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Memórias póstumas de Brás Cubas
Memórias póstumas de Brás Cubas
Memórias póstumas de Brás Cubas
E-book254 páginas3 horas

Memórias póstumas de Brás Cubas

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Sobre este e-book

Memórias póstumas de Brás Cubas é considerado o primeiro romance do movimento realista no Brasil. Brás Cubas, um decadente aristocrata já falecido, resolve escrever sua autobiografia e volta à infância e a outros episódios de sua vida. Em tom ácido, o defunto-narrador rompe com a narrativa linear e objetiva por meio da digressão, e utiliza-se da ironia para retratar e criticar a sociedade carioca do final do século XIX. Com sua proposta ousada de estilo e linguagem, o realismo de Machado de Assis apresenta características precursoras do modernismo, movimento marcante na história da literatura brasileira.
Memórias póstumas de Brás Cubas (1881) faz parte da "fase de maturidade" de Machado de Assis, juntamente com os romances Quincas Borba (1891) e Dom Casmurro (1899).
IdiomaPortuguês
Data de lançamento22 de set. de 2016
ISBN9788577995301
Autor

Machado de Assis

Joaquim Maria Machado de Assis (Rio de Janeiro, 21 de junho de 1839 Rio de Janeiro, 29 de setembro de 1908) foi um escritor brasileiro, considerado por muitos críticos, estudiosos, escritores e leitores o maior nome da literatura brasileira.

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    Memórias póstumas de Brás Cubas - Machado de Assis

    EDIÇÕES BESTBOLSO

    Memórias póstumas de Brás Cubas

    Jornalista, contista, cronista, romancista, poeta e teatrólogo, Joaquim Maria Machado de Assis (1839-1908) é considerado um dos grandes nomes da literatura brasileira. O autor nasceu no Rio de Janeiro e, mesmo sem ter completado o ensino fundamental, publicou seu primeiro poema aos 16 anos, na revista Marmota Fluminense. Trabalhou como tipógrafo aprendiz na Tipografia Nacional, foi revisor do Correio Mercantil e redator do Diário do Rio de Janeiro. O primeiro livro publicado por Machado de Assis foi o ensaio satírico Queda que as mulheres têm para os tolos, em 1861. Seu primeiro livro de poesias, Crisálidas, saiu em 1864. Em 1867, foi nomeado ajudante do diretor de publicação do Diário Oficial, cargo que exerceu até 1874. A obra de Machado de Assis abrange praticamente todos os gêneros literários. Na poesia, iniciou com o romantismo de Crisálidas, passando pelo indianismo em Americanas (1875), e o parnasianismo em Ocidentais (1901). Obras como a coletânea Contos fluminenses (1870) e os romances Ressurreição (1872), A mão e a luva (1874), Helena (1876) e Iaiá Garcia (1878) são consideradas pertencentes ao seu período romântico. Na década de 1880, a produção literária do autor sofreu uma grande mudança, inaugurando a fase das obras-primas com os romances Memórias póstumas de Brás Cubas (1881), Quincas Borba (1891) e Dom Casmurro (1899). Em 1896, dirigiu a primeira sessão preparatória da fundação da Academia Brasileira de Letras. Fundador da Cadeira nº 23, Machado ocupou por mais de dez anos a presidência da Academia, que passou a ser chamada também de Casa de Machado de Assis.

    1ª edição

    RIO DE JANEIRO – 2012

    CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO

    SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

    A866m

    Assis, Machado de, 1839-1908

    Memórias póstumas de Brás Cubas [recurso eletrônico] / Machado de Assis. - 1. ed. - Rio de Janeiro : Best Bolso , 2016.

    recurso digital

    Formato: epub

    Requisitos do sistema: adobe digital editions

    Modo de acesso: world wide web

    ISBN 978-85-7799-530-1 (recurso eletrônico)

    1. Romance brasileiro. 2. Livros eletrônicos. I. Título.

    16-36014

    CDD: 869.3

    CDU: 821.134.3(81)-3

    Memórias póstumas de Brás Cubas, de autoria de Machado de Assis.

    Título número 318 das Edições BestBolso.

    Primeira edição impressa em agosto de 2012.

    Texto revisado conforme o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.

    www.edicoesbestbolso.com.br

    Design de capa: Mello & Mayer Design.

    Nota do editor: Esta edição de bolso teve como base a edição publicada pela Editora Record em 2008, que contou com a intervenção da Fundação Biblioteca Nacional que, por intermédio de seus Departamentos de Processos Técnicos e de Referência e Difusão, sob a regência do Departamento Nacional do Livro, se responsabilizou pelo resgate dos textos originais, cotejando as edições das obras em domínio público selecionadas para o Programa Nacional da Escola/ FNDE. Para a reconstrução dos textos foram consultadas as edições princeps. Houve uma só preocupação: orientar os leitores revisores quanto à atualização ortográfica.

    Todos os direitos desta edição reservados a Edições BestBolso um selo da Editora Best Seller Ltda. Rua Argentina 171 – 20921-380 Rio de Janeiro, RJ – Tel.: 2585-2000.

    Produzido no Brasil

    ISBN 978-85-7799-530-1

    Sumário

    Capítulo 1

    Capítulo 2

    Capítulo 3

    Capítulo 4

    Capítulo 5

    Capítulo 6

    Capítulo 7

    Capítulo 8

    Capítulo 9

    Capítulo 10

    Capítulo 11

    Capítulo 12

    Capítulo 13

    Capítulo 14

    Capítulo 15

    Capítulo 16

    Capítulo 17

    Capítulo 18

    Capítulo 19

    Capítulo 20

    Capítulo 21

    Capítulo 22

    Capítulo 23

    Capítulo 24

    Capítulo 25

    Capítulo 26

    Capítulo 27

    Capítulo 28

    Capítulo 29

    Capítulo 30

    Capítulo 31

    Capítulo 32

    Capítulo 33

    Capítulo 34

    Capítulo 35

    Capítulo 36

    Capítulo 37

    Capítulo 38

    Capítulo 39

    Capítulo 40

    Capítulo 41

    Capítulo 42

    Capítulo 43

    Capítulo 44

    Capítulo 45

    Capítulo 46

    Capítulo 47

    Capítulo 48

    Capítulo 49

    Capítulo 50

    Capítulo 51

    Capítulo 52

    Capítulo 53

    Capítulo 54

    Capítulo 55

    Capítulo 56

    Capítulo 57

    Capítulo 58

    Capítulo 59

    Capítulo 60

    Capítulo 61

    Capítulo 62

    Capítulo 63

    Capítulo 64

    Capítulo 65

    Capítulo 66

    Capítulo 67

    Capítulo 68

    Capítulo 69

    Capítulo 70

    Capítulo 71

    Capítulo 72

    Capítulo 73

    Capítulo 74

    Capítulo 75

    Capítulo 76

    Capítulo 77

    Capítulo 78

    Capítulo 79

    Capítulo 80

    Capítulo 81

    Capítulo 82

    Capítulo 83

    Capítulo 84

    Capítulo 85

    Capítulo 86

    Capítulo 87

    Capítulo 88

    Capítulo 89

    Capítulo 90

    Capítulo 91

    Capítulo 92

    Capítulo 93

    Capítulo 94

    Capítulo 95

    Capítulo 96

    Capítulo 97

    Capítulo 98

    Capítulo 99

    Capítulo 100

    Capítulo 101

    Capítulo 102

    Capítulo 103

    Capítulo 104

    Capítulo 105

    Capítulo 106

    Capítulo 107

    Capítulo 108

    Capítulo 109

    Capítulo 110

    Capítulo 111

    Capítulo 112

    Capítulo 113

    Capítulo 114

    Capítulo 115

    Capítulo 116

    Capítulo 117

    Capítulo 118

    Capítulo 119

    Capítulo 120

    Capítulo 121

    Capítulo 122

    Capítulo 123

    Capítulo 124

    Capítulo 125

    Capítulo 126

    Capítulo 127

    Capítulo 128

    Capítulo 129

    Capítulo 130

    Capítulo 131

    Capítulo 132

    Capítulo 133

    Capítulo 134

    Capítulo 135

    Capítulo 136

    Capítulo 137

    Capítulo 138

    Capítulo 139

    Capítulo 140

    Capítulo 141

    Capítulo 142

    Capítulo 143

    Capítulo 144

    Capítulo 145

    Capítulo 146

    Capítulo 147

    Capítulo 148

    Capítulo 149

    Capítulo 150

    Capítulo 151

    Capítulo 152

    Capítulo 153

    Capítulo 154

    Capítulo 155

    Capítulo 156

    Capítulo 157

    Capítulo 158

    Capítulo 159

    Capítulo 160

    Prefácio

    Quando esta narrativa saiu publicada em livro, em 1881, a primeira pergunta que se fez foi se este era um romance.

    Na surpresa da pergunta está uma explicação para este texto tão surpreendente, tanto na forma, na expressão, utilizando, inclusive, recursos gráficos não convencionais, quanto no assunto, no tema, por assim dizer. Tratava-se de um personagem que, depois de morto, resolveu escrever suas memórias póstumas.

    Já se disse que há dois tipos de escritores: os que escrevem para leitores que já existem e os que fundam seus leitores, isto é, o texto cria seu próprio leitor. Nesta segunda categoria estão os gênios.

    Ao longo da década de 1870, Machado de Assis, com disciplina profissional, escreveu quatro romances cujas estruturas, ainda fortemente devedoras de um certo romantismo, serviram para que ele esgotasse as possibilidades de se escrever romanticamente.

    Nesse momento, Machado de Assis escrevia para leitores que já existiam, que estavam habituados a um tipo específico de narrador, de enredo, de personagem. Nada parecido com o que nosso autor fará com Memórias póstumas de Brás Cubas.

    Aqui, neste romance posto em dúvida, um homem morre e resolve contar, com a isenção que só a morte permite, sua vida. Mas contar uma vida quando ainda se vive, como uma memória não póstuma, possivelmente tende a transformar o narrador em tema de si mesmo. De algum modo, ninguém que escreve sobre si mesmo é capaz de contar tudo, sempre guarda um certo ar de heroísmo, como diria Fernando Pessoa em Poema em linha reta: Eu nunca conheci quem tivesse levado porrada.

    Pois bem, e se o narrador de suas memórias, num ato de pura abstração ficcional, estiver morto e do mundo dos mortos resolvesse contar tudo?

    Aí está a primeira surpresa que nosso Machado de Assis denuncia já na dedicatória do livro:

    Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver dedico como saudosa lembrança estas MEMÓRIAS PÓSTUMAS.

    Imagine um leitor romântico, com sua ingênua perspectiva de encontrar uma história linear, com começo, meio e fim, onde as intrigas são todas resolvidas no último capítulo e onde o narrador, normalmente em terceira pessoa, resolve tudo para o leitor, imagine esse pobre leitor tendo em mão um livro dedicado aos vermes...

    Mais ainda. Abre o leitor o livro e lá está uma espécie de prefácio onde, em vez de bajular o leitor, de garantir-lhe um espaço de prazer e ócio, o autor diz, entre outras coisas:

    A obra em si mesma é tudo: se te agradar, fino leitor, pago-me da tarefa; se te não agradar, pago-te com um piparote, e adeus.

    Decididamente, os críticos tinham lá suas razões ao perguntarem se isto era mesmo um romance, porque não se escrevia deste modo, não no Brasil.

    Além de tudo isto, nosso autor adotou uma forma de distribuir os capítulos bastante diferente. Fê-lo em fragmentos, ao todo 160, a que denominou capítulos. Alguns não passam de algumas frases, outros, nem isso, como acontece com o capítulo/fragmento 139:

    139

    De como não fui ministro d’Estado

    ...............................................................................................

    ...............................................................................................

    ...............................................................................................

    ...............................................................................................

    ...............................................................................................

    Estava começando uma verdadeira revolução da Literatura Brasileira, revolução que promoveu nossa cultura ao mesmo nível das grandes literaturas do mundo: dos ingleses, onde Machado foi buscar motivos em Trisham Shandy de Sterne, dos latinos, onde se inspirou para escrever sobre os mortos que voltam para contar suas vidas (Luciano de Samósata), enfim, de quase todas as grandes literaturas do mundo, que foi ele um dos mais competentes leitores conhecidos entre nós.

    Trata-se, portanto, de um texto raro onde o leitor perde um pouco de sua ingenuidade e ganha foros de profissionalização.

    Não se pode ler Memórias póstumas de Brás Cubas sem abandonar uma série de preconceitos. É preciso mergulhar no texto, segundo ele, com a pena da galhofa e a tinta da melancolia, mas também, e principalmente, com o imenso prazer com que acompanhamos as reflexões irônicas de Brás Cubas, suas sutilezas, suas insinuações veladas, enfim, verdades que são ditas sem qualquer aparência de verdade, por isso tão verdadeiras.

    Nosso Machado de Assis tinha cerca de 50 anos quando começou a escrever este romance. Escreveu-o depois de uma crise profunda que o levou a sua única viagem fora do Rio de Janeiro — foi para Friburgo onde, possivelmente, iniciou os primeiros esboços do texto.

    De certo modo, ele sabia que sua inteligência e sensibilidade de gênio estariam definitivamente comprometidas com a humanidade ao escrever uma das joias da Literatura Brasileira e mundial.¹

    Carlos Sepúlveda

    Universidade Federal do Rio de Janeiro

    Pesquisador do Núcleo de Pesquisas da

    Fundação Biblioteca Nacional

    Nota:

    1Texto publicado inicialmente pela Editora Record em 1998. (N. do E.)

    AO VERME
    QUE
    PRIMEIRO ROEU AS FRIAS CARNES
    DO MEU CADÁVER
    DEDICO
    COMO SAUDOSA LEMBRANÇA
    ESTAS
    MEMÓRIAS PÓSTUMAS

    Ao leitor

    Que, no alto do principal de seus livros, confessasse Stendhal havê-lo escrito para cem leitores, coisa é que admira e consterna. O que não admira, nem provavelmente consternará é se este outro livro não tiver os cem leitores de Stendhal, nem cinquenta, nem vinte, e quando muito, dez. Dez? Talvez cinco. Trata-se, na verdade, de uma obra difusa, na qual eu, Brás Cubas, se adotei a forma livre de um Sterne, de um Lamb ou de um de Maistre, não sei se lhe meti algumas rabugens de pessimismo. Pode ser. Obra de finado. Escrevia-a com a pena da galhofa e a tinta da melancolia; e não é difícil antever o que poderá sair desse conúbio. Acresce que a gente grave achará no livro umas aparências de puro romance, ao passo que a gente frívola não achará nele o seu romance usual; e ei-lo aí fica privado da estima dos graves e do amor dos frívolos, que são as duas colunas máximas da opinião.

    Mas eu ainda espero angariar as simpatias da opinião, e o meio eficaz para isto é fugir a um prólogo explícito e longo. O melhor prólogo é o que contém menos coisas, ou o que as diz de um jeito obscuro e truncado. Conseguintemente, evito contar o processo extraordinário que empreguei na composição destas Memórias, trabalhadas cá no outro mundo. Seria curioso, mas nimiamente extenso, e aliás desnecessário ao entendimento da obra. A obra em si mesma é tudo: se te agradar, fino leitor, pago-me da tarefa; se te não agradar, pago-te com um piparote, e adeus.

    Brás Cubas

    1

    Óbito do autor

    Algum tempo hesitei se devia abrir estas memórias pelo princípio ou pelo fim, isto é, se poria em primeiro lugar o meu nascimento ou a minha morte. Suposto o uso vulgar seja começar pelo nascimento, duas considerações me levaram a adotar diferente método: a primeira é que eu não sou propriamente um autor defunto, mas um defunto autor, para quem a campa foi outro berço; a segunda é que o escrito ficaria assim mais galante e mais novo. Moisés, que também contou a sua morte, não a pôs no introito, mas no cabo: diferença radical entre este livro e o Pentateuco.

    Dito isto, expirei às duas horas da tarde de uma sexta-feira do mês de agosto de 1869, na minha bela chácara de Catumbi. Tinha uns sessenta e quatro anos, rijos e prósperos, era solteiro, possuía cerca de trezentos contos e fui acompanhado ao cemitério por onze amigos. Onze amigos! Verdade é que não houve cartas nem anúncios. Acresce que chovia – peneirava – uma chuvinha miúda, triste e constante, tão constante e tão triste, que levou um daqueles fiéis da última hora a intercalar esta engenhosa ideia no discurso que proferiu à beira de minha cova: Vós, que o conhecestes, meus senhores, vós podeis dizer comigo que a natureza parece estar chorando a perda irreparável de um dos mais belos caracteres que tem honrado a humanidade. Este ar sombrio, estas gotas do céu, aquelas nuvens escuras que cobrem o azul como um crepe funéreo, tudo isso é a dor crua e má que lhe rói à natureza as mais íntimas entranhas; tudo isso é um sublime louvor ao nosso ilustre finado.

    Bom e fiel amigo! Não, não me arrependo das vinte apólices que lhe deixei. E foi assim que cheguei à cláusula dos meus dias; foi assim que me encaminhei para o undiscovered country de Hamlet, sem as ânsias nem as dúvidas do moço príncipe, mas pausado e trôpego, como quem se retira tarde do espetáculo. Tarde e aborrecido. Viram-me ir umas nove ou dez pessoas, entre elas três senhoras, – minha irmã Sabina, casada com o Cotrim, – a filha, um lírio-do-vale, – e... Tenham paciência! daqui a pouco lhes direi quem era a terceira senhora. Contentem-se de saber que essa anônima, ainda que não parenta, padeceu mais do que as parentas. É verdade, padeceu mais. Não digo que se carpisse, não digo que se deixasse rolar pelo chão, epiléptica. Nem o meu óbito era coisa altamente dramática... Um solteirão que expira aos sessenta e quatro anos, não parece que reúna em si todos os elementos de uma tragédia. E dado que sim, o que menos convinha a essa anônima era aparentá-lo. De pé, à cabeceira da cama, com os olhos estúpidos, a boca entreaberta, a triste senhora mal podia crer na minha extinção.

    – Morto! morto! – dizia consigo.

    E a imaginação dela, como as cegonhas que um ilustre viajante viu desferirem o voo desde o Ilisso às ribas africanas, sem embargo das ruínas e dos tempos – a imaginação dessa senhora também voou por sobre os destroços presentes até às ribas de uma África juvenil... Deixá-la ir; lá iremos mais tarde; lá iremos quando eu me restituir aos primeiros anos. Agora, quero morrer tranquilamente, metodicamente, ouvindo os soluços das damas, as falas baixas dos homens, a chuva que tamborila nas folhas de tinhorão da chácara, e o som estrídulo de uma navalha que um amolador está afiando lá fora, à porta de um correeiro. Juro-lhes que essa orquestra da morte foi muito menos triste do que podia parecer. De certo ponto em diante chegou a ser deliciosa. A vida estrebuchava-me no peito, com uns ímpetos de vaga marinha, esvaía-se-me a consciência, eu descia à imobilidade física e moral, e o corpo fazia-se-me planta, e pedra, e lodo, e coisa nenhuma.

    Morri de uma pneumonia; mas se lhe disser que foi menos a pneumonia, do que uma ideia grandiosa e útil, a causa da minha morte, é possível que o leitor me não creia, e todavia é verdade. Vou expor-lhe sumariamente o caso. Julgue-o por si mesmo.

    2

    O emplasto

    Com efeito, um dia de manhã, estando a passear na chácara, pendurou-se-me uma ideia no trapézio que eu tinha no cérebro. Uma vez pendurada, entrou a bracejar, a pernear, a fazer as mais arrojadas cabriolas de volantim, que é possível crer. Eu deixei-me estar a contemplá-la. Súbito, deu um grande salto, estendeu os braços e as pernas, até tomar a forma de um X: decifra-me ou devoro-te.

    Essa ideia era nada menos que a invenção de um medicamento sublime, um emplasto anti-hipocondríaco, destinado a aliviar a nossa melancólica humanidade. Na petição de privilégio que então redigi, chamei a atenção do governo para esse resultado, verdadeiramente cristão. Todavia, não neguei aos amigos as vantagens pecuniárias que deviam resultar da distribuição de um produto de tamanhos e tão profundos efeitos. Agora, porém, que estou cá do outro lado da vida, posso confessar tudo: o que me influiu principalmente foi o gosto de ver impressas nos jornais, mostradores, folhetos, esquinas, e enfim nas caixinhas do remédio, estas três palavras: Emplasto Brás Cubas. Para que negá-lo? Eu tinha a paixão do arruído, do cartaz, do foguete de lágrimas. Talvez os modestos me arguam esse defeito; fio, porém, que esse talento me hão de reconhecer os hábeis; ... e eu era hábil. Assim, a minha ideia trazia duas faces, como as medalhas, uma virada para o público, outra para mim. De um lado, filantropia e lucro; de outro lado, sede de nomeada. Digamos: – amor da glória.

    Um tio meu, cônego de prebenda inteira, costumava dizer que o amor da glória temporal era a perdição das almas, que só devem cobiçar a glória eterna. Ao que retorquia outro tio, oficial de um dos antigos terços de infantaria, que o amor da glória era a coisa mais verdadeiramente humana que há no homem, e, conseguintemente, a sua mais genuína feição.

    Decida o leitor entre o militar e o cônego; eu volto ao emplasto.

    3

    Genealogia

    Mas, já que falei nos meus dois tios, deixem-me fazer aqui um curto esboço genealógico.

    O fundador de minha família foi um certo Damião Cubas, que floresceu na primeira metade do século XVIII. Era tanoeiro de ofício, natural do Rio de Janeiro, onde teria morrido na penúria e na obscuridade, se somente exercesse a tanoaria. Mas não; fez-se lavrador, plantou, colheu, permutou o seu produto por boas e honradas patacas, até que morreu, deixando grosso cabedal a um filho, o licenciado Luís Cubas. Neste rapaz é que verdadeiramente começa a série de meus avós – dos avós que a minha família sempre confessou –, porque o Damião Cubas era afinal de contas um tanoeiro, e talvez mau tanoeiro, ao passo que o Luís Cubas estudou em Coimbra, primou no Estado, e foi um dos amigos particulares do vice-rei conde da Cunha.

    Como este apelido de Cubas lhe cheirasse excessivamente a tanoaria, alegava meu pai, bisneto do Damião, que o dito apelido fora dado a um cavaleiro, herói nas jornadas da África, em prêmio da façanha que praticou arrebatando trezentas cubas ao mouros. Meu pai era homem de imaginação; escapou à tanoaria nas asas de um calembour. Era um bom caráter, meu pai, varão digno e leal como poucos. Tinha, é verdade, uns fumos de pacholice; mas quem não é um pouco pachola nesse mundo? Releva notar que ele não recorreu à inventiva senão depois de experimentar a falsificação; primeiramente, entroncou-se na família daquele meu famoso homônimo, o capitão-mor Brás Cubas, que fundou a vila de São Vicente, onde morreu em 1592, e por esse motivo é que me deu o nome de Brás. Opôs-se-lhe, porém, a família do capitão-mor, e foi então que ele imaginou as trezentas cubas mouriscas.

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