí de forma muito abstrata, e consigna que: "aqui [no 18 brumário], a questão se põe concretamente e a dedução é inteiramente precisa, bem definida, praticamente tangível: todas as revoluções anteriores não fizeram senão aperfeiçoar a máquina governamental, quando o necessário é abatê-la, quebrá-la".²³

    Lênin, valendo-se da leitura de Marx e Engels, propõe a destruição do Estado, quando afirma que todo Estado é uma ‘força especial de repressão’ da classe oprimida. Um Estado, seja ele qual for, não poderá ser livre nem popular. Marx e Engels explicaram isso muitas vezes aos seus camaradas de partido, mais ou menos em 1870.²⁴ Assim, ele interpreta a obra de Marx e Engels ligando-a, em sua totalidade, à ideia de revolução armada: a essência de toda a doutrina de Marx e Engels é a necessidade de inocular sistematicamente nas massas essa ideia da revolução violenta.²⁵

    Porém, mais adiante, afirma, contundentemente, que a substituição do Estado burguês pelo Estado proletário não é possível sem uma revolução violenta,²⁶ ou seja, num primeiro momento pós-revolução, Lênin não propõe a aniquilação do Estado enquanto forma, e sim enquanto conteúdo (de matriz liberal, burguesa e capitalista), propugnando um Estado proletário em sua substituição por meio da ação revolucionária. Ainda que Lênin tivesse uma clareza na compreensão da forma política e estivesse, na verdade, propondo uma outra forma, não foi o que de fato ocorreu na história da União Soviética. O modelo da URSS é duramente criticado por Kurz e Scholz, como um socialismo de caserna militarizado, que não apenas manteve a forma Estado capitalista, mas que apela para a força e a violência militar, e é incapaz de superar as formas do capitalismo (tantos as formas econômicas que valorizam o valor quanto a forma política estatal). Por isso, a compreensão de eixo marxista-leninista não é epistemologicamente muito congruente com a análise deste trabalho. Nessa toada, consideramos que a abordagem mais adequada a um diálogo com Scholz seria o debate da derivação, que toma as formas sociais do capitalismo presentes em O Capital, de Marx.

    Então, destoando de Engels, e de Lênin (com sua leitura de Marx), não operamos uma definição do Estado simplesmente como um aparato apropriado e oportunizado pelos interesses burgueses. Adotamos as concepções dos debates da derivação. Nesse espectro, de fato, o Estado, constituído conforme o modo de produção capitalista, é rearranjado e transformado na organização política da sociedade burguesa, mas não porque seja um aparato neutro ocupado de forma ladina e oportunista pela burguesia, e sim porque, desde a sua forma, desde a sua estrutura, é uma instituição capitalista.

    O vocábulo derivação advém do substantivo Ableitung, da língua alemã, o que não significa que haja uma simples determinação, sendo o Estado mero resultado da vontade da classe dominante, mas, sim, de um determinado modo de produção e das relações sociais que lhe são inerentes e diferenciadoras dos modos anteriores. Daí o estudo específico do Estado no capitalismo. Nesse diapasão, a teoria da derivação representa um caminho de superação dos impasses políticos. Em meio à falência do modelo de bem-estar social, a emergência do neoliberalismo e o engessamento das leituras do tipo soviético, a esquerda, nessa encruzilhada, vinha refluindo, reduzindo-se a apenas uma postura de resistência ao neoliberalismo, sem proposições alternativas de desconstrução de perspectivas socialistas. No seio das contradições extremas do capitalismo desenvolvido de bem-estar social e já entrevista a crise da experiência soviética, o marxismo avança para compreender o Estado a partir das categorias que estruturam a sociedade capitalista.²⁷

    Inclusive, seguindo a crítica de Kurz,²⁸ a doutrina bolchevique do Estado como comitê burguês e a consequente necessidade de revolução violenta para implantação da ditadura do proletariado tornaram-se marcas do socialismo de caserna stalinista, que é absolutamente incongruente com as leituras de Roswitha Scholz, sempre voltadas à emancipação. As interpretações do leste e do ocidente parecem similares, mas não o são. Enquanto a tradição leninista compreende o Estado capitalista por um viés econômico determinista ao mesmo tempo em que admite um aparelho estatal socialista provisório, a teoria do Estado marxista ocidental passou a desenvolver estudos quanto à forma, até que, na segunda metade do século XX, amadureceu a ideia de que as formas são derivadas.

    O desenvolvimento da teoria materialista do Estado a partir de Marx é caracterizada essencialmente pela diferença entre, por um lado, o marxismo do leste – isto é, o desenvolvido na União Soviética pós-revolucionária e posteriormente nos países de sua área de poder – e, por outro lado, o marxismo ocidental (cf. especialmente, quanto a isto, ANDERSON, 1978). Enquanto o primeiro definiu-se em grande medida pelo interesse acerca do aparelho de domínio estatal-socialista e continha traços economicistas e histórico-deterministas, no interior do segundo realizou-se um crítico e contínuo debate com a perspectiva marxiana. Por fim, tratou-se, igualmente, de transformar em produtiva a análise marxiana das formas sociais para a teoria do Estado, para uma elaboração mais precisa da teoria da ideologia, na tentativa de decifrar a metáfora teórica da base-superestrutura e, nesse contexto, sobretudo, também por essa razão, demonstrar a autonomia dos processos políticos e das lutas sociais para o desenvolvimento social, bem como para a transformação do Estado. Faz parte desse contexto toda uma série de abordagens verdadeiramente diversificadas, que também são desenvolvidas para cada quadro histórico e institucional.²⁹

    Há um impacto na adoção de uma ou outra compreensão. Para a primeira, o Estado é capitalista porque foi forjado historicamente pela burguesia e serve ao modo de produção capitalista; por isso, deve ser destruído junto com o capitalismo. Todavia, a institucionalização do poder político que nasce da revolução socialista seria capaz de estabelecer um outro Estado, proletário, cujo propósito é a realização do comunismo. Para a segunda vertente, o Estado (compreendido enquanto Estado moderno), que se constituiu, em sua gênese, como Estado nacional, constitucional, territorial, soberano, de direito, fundado na legalidade, hierárquico, burocrático etc. é, obrigatoriamente, capitalista. Não existe Estado (moderno) não capitalista, pois essa configuração está na forma em si. Essa intelecção só é possível por meio do estudo (principalmente do Livro I) d’O Capital, onde Marx desenvolve as categorias abstratas (formais) que constituem a economia capitalista, como trabalho, dinheiro e mercadoria. Essas formas são abstratas e derivam em outras, como a forma política.

    Em O capital Marx se limitou à investigação da forma valor e das consequências decorrentes dela sobre o processo de reprodução econômica e o desenvolvimento das relações de classe. Ele não chegou à formulação de uma teoria do Estado. Entretanto, é possível realizar esse passo teórico apoiando-se em sua obra e, consequentemente, desenvolver a forma política, enquanto expressão do modo de socialização contraditório do capitalismo. Aí encontra-se o elemento básico fundamental de uma teoria materialista do Estado.³⁰

    Assim, para o marxismo que compreende o Estado como forma política, o texto-base é O Capital,³¹ uma vez que, nos demais escritos, há severas ambiguidades que possibilitaram a interpretação leninista e, até mesmo, o stalinismo, entre outros regimes do século XX. Nesse compasso, a primeira percepção sobre o Direito como forma social vem de Evguiéni Pachukanis, e a leitura materialista do Estado parte de Louis Althusser.³² Para este, o Estado, ao invés de um aparato burocrático fixo que pode ser usado tanto pela burguesia quanto pelo proletariado, é obrigatoriamente capitalista e epicentro da ideologia do valor, através de seus aparelhos ideológicos: (…) devemos dizer que, em si mesmos, os Aparelhos Ideológicos de Estado funcionam de um modo massivamente prevalente pela ideologia embora funcionando secundariamente pela repressão, mesmo que no limite, mas apenas no limite, esta seja bastante atenuada, dissimulada ou até simbólica.³³

    O Estado, então, operaria como um grande catalisador da ideologia, que se espraia por meio de múltiplos aparelhos ideológicos, de modo que, em todo o tecido social, haveria regiões que se aglutinam como ideologicamente estatais, tal qual proposto por Louis Althusser: Precisemos antes de mais um ponto importante: o Estado (e a sua existência no seu aparelho) só tem sentido em função do poder de Estado.³⁴ Para conceituar melhor, esclarece:

    Designamos por Aparelhos Ideológicos de Estado um certo número de realidades que se apresentam ao observador imediato sob a forma de instituições distintas e especializadas. Propomos uma lista empírica destas realidades que, é claro, necessitará de ser examinada pormenorizadamente.³⁵

    Os maiores exemplos seriam o sistema educacional, que prepara indivíduos para funções correspondentes na divisão social do trabalho; a família, que confere as mínimas condições existenciais do trabalhador e a reprodução geracional da força de trabalho (tema que exploraremos melhor adiante a partir de Scholz); bem como as religiões, os sindicatos, os meios de comunicação de massas, os sistemas culturais e também o meio.³⁶ Essa trama de aparelhos ideológicos e repressivos, por sua vez, possui uma única finalidade precípua, que é garantir a valorização do valor: Como é assegurada a reprodução das relações de produção? Na linguagem da tópica (infraestrutura, superestrutura), diremos: é, em grande parte assegurada pela superestrutura, jurídico-política e ideológica.³⁷

    Os núcleos da sociabilidade na sociedade das mercadorias são, assim, aparelhos ideológicos, que trabalham eminentemente no nível ideológico, constituindo subjetividades e relações sociais. Aparelhos repressivos (polícia, exército) estão praticamente concentrados em mãos estatais, ao passo que aparelhos ideológicos perpassam tanto o Estado quanto se esparramam por regiões do plano político não imediatamente estatais,³⁸ mas secundariamente sim, pois seu funcionamento depende da anuência ou conivência do Estado e do Direito. A ideologia também integra a forma política, entretanto, é preciso enfatizar que não se trata de uma metafísica no plano ideológico, que pode ser alterada com uma mudança de pensamento, de valores e de cultura. Althusser concebe a ideologia replicada pelos aparelhos do Estado como condição sine qua non da reprodução econômica, e vice-versa, de modo que só será aniquilada com o fim do capitalismo, num sentido teórico muito aproximado ao do valor-clivagem de Scholz.

    O domínio estatal não se esgota, portanto, nos aparelhos repressivos, mas também está presente o poder estatal nos assim denominados por Althusser Aparelhos Ideológicos de Estado (AIE). Aqueles aparelhos ideológicos de Estado, cuja concepção se coloca reconhecível na tradição gramsciana do Estado ampliado, compreende por exemplo o AIE religioso (as diferentes Igrejas), o AIE escolar, o AIE familiar, o AIE político (partidos, associações), o AIE da informação (mídia), e daí por diante. A ampliação da compreensão marxista do Estado por parte de Althusser pressupõe, como já havia sido feito em Gramsci, uma interpretação própria do conceito de base-superestrutura.³⁹

    Desta feita, para Hirsch, a proposta althusseriana é boa e pode ser aproveitada desde que a compreensão do Estado e de seus aparelhos repressivos e ideológicos, enquanto elementos superestruturais, não sejam compreendidos como fenômenos secundários que advêm da economia capitalista, mas como parte da totalidade, que articula as dimensões econômicas, ideológicas, políticas e sociais. E, na abordagem derivacionista-scholziana que propomos, quando a família, a igreja, a escola, os meios de comunicação de massas etc. achacam os indivíduos com as constituições determinantes do binarismo⁴⁰ patriarcal (compelindo-nos, violentamente, a corresponder aos parâmetros do que é ser homem e do que é ser mulher) estão realizando o escopo da forma política (na condição de aparelhos ideológicos que a compõem) e essa função está atravessada, obrigatoriamente, pela derivação das formas econômicas do capitalismo.

    As assim chamadas superestruturas, nas quais se alocam também a ideologia e o Estado, não são, segundo esta compreensão, epifenômenos secundários. Pelo contrário, do ponto de vista da reprodução, constata-se que elas são constitutivas para a existência do todo social. O todo social, que Althusser compreende como estrutura dominante, não se deixa reduzir a um traço essencial como a economia. Esse todo e a dominância, verificável no capitalismo, da instância econômica, pode ser compreendida em sua existência apenas através da remissão às instâncias ideológicas e políticas.⁴¹

    Segundo Luiz Felipe Osório, Joachim Hirsch integra, com protagonismo, um grupo de pensadores que, influenciados por Althusser e Pachukanis, a partir da década de 1960, voltaram os olhares para os elementos filosóficos e políticos da superestrutura, apropriando-se das categorias econômicas marxianas: Entre os prenunciadores estão Pachukanis e Rubin. O ponto de partida é a leitura de Althusser, que reverberou desdobramentos teóricos em diversos países, como Alemanha, Inglaterra e França.⁴² Esse movimento teve início na década de 1960, devido ao reconhecimento das insuficiências do modelo keynesiano para dar conta das mazelas do capital, impulsionando os marxistas a voltarem sua atenção para os limites do Estado.

    Desde este ponto de partida, adotaremos, em definitivo, a forma política dissecada por Mascaro (2013), que busca esse conceito em Joachim Hirsch e em Evguiéni Pachukanis, pois sua percepção já aproxima mais da teoria do valor dissociado, uma vez que Roswitha Scholz insiste na ideia de que o binarismo e a hierarquização de gêneros não são meramente culturais, ideológicos ou simbólicos, embora obviamente tenham essa dimensão, ao passo que Mascaro também compreende as relações de gênero e raça como necessárias ao capitalismo.

    1.1.1 Forma política e debates da derivação

    Os chamados debates da derivação, a despeito de suas múltiplas divergências internas, serão tomados como ponto de parte de nossa compreensão do Estado, uma vez que reposicionam sua compreensão política e teórica em relação ao capitalismo, através de uma releitura de Marx. "O debate desenvolveu-se durante mais de uma década, envolvendo especialmente pensadores da parte ocidental da Alemanha (ex-República Federal da Alemanha) e da Grã-Bretanha, tendo sido denominada, respectivamente, como Staatsableitungsdebatte e state derivation debate. Em português, a denominação corrente tornou-se ‘debate derivacionista do Estado’, ou ‘debate da derivação do Estado’(…)".⁴³

    Não é uma coincidência que tais debates tenham emergido nesses dois países. A Alemanha da década de 1970 ainda sofria os impactos da grave recessão de 1967. O país tinha vivido uma era de imenso crescimento econômico nas décadas de 1950 e 1960, influenciado pelo Plano Marshall do pós-guerra, que fomentou a retórica do milagre alemão, inclusive, para fazer frente à Alemanha Oriental, demonstrando o quanto a adesão ao capitalismo era muito mais vantajosa. A partir de 1966, porém, o crescimento milagroso começou a estagnar, tornando-se severa crise em 1967.

    De outro lado, na Inglaterra, o fracasso do plano econômico de Harold Wilson havia gerado desvalorização da libra e desemprego, que motivaram mobilizações de estudantes e trabalhadores, achacados também pela redução paulatina de políticas de bem-estar – o que viria a culminar nas mãos de ferro de Margaret Thatcher. O contexto histórico e econômico tornava evidente que o Estado não era capaz de conter as crises, não podia impor políticas econômicas sem a conivência do capital global, e jamais promoveria crescimento através de decretos, pois estaria sempre a reboque do movimento do valor. Nesse contexto, é que despontaram diversos autores e autoras que contribuíram para uma nova leitura marxista do Estado nos debates da derivação (ao mesmo tempo em que florescia a nova crítica do valor para uma releitura da economia).

    Os principais pensadores alemães do debate derivacionista são oriundos dos círculos universitários de Berlim e Frankfurt. São eles: Rudolf Wolfgang Müller, Christel Neusüβ, Elmar Altvater, Bernhard Blanke, Ulrich Jürgens, Joachim Hirsch, Freerk Huisken, Margaret Wirth, Claudia von Braunmühl, Heide Gerstenberger, Sybille von Flatow e Hans Kastendiek. (…) Entre os pensadores britânicos que integram a teoria derivacionista, destacamos John Holloway, Sol Picciotto. Bob Jessop e dois interlocutores de destaque: Werner Bonefeld e Simon Clarke.⁴⁴

    No princípio, devido às próprias circunstâncias históricas e econômicas, os autores e as autoras voltaram seus olhares para os limites da atuação estatal perante o sistema econômico, com foco nos fracassos e insuficiências do Welfare State, da ampliação dos direitos sociais, da crença nas políticas públicas para promover dignidade humana e reverter desigualdades, e em todas as estratégias econômicas de crescimento inspiradas nas teses de John Maynard Keynes. Segundo Hirsch et al, a fricção causada pelas crises econômicas de então foi acossada pelos levantes franceses de maio de 1968. O cenário geral de descontentamento na Europa influenciou as pioneiras críticas, que reconheciam, pela primeira vez, os limites do modelo de bem-estar social:

    A discussão em torno do Estado burguês limitou-se nos anos setenta, sem dúvida, à França. Ela existiu também na Alemanha ocidental, na esteira dos movimentos estudantis de protesto, e também aqui ela foi conduzida sobretudo no contexto marxista. Dois fatores foram especialmente significativos para uma discussão crítica acerca do Estado: Em primeiro lugar, a transformada situação econômica. A partir de meados dos anos sessenta, manifestações de crise econômica tornaram-se cada vez mais perceptíveis também na República Federal – como em todos os países capitalistas centrais. Já de início tentou-se fazer frente a elas por meio de uma gestão global, ou seja, com instrumentos keynesianos de política econômica, e no início dos anos setenta o assunto crescente era o do limite do keynesianismo (ESSER, 1975, p. 9-10). Essa percepção de limite significou, em última instância, nada mais do que do que a confissão do fracasso da política de direção estatal, assim como que as promessas de pleno emprego e crescimento contínuo não haviam de ser cumpridas.⁴⁵

    A partir das percepções acerca das insuficiências da adoção de um modelo estatal de bem-estar social, os debates evoluíram para uma compreensão mais aprofundada acerca da estrutura estatal. Cada vez que o capitalismo passa por uma crise, reestrutura-se uma nova forma de acumulação e, ao mesmo tempo, exsurge uma nova forma de regulação estatal. Após a Segunda Guerra Mundial, o idealismo liberal forjou o Estado de bem-estar pleno, que é praticamente uma ficção. O próprio Estado de bem-estar social, gestado desde a primeira metade do século XX, somente opera enquanto contribui para a valorização do valor, porque há uma relação de dependência entre a forma política e o processo produtivo. Essa constatação levou os estudiosos a desvendarem as minúcias da forma estatal, e chagaram à conclusão de que acreditar que o Estado é um aparato volúvel ocupado historicamente pela classe burguesa é um grande equívoco. Esse engano leva à ilusão de que a classe trabalhadora poderia ocupar o Estado, ou fazer pressões políticas para que ele passe a atuar conforme suas demandas.

    Portanto, cuidava-se de demonstrar que o Estado da sociedade capitalista-burguesa é relativamente autônomo em relação às classes (incluídas as capitalistas), e não pode constituir um simples instrumento delas, mas permanece ao mesmo tempo sistematicamente vinculado às condições e regularidades estruturais do modo de produção capitalista, e deve ser tratado como parte constitutiva deste; demonstrar, portanto, o Estado capitalista é um Estado de classe, sem que possa ser um instrumento imediato de uma classe. Essa forma específica de relação de domínio, o fato de que o domínio de classe manifesta-se num dispositivo formalmente independente e aparentemente superior às classes, é o fundamento da ilusão do Estado, ou seja, a consideração de que o aparelho de Estado estaria aberto em igual medida a todos os interesses sociais, e poderia, por caminhos democráticos, ser instrumentalizado no sentido de uma reforma política anticapitalista ou, no mínimo, de uma reforma política fundamental.⁴⁶

    Adotamos a compreensão derivacionista de Estado e a categoria forma política, que percebe que é absolutamente "insuficiente relacionar o conteúdo da atividade estatal e do Direito com os interesses da classe dominante, ou ainda explicar as funções do Estado apenas a partir da luta de classes e predomínio de uma delas".⁴⁷ Como adverte Mascaro: O Estado não é domínio dos capitalistas; menos e mais que isso: o Estado é a forma política do capitalismo.⁴⁸ Por isso, o Estado não é, tampouco, a forma pela qual os indivíduos de uma classe dominante fazem valer os seus interesses comuns; na realidade, não se trata de questões subjetivas. O Estado é a forma política adequada para viabilizar a reprodução do valor, condensando toda a sociedade civil numa abstração contratualista, que legitima o aparato burocrático, a forma jurídica, e a exclusividade de violência.

    Há um liame simbiótico entre a valoração do valor e essa configuração estatal, de modo que não é possível tomar esse mesmo Estado, com todos esses contornos, e utilizá-lo para combater a burguesia e aniquilar o mercado, nem para destruir o patriarcado. Nesse, sentido, trabalharemos com outra leitura da percepção de Marx acerca do Estado, conservando sua ideia primordial de que precisa ser abolido, num sentido categorial mais profundo, uma vez que sua forma, e não apenas seu conteúdo,⁴⁹ está amalgamada ao capitalismo, de modo que não é logicamente possível um Estado de Direito proletário, não burguês. O Estado, então, não é mero comitê gestor dos negócios da burguesia. À exceção de crises extremas, de modo geral, o Estado já se institui para sustentar a luta de classes em seu interior e para sempre configurar tal luta a partir de termos políticos. A relação entre Estado e capitalismo se estabelece a partir de uma penetração do econômico no político, num processo de imbricação recíproca. Eles se estruturam conjuntamente. A economia capitalista não existe sem a forma estatal correspondente, assim como a própria forma estatal só pode existir nas condições de reprodução econômica do valor.

    Se há autonomia desse modelo de Estado, ela existe de modo relativo, fincada na dependência estrutural e existencial de determinado tipo de reprodução social (capitalista). Assim, acompanhando Mascaro e Scholz, não sendo burguês ou masculino, imediatamente, o Estado sempre o é de modo indireto, pois a forma estatal é estruturalmente capitalista (e o capitalismo é o patriarcado capitalista). Isso não significa afirmar que o Estado é uma instituição racionalmente desenvolvida para se acoplar à forma-valor dentro de uma razão teleológica muito ordenada, nem que a forma política opera sempre como um agente lúcido da reprodução do valor, pois essa seria uma compreensão idealista do desenvolvimento das formas sociais, de inspiração hegeliana. É preciso sempre fincar a perspectiva materialista: as relações de produção vincularam-se às formas produtivas e, de modo contingente, aparelhos institucionalizados acoplaram-se ao modo de produção, conformando-se o Estado. Isso significa que a forma política não precisaria ser, necessariamente, essa do Estado de Direito, mas ocorre que foi esta forma que historicamente se consubstanciou com a melhor aderência possível às formas econômicas diante da conjuntura.

    O Estado moderno, desde a sua origem, ocupa a posição de garantidor dos negócios jurídicos, ou seja, é o terceiro necessário às relações capitalistas; em sua dinâmica econômica (receita e despesas), alimenta-se de tributos, o que depende do desenvolvimento do capital e de sua capacidade arrecadadora, mas é por muito mais do que isso que o Estado é obrigatoriamente capitalista. Essa imbricação entre capital e Estado faz, inclusive, com que a crise de um seja também a crise do outro. Foi a institucionalização do Estado de Direito, constitucionalista e republicano que, no período de acumulação liberal, instalou-se como a forma política do capitalismo, e pôde desempenhar esse papel com a melhor eficiência, dentro das condições de possibilidade.

    Seguindo esse raciocínio, é inócuo acreditar que seria possível converter o Estado num instrumento de emancipação, através da ampliação dos mecanismos de democracia representativa e participativa, dos direitos sociais, das políticas públicas e da intervenção na economia, pois a forma Estado Democrático de Direito foi, tão-somente, uma reconfiguração da forma política com o escopo de apresentar um melhor desempenho na regulação de novos regimes de acumulação. A new left que, desde a década de 1960, organiza-se enquanto esquerda democrática, para se opor às propostas de revolução violenta do stalinismo, também estaria, assim, em erro, pois acredita que, através da democracia burguesa (ocupar a forma política via eleitoral) e da conquista de direitos, com ampliação dos direitos sociais e inclusão das minorias na subjetividade jurídica, vai domesticar o capital e promover emancipação.

    Para os debates derivacionistas, um dos maiores enganos da esquerda do século XX foi crer que poderia converter o Estado numa estrutura a seu favor, e, aí, estariam enganados tanto os bolcheviques quanto a esquerda libertária (englobando, infelizmente, praticamente todos os partidos de esquerda do mundo hoje). Assim, o derivacionismo pode ser visto como uma crítica da tradição soviética stalinista (e do mecanismo economicista) e ao mesmo tempo como uma busca pelas ‘condições e dinâmicas’ próprias do Estado.⁵⁰

    A assim realizada derivação da especialização do Estado em face da economia não pode ser de tal forma mal compreendida, que o Estado seja de fato posicionado em relação à economia (capitalista) de modo exterior e neutro. A separação/especialização é, muito mais, a forma da presença constitutiva do político nas relações de produção capitalistas, para aplicar nesse contexto a acima mencionada tese de Poulantzas. Aliás, seria um erro de interpretação funcional supor como necessariamente dada a forma política especificamente manifestada no formato do Estado e de sua especialização. Na verdade, esta é sempre disputada, e com isso fundamentalmente precária em sua existência.⁵¹

    Por essa razão, umas das preocupações mais prementes desses debates é investigar a constituição histórica desse modelo estatal, compreendendo se avançou em paralelo ao sistema econômico ou de maneira espelhada, derivada. Na modernidade, o nexo entre capitalismo e Estado é estrutural: o Estado passa a ser concebido como ente terceiro, garante e necessário da dinâmica do capitalismo. O Estado, nestas configurações, é, portanto, um fenômeno especificamente capitalista. Na narrativa liberal, ele paira sobre a sociedade, distanciando-se da perspectiva classista, e se converte num árbitro supostamente imparcial para realizar a mediação entre capital e trabalho. Assim, no capitalismo, o campo político é constituído como necessariamente afastado dos agentes que portam e transacionam mercadorias (seja capital, seja trabalho assalariado), mas é justamente ao se afirmar como poder terceiro que o Estado exerce papel decisivo na reprodução da dinâmica capitalista de valorização do valor.

    A modernidade engendrou uma sociedade sobre os parâmetros da troca, advindos da circulação mercantil, e o Estado surgiu como terceiro na relação contratual, para mediar a dinâmica entre capital e trabalho; ele garante a mercadoria, a propriedade privada, e os vínculos jurídicos de exploração que jungem capital e trabalho. Para desempenhar esse papel, não precisaria ser obrigatoriamente constitucional, tripartite ou sufragista, mas ocorre que assim nasceu e se desenvolveu, com nuances presidencialistas, parlamentaristas, federalistas etc., mas sempre apto a performar enquanto forma política do capitalismo.

    Resumindo: a forma política capitalista não pode ser confundida com o aparelho estatal concreto, pois esse é apenas a expressão institucional de estruturas sociais existentes atrás dele. As determinações formais capitalistas – econômicas e políticas – atravessam todas as áreas sociais, marcam então tanto as burocracias de Estado como o sistema partidário, as associações de interesses e a mídia, as instituições econômicas e até a família. Assim, o conjunto complexo envolvendo Estado e sociedade civil constitui um sistema dependente um do outro, e, ao mesmo tempo, forma uma relação contraditória, englobando as instituições existentes. Estado e sociedade civil não formam uma oposição simples, mas uma unidade contraditória condicionada. Assim, a forma política – concretizada institucionalmente no aparelho de Estado – depende da forma dinheiro e da forma capital, estando ao mesmo tempo em contradição com elas.⁵²

    O Estado, dessarte, não é só um aparato de repressão, mas sim de constituição social, um derivado necessário da própria reprodução capitalista. Por isso, a burocracia do Estado não pode ser entendida apenas nos limites da sua juridicidade. No plano estrutural, a luta de classes desponta como fato primordial da reelaboração constante da burocracia. A burocracia tem origem estrutural nas relações capitalistas, o que lhe dá razão existencial de ação. Assim, se o fim do modo de produção capitalista e a abolição da propriedade privada implicariam obrigatoriamente o fim das contradições sociais, um Estado que apenas cumpre a função de mediar os conflitos seria absolutamente desnecessário.

    É preciso ponderar, porém, que, conforme ensina Pachukanis, o Estado não nasce como uma força de classe, mas como algo que se aloca acima da luta de classes, para evitar a desagregação social.⁵³ Isso reforça a ideia de que o Estado tem como função precípua a conservação social a despeito dos antagonismos causados pela cisão classista do liberalismo tradicional. Permanece válida a ideia marxiana de que, com o fim do capitalismo e da forma mercantil, a forma política estatal seria abolida, assim como o Direito, compreendido enquanto forma jurídica, seria não apenas prescindível, mas indesejável, no mesmo sentido de uma teoria do estado ontonegativa. Porém, isso não ocorreu na URSS de Lênin ou de Stalin. No mesmo sentido em que Scholz e Kurz afirmam que o socialismo real foi, na verdade, capitalismo do Estado, Pachukanis (que foi assassinado por ordem de Stalin devido às suas ideias) assevera que nunca houve ruptura com a forma jurídica (e podemos concluir que com a forma política tampouco) na URSS. Por isso, o jurista soviético propôs que uma teoria do Direito ontonegativa, e, por isso, marxista, deve preconizar o fim do direito e não a substituição do direito burguês por um direito proletário, já que este ainda seria forma jurídica, e esta estará sempre estruturalmente vinculada ao valor:

    Outra objeção contrária à nossa concepção sobre quais são as tarefas da teoria geral do direito é a de que as abstrações como fundamento de análise são consideradas adequadas apenas ao direito burguês. O direito proletário, dizem-nos, deve encontrar outros conceitos gerais, e sua procura deve ser a tarefa da teoria marxista do direito. Em um primeiro momento, essa objeção parece ser extremamente séria; porém, baseia-se em um equívoco. Exigir do direito proletário seus próprios, novos, conceitos gerais é uma tendência que parece revolucionária par exellence. Contudo, na realidade, proclama a imortalidade da forma do direito, pois aspira a extrair tal forma daquelas condições históricas fundamentais que asseguraram seu completo florescimento, e declara sua capacidade de se renovar permanentemente. A extinção das categorias (precisamente das categorias, não de uma ou outra prescrição) do direito burguês de modo nenhum significa a substituição por novas categorias do direito proletário, assim como a extinção das categorias de valor, capital, lucro etc., na passagem para o socialismo desenvolvido, não vai significar o surgimento de novas categorias proletárias de valor, capital, renda etc. A extinção das categorias do direito burguês nessas condições significará a extinção do direito em geral, ou seja, o desaparecimento gradual [ПОСТeПeННOe] do momento jurídico nas relações humanas.⁵⁴

    Assim, pela forma-valor, referenciam-se atos econômicos e a constituição dos próprios sujeitos de direito, que o são porque portam valor e fazem circular as mercadorias. No capitalismo, tudo são bens passíveis de troca. A forma estatal nasce da produção capitalista da exploração do trabalho, da conversão de tudo em mercadoria, e o núcleo da forma política estatal é relacional: a externalidade é constituinte da própria forma. Por isso, a forma política não se confunde com as instituições políticas que a materializam. Ainda, é fundamental afastar a tautologia mitográfica de todas as teorias conservadoras do Estado e do Direito, que preconizam que ambos nascem um do outro e se legitimam mutuamente. O Estado não nasce do Direito conforme a metanarrativa do contratualismo iluminista, e sim deriva das formas econômicas da produção para reprodução social adequada ao capitalismo. Do mesmo modo, o Direito não emana do Estado republicano, representando a vontade popular, mas também deriva das abstrações capitalistas. Estado e direito derivam das formas econômicas em paralelo e, então, passam a se relacionar.

    Tem-se, assim, na teoria da derivação, como ponto comum, a tentativa de mostrar que tanto a forma econômica, quanto a forma política, no capitalismo, são distintas entre si e em relação às existentes em outros modos de produção. Isso significa explicar porque, no capitalismo, o Estado necessariamente existe diante de uma separação (na realidade, uma separação-na-unidade), estruturando, portanto, dois âmbitos – econômico e político – que anteriormente (no escravagismo e no feudalismo) se apresentavam numa espécie de unidade. Além disso, trata-se de compreender como essa separação impacta as funções desempenhadas pelo Estado e também como o exercício do poder – dentro e fora do Estado – no interior de uma sociedade assim organizada. Afinal, as instituições estatais – o espaço político, portanto – ganham certa autonomia em relação ao poder da classe dominante. (…) Assim, a referida separação do político e do econômico não será pensada como fruto de um acaso ou de contingências históricas, mas do próprio modo como as relações sociais se constituem na economia capitalista (…). Veremos ainda que, para alguns pensadores, uma formulação teórica a respeito do Estado deve levar em conta necessariamente o conceito de forma jurídica, que consequentemente deve ser estudado com as ideias de forma mercantil e forma política.⁵⁵

    A despeito de algumas divergências internas entre essas autoras e autores (há múltiplos debates dentro do debate da derivação nos quais não adentraremos), a proposta que tomaremos como crucial para a compreensão marxista do Estado, em convergência com o teorema do valor dissociado, é de que o Estado é uma forma abstrata derivada das formas econômicas do capitalismo, mas, peculiarmente, da forma-valor, cuja especificação sexual é masculina. É essa concepção de nos importa. O sistema econômico do capitalismo reproduz valor através de formas econômicas abstratas, que se relacionam pela equivalência de tudo com tudo. Somente é possível equiparar todas as coisas do mundo, para gerar valor, se as coisas não são mais tomadas em si, enquanto objetos materiais, mas desdobradas em abstrações que pairam sobre elas, como a forma-mercadoria.

    A forma-mercadoria não se confunde com objetos que podemos pegar, cheirar, ver, ouvir e

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