Memórias póstumas de Brás Cubas
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Sobre este e-book
Memórias póstumas de Brás Cubas (1881) faz parte da "fase de maturidade" de Machado de Assis, juntamente com os romances Quincas Borba (1891) e Dom Casmurro (1899).
Machado de Assis
Joaquim Maria Machado de Assis (Rio de Janeiro, 21 de junho de 1839 Rio de Janeiro, 29 de setembro de 1908) foi um escritor brasileiro, considerado por muitos críticos, estudiosos, escritores e leitores o maior nome da literatura brasileira.
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Memórias póstumas de Brás Cubas - Machado de Assis
EDIÇÕES BESTBOLSO
Memórias póstumas de Brás Cubas
Jornalista, contista, cronista, romancista, poeta e teatrólogo, Joaquim Maria Machado de Assis (1839-1908) é considerado um dos grandes nomes da literatura brasileira. O autor nasceu no Rio de Janeiro e, mesmo sem ter completado o ensino fundamental, publicou seu primeiro poema aos 16 anos, na revista Marmota Fluminense. Trabalhou como tipógrafo aprendiz na Tipografia Nacional, foi revisor do Correio Mercantil e redator do Diário do Rio de Janeiro. O primeiro livro publicado por Machado de Assis foi o ensaio satírico Queda que as mulheres têm para os tolos, em 1861. Seu primeiro livro de poesias, Crisálidas, saiu em 1864. Em 1867, foi nomeado ajudante do diretor de publicação do Diário Oficial, cargo que exerceu até 1874. A obra de Machado de Assis abrange praticamente todos os gêneros literários. Na poesia, iniciou com o romantismo de Crisálidas, passando pelo indianismo em Americanas (1875), e o parnasianismo em Ocidentais (1901). Obras como a coletânea Contos fluminenses (1870) e os romances Ressurreição (1872), A mão e a luva (1874), Helena (1876) e Iaiá Garcia (1878) são consideradas pertencentes ao seu período romântico. Na década de 1880, a produção literária do autor sofreu uma grande mudança, inaugurando a fase das obras-primas com os romances Memórias póstumas de Brás Cubas (1881), Quincas Borba (1891) e Dom Casmurro (1899). Em 1896, dirigiu a primeira sessão preparatória da fundação da Academia Brasileira de Letras. Fundador da Cadeira nº 23, Machado ocupou por mais de dez anos a presidência da Academia, que passou a ser chamada também de Casa de Machado de Assis.
1ª edição
RIO DE JANEIRO – 2012
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
A866m
Assis, Machado de, 1839-1908
Memórias póstumas de Brás Cubas [recurso eletrônico] / Machado de Assis. - 1. ed. - Rio de Janeiro : Best Bolso , 2016.
recurso digital
Formato: epub
Requisitos do sistema: adobe digital editions
Modo de acesso: world wide web
ISBN 978-85-7799-530-1 (recurso eletrônico)
1. Romance brasileiro. 2. Livros eletrônicos. I. Título.
16-36014
CDD: 869.3
CDU: 821.134.3(81)-3
Memórias póstumas de Brás Cubas, de autoria de Machado de Assis.
Título número 318 das Edições BestBolso.
Primeira edição impressa em agosto de 2012.
Texto revisado conforme o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.
www.edicoesbestbolso.com.br
Design de capa: Mello & Mayer Design.
Nota do editor: Esta edição de bolso teve como base a edição publicada pela Editora Record em 2008, que contou com a intervenção da Fundação Biblioteca Nacional que, por intermédio de seus Departamentos de Processos Técnicos e de Referência e Difusão, sob a regência do Departamento Nacional do Livro, se responsabilizou pelo resgate dos textos originais, cotejando as edições das obras em domínio público selecionadas para o Programa Nacional da Escola/ FNDE. Para a reconstrução dos textos foram consultadas as edições princeps. Houve uma só preocupação: orientar os leitores revisores quanto à atualização ortográfica.
Todos os direitos desta edição reservados a Edições BestBolso um selo da Editora Best Seller Ltda. Rua Argentina 171 – 20921-380 Rio de Janeiro, RJ – Tel.: 2585-2000.
Produzido no Brasil
ISBN 978-85-7799-530-1
Sumário
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
Capítulo 26
Capítulo 27
Capítulo 28
Capítulo 29
Capítulo 30
Capítulo 31
Capítulo 32
Capítulo 33
Capítulo 34
Capítulo 35
Capítulo 36
Capítulo 37
Capítulo 38
Capítulo 39
Capítulo 40
Capítulo 41
Capítulo 42
Capítulo 43
Capítulo 44
Capítulo 45
Capítulo 46
Capítulo 47
Capítulo 48
Capítulo 49
Capítulo 50
Capítulo 51
Capítulo 52
Capítulo 53
Capítulo 54
Capítulo 55
Capítulo 56
Capítulo 57
Capítulo 58
Capítulo 59
Capítulo 60
Capítulo 61
Capítulo 62
Capítulo 63
Capítulo 64
Capítulo 65
Capítulo 66
Capítulo 67
Capítulo 68
Capítulo 69
Capítulo 70
Capítulo 71
Capítulo 72
Capítulo 73
Capítulo 74
Capítulo 75
Capítulo 76
Capítulo 77
Capítulo 78
Capítulo 79
Capítulo 80
Capítulo 81
Capítulo 82
Capítulo 83
Capítulo 84
Capítulo 85
Capítulo 86
Capítulo 87
Capítulo 88
Capítulo 89
Capítulo 90
Capítulo 91
Capítulo 92
Capítulo 93
Capítulo 94
Capítulo 95
Capítulo 96
Capítulo 97
Capítulo 98
Capítulo 99
Capítulo 100
Capítulo 101
Capítulo 102
Capítulo 103
Capítulo 104
Capítulo 105
Capítulo 106
Capítulo 107
Capítulo 108
Capítulo 109
Capítulo 110
Capítulo 111
Capítulo 112
Capítulo 113
Capítulo 114
Capítulo 115
Capítulo 116
Capítulo 117
Capítulo 118
Capítulo 119
Capítulo 120
Capítulo 121
Capítulo 122
Capítulo 123
Capítulo 124
Capítulo 125
Capítulo 126
Capítulo 127
Capítulo 128
Capítulo 129
Capítulo 130
Capítulo 131
Capítulo 132
Capítulo 133
Capítulo 134
Capítulo 135
Capítulo 136
Capítulo 137
Capítulo 138
Capítulo 139
Capítulo 140
Capítulo 141
Capítulo 142
Capítulo 143
Capítulo 144
Capítulo 145
Capítulo 146
Capítulo 147
Capítulo 148
Capítulo 149
Capítulo 150
Capítulo 151
Capítulo 152
Capítulo 153
Capítulo 154
Capítulo 155
Capítulo 156
Capítulo 157
Capítulo 158
Capítulo 159
Capítulo 160
Prefácio
Quando esta narrativa saiu publicada em livro, em 1881, a primeira pergunta que se fez foi se este era um romance.
Na surpresa da pergunta está uma explicação para este texto tão surpreendente, tanto na forma, na expressão, utilizando, inclusive, recursos gráficos não convencionais, quanto no assunto, no tema, por assim dizer. Tratava-se de um personagem que, depois de morto, resolveu escrever suas memórias póstumas
.
Já se disse que há dois tipos de escritores: os que escrevem para leitores que já existem e os que fundam seus leitores, isto é, o texto cria seu próprio leitor. Nesta segunda categoria estão os gênios.
Ao longo da década de 1870, Machado de Assis, com disciplina profissional, escreveu quatro romances cujas estruturas, ainda fortemente devedoras de um certo romantismo, serviram para que ele esgotasse as possibilidades de se escrever romanticamente
.
Nesse momento, Machado de Assis escrevia para leitores que já existiam, que estavam habituados a um tipo específico de narrador, de enredo, de personagem. Nada parecido com o que nosso autor fará com Memórias póstumas de Brás Cubas.
Aqui, neste romance posto em dúvida, um homem morre e resolve contar, com a isenção que só a morte permite, sua vida. Mas contar uma vida quando ainda se vive, como uma memória não póstuma, possivelmente tende a transformar o narrador em tema de si mesmo. De algum modo, ninguém que escreve sobre si mesmo é capaz de contar tudo, sempre guarda um certo ar de heroísmo, como diria Fernando Pessoa em Poema em linha reta
: Eu nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Pois bem, e se o narrador de suas memórias, num ato de pura abstração ficcional, estiver morto e do mundo dos mortos resolvesse contar tudo?
Aí está a primeira surpresa que nosso Machado de Assis denuncia já na dedicatória
do livro:
Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver dedico como saudosa lembrança estas MEMÓRIAS PÓSTUMAS.
Imagine um leitor romântico, com sua ingênua perspectiva de encontrar uma história linear, com começo, meio e fim, onde as intrigas são todas resolvidas no último capítulo e onde o narrador, normalmente em terceira pessoa, resolve tudo para o leitor, imagine esse pobre leitor tendo em mão um livro dedicado aos vermes...
Mais ainda. Abre o leitor o livro e lá está uma espécie de prefácio onde, em vez de bajular o leitor, de garantir-lhe um espaço de prazer e ócio, o autor diz, entre outras coisas:
A obra em si mesma é tudo: se te agradar, fino leitor, pago-me da tarefa; se te não agradar, pago-te com um piparote, e adeus.
Decididamente, os críticos tinham lá suas razões ao perguntarem se isto era mesmo um romance, porque não se escrevia deste modo, não no Brasil.
Além de tudo isto, nosso autor adotou uma forma de distribuir os capítulos bastante diferente. Fê-lo em fragmentos, ao todo 160, a que denominou capítulos. Alguns não passam de algumas frases, outros, nem isso, como acontece com o capítulo/fragmento 139:
139
De como não fui ministro d’Estado
...............................................................................................
...............................................................................................
...............................................................................................
...............................................................................................
...............................................................................................
Estava começando uma verdadeira revolução da Literatura Brasileira, revolução que promoveu nossa cultura ao mesmo nível das grandes literaturas do mundo: dos ingleses, onde Machado foi buscar motivos em Trisham Shandy de Sterne, dos latinos, onde se inspirou para escrever sobre os mortos que voltam para contar suas vidas (Luciano de Samósata), enfim, de quase todas as grandes literaturas do mundo, que foi ele um dos mais competentes leitores conhecidos entre nós.
Trata-se, portanto, de um texto raro onde o leitor perde um pouco de sua ingenuidade e ganha foros de profissionalização.
Não se pode ler Memórias póstumas de Brás Cubas sem abandonar uma série de preconceitos. É preciso mergulhar no texto, segundo ele, com a pena da galhofa e a tinta da melancolia
, mas também, e principalmente, com o imenso prazer com que acompanhamos as reflexões irônicas de Brás Cubas, suas sutilezas, suas insinuações veladas, enfim, verdades que são ditas sem qualquer aparência de verdade, por isso tão verdadeiras.
Nosso Machado de Assis tinha cerca de 50 anos quando começou a escrever este romance. Escreveu-o depois de uma crise profunda que o levou a sua única viagem fora do Rio de Janeiro — foi para Friburgo onde, possivelmente, iniciou os primeiros esboços do texto.
De certo modo, ele sabia que sua inteligência e sensibilidade de gênio estariam definitivamente comprometidas com a humanidade ao escrever uma das joias da Literatura Brasileira e mundial.¹
Carlos Sepúlveda
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Pesquisador do Núcleo de Pesquisas da
Fundação Biblioteca Nacional
Nota:
1Texto publicado inicialmente pela Editora Record em 1998. (N. do E.)
AO VERME
QUE
PRIMEIRO ROEU AS FRIAS CARNES
DO MEU CADÁVER
DEDICO
COMO SAUDOSA LEMBRANÇA
ESTAS
MEMÓRIAS PÓSTUMAS
Ao leitor
Que, no alto do principal de seus livros, confessasse Stendhal havê-lo escrito para cem leitores, coisa é que admira e consterna. O que não admira, nem provavelmente consternará é se este outro livro não tiver os cem leitores de Stendhal, nem cinquenta, nem vinte, e quando muito, dez. Dez? Talvez cinco. Trata-se, na verdade, de uma obra difusa, na qual eu, Brás Cubas, se adotei a forma livre de um Sterne, de um Lamb ou de um de Maistre, não sei se lhe meti algumas rabugens de pessimismo. Pode ser. Obra de finado. Escrevia-a com a pena da galhofa e a tinta da melancolia; e não é difícil antever o que poderá sair desse conúbio. Acresce que a gente grave achará no livro umas aparências de puro romance, ao passo que a gente frívola não achará nele o seu romance usual; e ei-lo aí fica privado da estima dos graves e do amor dos frívolos, que são as duas colunas máximas da opinião.
Mas eu ainda espero angariar as simpatias da opinião, e o meio eficaz para isto é fugir a um prólogo explícito e longo. O melhor prólogo é o que contém menos coisas, ou o que as diz de um jeito obscuro e truncado. Conseguintemente, evito contar o processo extraordinário que empreguei na composição destas Memórias, trabalhadas cá no outro mundo. Seria curioso, mas nimiamente extenso, e aliás desnecessário ao entendimento da obra. A obra em si mesma é tudo: se te agradar, fino leitor, pago-me da tarefa; se te não agradar, pago-te com um piparote, e adeus.
Brás Cubas
1
Óbito do autor
Algum tempo hesitei se devia abrir estas memórias pelo princípio ou pelo fim, isto é, se poria em primeiro lugar o meu nascimento ou a minha morte. Suposto o uso vulgar seja começar pelo nascimento, duas considerações me levaram a adotar diferente método: a primeira é que eu não sou propriamente um autor defunto, mas um defunto autor, para quem a campa foi outro berço; a segunda é que o escrito ficaria assim mais galante e mais novo. Moisés, que também contou a sua morte, não a pôs no introito, mas no cabo: diferença radical entre este livro e o Pentateuco.
Dito isto, expirei às duas horas da tarde de uma sexta-feira do mês de agosto de 1869, na minha bela chácara de Catumbi. Tinha uns sessenta e quatro anos, rijos e prósperos, era solteiro, possuía cerca de trezentos contos e fui acompanhado ao cemitério por onze amigos. Onze amigos! Verdade é que não houve cartas nem anúncios. Acresce que chovia – peneirava – uma chuvinha miúda, triste e constante, tão constante e tão triste, que levou um daqueles fiéis da última hora a intercalar esta engenhosa ideia no discurso que proferiu à beira de minha cova: Vós, que o conhecestes, meus senhores, vós podeis dizer comigo que a natureza parece estar chorando a perda irreparável de um dos mais belos caracteres que tem honrado a humanidade. Este ar sombrio, estas gotas do céu, aquelas nuvens escuras que cobrem o azul como um crepe funéreo, tudo isso é a dor crua e má que lhe rói à natureza as mais íntimas entranhas; tudo isso é um sublime louvor ao nosso ilustre finado.
Bom e fiel amigo! Não, não me arrependo das vinte apólices que lhe deixei. E foi assim que cheguei à cláusula dos meus dias; foi assim que me encaminhei para o undiscovered country de Hamlet, sem as ânsias nem as dúvidas do moço príncipe, mas pausado e trôpego, como quem se retira tarde do espetáculo. Tarde e aborrecido. Viram-me ir umas nove ou dez pessoas, entre elas três senhoras, – minha irmã Sabina, casada com o Cotrim, – a filha, um lírio-do-vale, – e... Tenham paciência! daqui a pouco lhes direi quem era a terceira senhora. Contentem-se de saber que essa anônima, ainda que não parenta, padeceu mais do que as parentas. É verdade, padeceu mais. Não digo que se carpisse, não digo que se deixasse rolar pelo chão, epiléptica. Nem o meu óbito era coisa altamente dramática... Um solteirão que expira aos sessenta e quatro anos, não parece que reúna em si todos os elementos de uma tragédia. E dado que sim, o que menos convinha a essa anônima era aparentá-lo. De pé, à cabeceira da cama, com os olhos estúpidos, a boca entreaberta, a triste senhora mal podia crer na minha extinção.
– Morto! morto! – dizia consigo.
E a imaginação dela, como as cegonhas que um ilustre viajante viu desferirem o voo desde o Ilisso às ribas africanas, sem embargo das ruínas e dos tempos – a imaginação dessa senhora também voou por sobre os destroços presentes até às ribas de uma África juvenil... Deixá-la ir; lá iremos mais tarde; lá iremos quando eu me restituir aos primeiros anos. Agora, quero morrer tranquilamente, metodicamente, ouvindo os soluços das damas, as falas baixas dos homens, a chuva que tamborila nas folhas de tinhorão da chácara, e o som estrídulo de uma navalha que um amolador está afiando lá fora, à porta de um correeiro. Juro-lhes que essa orquestra da morte foi muito menos triste do que podia parecer. De certo ponto em diante chegou a ser deliciosa. A vida estrebuchava-me no peito, com uns ímpetos de vaga marinha, esvaía-se-me a consciência, eu descia à imobilidade física e moral, e o corpo fazia-se-me planta, e pedra, e lodo, e coisa nenhuma.
Morri de uma pneumonia; mas se lhe disser que foi menos a pneumonia, do que uma ideia grandiosa e útil, a causa da minha morte, é possível que o leitor me não creia, e todavia é verdade. Vou expor-lhe sumariamente o caso. Julgue-o por si mesmo.
2
O emplasto
Com efeito, um dia de manhã, estando a passear na chácara, pendurou-se-me uma ideia no trapézio que eu tinha no cérebro. Uma vez pendurada, entrou a bracejar, a pernear, a fazer as mais arrojadas cabriolas de volantim, que é possível crer. Eu deixei-me estar a contemplá-la. Súbito, deu um grande salto, estendeu os braços e as pernas, até tomar a forma de um X: decifra-me ou devoro-te.
Essa ideia era nada menos que a invenção de um medicamento sublime, um emplasto anti-hipocondríaco, destinado a aliviar a nossa melancólica humanidade. Na petição de privilégio que então redigi, chamei a atenção do governo para esse resultado, verdadeiramente cristão. Todavia, não neguei aos amigos as vantagens pecuniárias que deviam resultar da distribuição de um produto de tamanhos e tão profundos efeitos. Agora, porém, que estou cá do outro lado da vida, posso confessar tudo: o que me influiu principalmente foi o gosto de ver impressas nos jornais, mostradores, folhetos, esquinas, e enfim nas caixinhas do remédio, estas três palavras: Emplasto Brás Cubas. Para que negá-lo? Eu tinha a paixão do arruído, do cartaz, do foguete de lágrimas. Talvez os modestos me arguam esse defeito; fio, porém, que esse talento me hão de reconhecer os hábeis; ... e eu era hábil.
Assim, a minha ideia trazia duas faces, como as medalhas, uma virada para o público, outra para mim. De um lado, filantropia e lucro; de outro lado, sede de nomeada. Digamos: – amor da glória.
Um tio meu, cônego de prebenda inteira, costumava dizer que o amor da glória temporal era a perdição das almas, que só devem cobiçar a glória eterna. Ao que retorquia outro tio, oficial de um dos antigos terços de infantaria, que o amor da glória era a coisa mais verdadeiramente humana que há no homem, e, conseguintemente, a sua mais genuína feição.
Decida o leitor entre o militar e o cônego; eu volto ao emplasto.
3
Genealogia
Mas, já que falei nos meus dois tios, deixem-me fazer aqui um curto esboço genealógico.
O fundador de minha família foi um certo Damião Cubas, que floresceu na primeira metade do século XVIII. Era tanoeiro de ofício, natural do Rio de Janeiro, onde teria morrido na penúria e na obscuridade, se somente exercesse a tanoaria. Mas não; fez-se lavrador, plantou, colheu, permutou o seu produto por boas e honradas patacas, até que morreu, deixando grosso cabedal a um filho, o licenciado Luís Cubas. Neste rapaz é que verdadeiramente começa a série de meus avós – dos avós que a minha família sempre confessou –, porque o Damião Cubas era afinal de contas um tanoeiro, e talvez mau tanoeiro, ao passo que o Luís Cubas estudou em Coimbra, primou no Estado, e foi um dos amigos particulares do vice-rei conde da Cunha.
Como este apelido de Cubas lhe cheirasse excessivamente a tanoaria, alegava meu pai, bisneto do Damião, que o dito apelido fora dado a um cavaleiro, herói nas jornadas da África, em prêmio da façanha que praticou arrebatando trezentas cubas ao mouros. Meu pai era homem de imaginação; escapou à tanoaria nas asas de um calembour. Era um bom caráter, meu pai, varão digno e leal como poucos. Tinha, é verdade, uns fumos de pacholice; mas quem não é um pouco pachola nesse mundo? Releva notar que ele não recorreu à inventiva senão depois de experimentar a falsificação; primeiramente, entroncou-se na família daquele meu famoso homônimo, o capitão-mor Brás Cubas, que fundou a vila de São Vicente, onde morreu em 1592, e por esse motivo é que me deu o nome de Brás. Opôs-se-lhe, porém, a família do capitão-mor, e foi então que ele imaginou as trezentas cubas mouriscas.