Competências na Formação do Professor de Português como Língua Materna (PLM): uma perspectiva intercultural
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Competências na Formação do Professor de Português como Língua Materna (PLM) - José Nilton Santos da Cruz Junior
Bibliografia
1. INTRODUÇÃO
1.1 - CONTEXTUALIZAÇÃO DA PESQUISA E ANTECEDENTES
Todos os que pertencem ao mundo das ciências da educação debatem a noção de competência; porém os usos dessa noção não facilitam sua definição. A dificuldade de defini-la aumenta com a necessidade de utilizá-la. Embora a competência tenha se tornado uma noção midiática, ela não apresenta para todos os autores um conceito operacional. (DOLZ; OLLANGNIER, 2004, p.10)
Escusado dizer, o exercício competente da função de professor de língua (materna, estrangeira, L2 etc.) é algo almejado amplamente pelos sujeitos que estão atuando, de fato, em sala de aula como docentes imersos em uma interação real de ensino-aprendizagem. Em qualquer contexto, incluindo as práticas docentes, a carga semântica embutida no vocábulo competente
já sugere inequivocamente destreza no ofício, o que se pode relacionar à capacidade de operacionalizar o saber tornando-o acessível aos indivíduos (MACHADO, 2002). Em contrapartida, a carga semântica que se relaciona ao vocábulo incompetente
associa-se à ideia oposta, a saber, aquele que não é capaz de realizar tais e quais tarefas, ou que, pelo menos, fazem-nas de modo insatisfatório, deficiente, incompleto.
Por essa razão, a busca pela competência no ensino de língua tem sido um alvo estimado por aqueles que justamente serão responsabilizados pela sociedade, de modo geral, enquanto professores da Educação Básica, principalmente, no que tange à qualidade do aprendizado ou não dos discentes em torno de uma determinada língua. Além disso, ter o seu exercício profissional atrelado à carga semântica que se configura a partir do vocábulo incompetente
é algo demasiadamente pejorativo para qualquer profissional que tenha consciência crítica de suas próprias ações.
Nesse percurso, a busca pelo entendimento da noção de competência (até então compreendida apenas no singular), no meu caso, iniciou-se ainda na graduação em Letras Vernáculas/Português na Universidade Federal da Bahia, curso que concluí em 2011. Na graduação, a iniciação científica acrescida pelo desejo de reflexão séria a respeito do ensino de Língua Portuguesa em contexto de língua materna me levou à leitura do livro da sociolinguista e etnógrafa da comunicação Prof.ª Dr.ª Stella Maris Bortoni-Ricardo, intitulado Nós Cheguemu na escola, e agora?Sociolinguística & Educação (2005).
Numa tentativa de elucidar a noção de competência para o ensino e aprendizagem de línguas, a autora, no capítulo seis do livro citado, traz como tema de discussão a noção de Competência Comunicativa¹, cunhada pelo linguista estadunidense Dell Hymes em meados da década de 1970. Foi esse título dado ao capítulo seis, a saber, Revisitando a noção de Competência Comunicativa, que provocou a minha inquietação no intuito de compreender quais eram as possíveis implicações, se é que havia, no entendimento dessa noção para a formação de professores de Língua Portuguesa em salas de aulas nas quais se ensinasse o Português como língua materna.
Embora o capítulo referido não se detenha exclusivamente a destrinchar a chamada Competência Comunicativa, levanta questões relevantes que favorecem o entendimento primário do qual a noção se utiliza, como, por exemplo, a relação dessa noção com a atuação do professor em uma sala de aula mediando saberes naquele espaço de ensino-aprendizagem. Inicialmente, Bortoni-Ricardo (2005, p. 61-62), propondo um diálogo que elucide ainda que superficialmente o conceito postulado por Hymes, afirma que
[...] um membro de uma comunidade de fala tem de aprender o que dizer e como dizê-lo apropriadamente, a qualquer interlocutor. Essa capacidade pessoal, que inclui tanto o conhecimento tácito de um código comum, quanto a habilidade de usá-lo, foi denominada competência comunicativa por Hymes (1972).
Desse modo, a noção de Competência Comunicativa apresentada pela autora parece querer englobar, a princípio, as habilidades que um indivíduo deve desenvolver ao longo da vida a fim de viabilizar a comunicação em diferentes contextos. Negar que tal objetivo se constitui como um carro-chefe
no ensino de qualquer que seja a língua, soaria contraditório àquilo que se propõe um professor de língua. Sem dúvida, uma das funções primárias do professor de língua deve ser justamente criar condições para que os agentes envolvidos na relação ensino-aprendizagem de línguas possam recorrer aos recursos linguísticos/discursivos disponíveis para comunicar-se adequadamente em situações diversas nas esferas humanas de interação social (MARCUSCHI, 2008).
No entanto, a noção de competência elaborada e desenvolvida por Hymes (1972) tem como antecedente a noção de Competência Linguística², desta feita cunhada pelo também linguista estadunidense Noan Chomsky (1965), com o lançamento da obra intitulada Aspectos da teoria da Sintaxe. Em tal obra, o autor se encarrega de elaborar a dicotomia entre o saber inato da língua que o falante-ouvinte possui e a efetiva realização desse saber inato. De modo geral, os cursos de Letras e/ou Linguística espalhados por todo o Brasil, ao abordarem a temática das teorias linguísticas contemporâneas, fazem referência ao legado da teoria da Gramática Gerativa com a qual Chomsky ganhou notoriedade nos estudos linguísticos. E foi justamente nesse momento, numa disciplina introdutória em Estudos Linguísticos, ainda no primeiro semestre da graduação, em 2008.1, que me deparei com a noção ainda muito embrionária do que constitui tal competência referida por Chomsky.
A princípio, a compreensão da relação entre ensino-aprendizagem de línguas e o desenvolvimento de competências na formação docente não se deu de forma natural, tampouco gerou grandes conflitos epistemológicos. Tais vocábulos pareciam apenas fazer parte de um conjunto seleto de conceitos-chave que deveriam ser entendidos e evocados quando fosse conveniente o seu uso. Seria necessário um investimento de tempo e maior maturidade teórica para que eu pudesse perceber a ressonância que essa compreensão geraria, em se tratando de pressupostos mínimos que delineiam a formação acadêmico-profissional de um professor de língua.
Apenas em uma época posterior, quando já havia passado pelo processo de Estágio de Observação no curso de Licenciatura em Letras Vernáculas/Português (componente obrigatório para a formação em licenciaturas pela Universidade Federal da Bahia) tornei-me capaz de refletir sobre possíveis interferências que a compreensão em torno das competências, já entendida como um conceito plural, poderia gerar na atuação dos professores em sala de aula. Para enfrentar os percalços tão conhecidos na Educação Básica, sobretudo na Rede Pública de Ensino, haveria de ser necessário traçar um conjunto mínimo de competências, uma vez que os próprios Parâmetros Curriculares Nacionais (1997) - doravante PCN-, documentos oficiais produzidos pelo Ministério da Educação da República Federativa do Brasil que fornecem diretrizes para o ensino das diversas disciplinas na Educação Básica, preveem que o ensino de Língua Portuguesa nas escolas brasileiras possibilite aos alunos a assunção de competências que lhes garantam acessibilidade e mobilidade sociocomunicativa.
Portanto, parece-me apropriado pensar no elenco de competências na formação docente que os professores em formação estão recebendo pelos cursos de licenciatura em Língua Portuguesa. Não se deve partir do pressuposto de que os professores de Português como língua materna são necessariamente competentes no ensino dessa língua com a justificativa de que são nativos, como é o caso da maioria dos professores de Língua Portuguesa em território brasileiro. Essa justificativa recairia na falácia de que todo falante nativo de uma língua seria, de modo automático, um professor nato do idioma que lhe é materno, o que sabemos que não corresponde necessariamente à realidade que se configura nas escolas brasileiras e certamente em diversos contextos nacionais diferentes.
Algo também que nos chama a atenção em relação ao estatuto da Língua Portuguesa e do seu ensino tem a ver com o caráter que a língua materna assume frente à sociedade e, sem dúvida, com a relação que os seus falantes estabelecem com essa língua. Conforme observado por Almeida Filho (2007, p.18-19)
Em geral, a maioria das pessoas não reflete sobre o uso da língua materna e nem submete à análise crítica as maneiras pelas quais aprendeu a língua. Isso se deve muito ao fato de que, quando um indivíduo alcança a idade da reflexão, ele já aprendeu, através de um processo predominantemente subconsciente, a como falar e usar a sua língua materna.
Por conta disso, em muitos casos, o professor de Português como língua materna (doravante PLM) se exime da tarefa imprescindível de reflexão a respeito das competências que são necessárias para a sua formação profissional, o que certamente gerará impactos em sua atuação continuada enquanto docente de PLM.
Além disso, não nos deve escapar o fato de que há um entrave entre as expectativas da sociedade em relação ao que se deve ensinar e aquilo que nós, os que estamos sendo capacitados para atuar em sala de aula, realmente consideramos importante no ensino da língua materna. Essa questão de forma alguma deve ser encarada como sendo tema de menor importância. Embora haja muita crítica a respeito da atuação de gramáticos tradicionais enrijecidos em relação às prescrições de uma norma padrão que não corresponde ao modo como a sociedade realmente se porta linguisticamente são eles os que ocupam o lugar de prestígio que lhes garantem a voz no momento em que questões polêmicas em relação à língua são trazidas à tona e ecoam nos meios de comunicação em massa. (RAJAGOPALAN, 2003,2004)
Assim sendo, o professor de PLM precisa, antes de tudo, assumir uma postura política em relação à sua formação, uma postura que leve em conta o seu engajamento em torno da configuração atual do ensino de PLM. Como sugere Rajagopalan (2004, p.33), nós, como linguistas, deveríamos fazer um exame de consciência, a fim de ver se nós mesmos não temos alguma responsabilidade sobre o modo como as coisas se passaram
em relação, por exemplo, às crenças da sociedade em torno dessa Língua Portuguesa que muito mais prescreve o que devemos fazer do que descreve aquilo que em termos práticos fazemos, ao menos em referência ao ensino de Português no Brasil contemporâneo. Tal postura política a ser assumida pelo professor de PLM talvez seja uma bandeira que se deva sustentar em relação à construção identitária desse professor, que, evidentemente, está em constante mudança e sujeito às transformações que ocorrem no contexto sociocultural à sua volta (HALL, 2001).
Desenvolver uma consciência crítica e reflexiva requer por parte do professor em pré-serviço um verdadeiro exercício de autoanálise e, sobretudo, de investigação em torno do elenco de conteúdos que lhe são propostos durante a sua formação acadêmica. Em Linguística Aplicada, área que lida diretamente com questões a respeito do ensino de língua e do engajamento político em torno de questões sociais envolvendo a língua (SIGNORINI; CAVALCANTI, 1998) é muito mais recorrente, nos trabalhos de pesquisa pensar na prática, no exercício docente em uma interação real de ensino-aprendizagem e na observação dessas situações. Obviamente, tal esforço em escrutinar as práticas docentes e o comportamento dos discentes frente às metodologias apresentadas pelos professores possui um valor significativo, o que não pode excluir, evidentemente, um trabalho que seja voltado à reflexão de conceitos que supostamente exercem impacto na didática e práxis pedagógica, haja vista o uso corrente de conceitos como o de competência.
Dito o acima, cabe, então, refletirmos se já não é hora de pensar numa genealogia que nos faça compreender o modo como tais conceitos (de Competências) chegaram até nós e foram capazes de se infiltrar de modo tão tenaz em nossos discursos³ enquanto docentes atuantes ou docentes em pré-serviço. Faz-se necessário, talvez, retomarmos noções que já estão tão corriqueiras no vocabulário coletivo que parecem prescindir de uma definição mais precisa. Isso, sem dúvida, constitui-se como um trabalho importante, levando em conta que ser competente não é apenas uma questão de anseio pessoal, é também um anseio das instâncias governamentais que preveem em documentos oficias como os PCN o desenvolvimento de competências nos discentes mediadas pelos professores, que evidentemente devem ter adquirido em sua formação tais competências.
Creio, portanto, na necessidade de investir em uma pesquisa que consista em um esforço teórico de retomar a discussão em torno da noção de competências nos estudos linguísticos contemporâneos. Desse modo, será possível promover uma investigação antes na origem primária do conceito do que nos sentidos múltiplos que tal conceito recebeu ao longo do tempo. Tal investigação constitui-se como uma tentativa de retomar modelos de quadros de competências propostas na área da Linguística Aplicada em cotejo ao que dizem os documentos oficiais que regulamentam e fornecem diretrizes para o ensino de PLM no Brasil. Apontar caminhos e estimular a reflexão são pontos focais nessa investigação, que nos convida a pensar primariamente na seguinte questão: quem quer ser competente, deve ter que competências?
1.2 - O PORQUÊ DA ESCOLHA DE UMA REFLEXÃO TEÓRICA
Tido como um jargão no contexto acadêmico, a