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Triste fim de Policarpo Quaresma
Triste fim de Policarpo Quaresma
Triste fim de Policarpo Quaresma
E-book290 páginas5 horas

Triste fim de Policarpo Quaresma

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Sobre este e-book

Um verdadeiro anti-herói, Policarpo traz de nascença a marca do destino: seu "triste fim" já está no nome, a Quaresma, intermezzo do carnaval e da paixão de Cristo. Considerado por diversos críticos como o maior romance do pré-modernismo brasileiro, a obra narra as desventuras de Policarpo e sua atitude peculiar muitas vezes incompreendida. Ao longo de toda a narrativa, quem lhe faz contraponto é Ricardo "Coração dos outros", a seu lado desde a alegria do momento inicial – as aulas de violão em domicílio – até a desdita da morte anunciada.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento28 de out. de 2016
ISBN9788577995387

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    Triste fim de Policarpo Quaresma - Lima Barreto

    EDIÇÕES BESTBOLSO

    Triste fim de Policarpo Quaresma

    O escritor e jornalista Afonso Henriques de Lima Barreto (1881-1922) nasceu no Rio de Janeiro. Filho de um tipógrafo e de uma professora, ele foi apadrinhado pelo Visconde de Ouro Preto, influente ministro do Império, que lhe garantiu uma educação escolar de qualidade. Órfão de mãe na infância e com o pai sofrendo de transtornos mentais, a responsabilidade pelo sustento da família ficou nas mãos de Lima Barreto. Iniciou, portanto, carreira burocrática na Secretaria de Guerra, em 1903, mesma época em que começou a colaborar com artigos e crônicas para os periódicos Correio da Manhã, Jornal do Commercio e A Gazeta da Tarde. Seu primeiro romance, Recordações do escrivão Isaías Caminha, foi inicialmente publicado em formato de folhetim na revista Floreal, fundada por ele. Sua obra mais célebre, Triste fim de Policarpo Quaresma, foi lançada em livro em 1915. Por essa época o autor sofreu suas crises mais graves decorrentes do alcoolismo e da depressão e passou dois meses internado no Hospício Nacional de Alienados. Quatro anos depois, ele se aposentou, por invalidez, do seu cargo na Secretaria de Guerra. Os períodos de internação no hospício resultaram no romance inacabado O cemitério dos vivos. Em 1922 o estado de saúde de Lima Barreto deteriorou-se, e ele veio a falecer em decorrência de um ataque cardíaco. O escritor candidatou-se duas vezes à Academia Brasileira de Letras, mas foi preterido. Muitos dos seus escritos foram publicados postumamente. É também autor de Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá, Os Bruzundangas, Clara dos Anjos, Diário íntimo, entre outros.

    Ilustrações de

    MAURÍCIO VENEZA

    Prefácio de

    CARLOS NEWTON JÚNIOR

    1ª edição

    RIO DE JANEIRO - 2013

    CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO

    SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

    B26t

    Barreto, Lima, 1881-1922

    Triste fim de Policarpo Quaresma [recurso eletrônico] / Lima Barreto ; ilustração Maurício Veneza ; prefácio Carlos Newton Júnior. - 1. ed. - Rio de Janeiro : BestBolso, 2016.

    recurso digital

    Formato: epub

    Requisitos do sistema: adobe digital editions

    Modo de acesso: world wide web

    prefácio

    ISBN 978-85-7799-538-7 (recurso eletrônico)

    1. Ficção brasileira. 2. Livros eletrônicos. I. Veneza, Maurício. II. Título.

    16-36832

    CDD: 869.93

    CDU: 821.134.3(81)-3

    Triste fim de Policarpo Quaresma, de autoria de Lima Barreto.

    Título número 330 das Edições BestBolso.

    Primeira edição impressa em janeiro de 2013.

    Texto revisado conforme o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.

    www.edicoesbestbolso.com.br

    Design de capa: Estúdio Insólito.

    Todos os direitos desta edição reservados a Edições BestBolso um selo da Editora Best Seller Ltda.

    Rua Argentina 171 – 20921-380 Rio de Janeiro, RJ – Tel.: 2585-2000

    Produzido no Brasil

    ISBN 978-85-7799-538-7

    Prefácio à edição de bolso

    O nosso Quixote

    O fato de o romance Triste fim de Policarpo Quaresma ter sido escrito praticamente de um só fôlego, em menos de três meses, entre janeiro e março de 1911, já seria, por si só, mais do que suficiente para atestar a genialidade do seu autor, o carioca Afonso Henriques de Lima Barreto (1881-1922). Não precisaríamos, de fato, mencionar nenhum outro título da sua vasta obra de inquestionável grandeza estética, construída ao longo de uma vida relativamente breve e marcada por tantos e já tão propalados problemas de natureza pessoal (as dificuldades econômicas, o alcoolismo, as humilhações sofridas por conta do enorme preconceito racial então vigente etc.), para situar Lima Barreto entre os grandes escritores brasileiros de todos os tempos. Ademais, sempre nos pareceu inócua a discussão que vez por outra alguns críticos insistem em trazer a público acerca da superioridade ou não da obra de Machado de Assis em relação à de Lima Barreto, uma vez que estamos a tratar de dois temperamentos artísticos radicalmente diferentes, e que engendraram, cada qual a seu modo, verdadeiros monumentos literários, duas obras que hão de permanecer entre as mais importantes da história da nossa literatura.

    Publicado sob a forma de livro em 1915, Triste fim de Policarpo Quaresma serviu de tema, no ano seguinte, para um consagrador artigo do historiador Oliveira Lima, um artigo pioneiro e de certo modo premonitório, sobretudo quando afirmava: o Major Quaresma viverá na tradição, como um Dom Quixote nacional. Muito embora Oliveira Lima não tenha avançado em sua análise, limitando-se a destacar o otimismo incurável e o caráter visionário dos dois personagens, Quixote e Quaresma, ambos arvorando-se de paladinos da justiça, ambos encarnando, ao mesmo tempo, dois símbolos universais, o sonhador e o defensor dos fracos e oprimidos, é no Dom Quixote (e aqui não estamos mais fazendo referência ao personagem de Cervantes, mas ao seu grandioso livro) que se encontra, indiscutivelmente, a matriz geradora do romance de Lima Barreto. E se o grande pensador espanhol Ortega y Gasset chegou a ver, no D. Quixote, a paródia triste de um Cristo mais divino e sereno, um cristo gótico macerado em angústias modernas, não seria exagero, de nossa parte, afirmar que a história de Policarpo Quaresma pode ser lida como uma paródia (sob uma ótica mais realista, como se verá) da vida, paixão e morte do glorioso Cavaleiro da Triste Figura.

    Nesse sentido, as três partes do romance de Lima Barreto, cada uma delas centrada em um dos campos de ação escolhidos pelo Major Quaresma para empreender as suas reformas de caráter nacionalista – o campo cultural, o agrícola e o político –, representariam as três saídas que D. Quixote empreendeu antes de encontrar o seu fim, também triste, ou mesmo trágico, diríamos melhor. O trágico, tanto no caso de D. Quixote quanto no de Quaresma, resulta da consciência que ambos terminam adquirindo da inconsistência ou fragilidade dos valores a que se apegavam para mudar o mundo à sua volta e melhorar a vida das pessoas; da consciência da inutilidade da luta à qual dedicaram o melhor de si mesmos. D. Quixote, que de fato perdera o juízo, morre tendo recuperado a razão, e é esta mesma razão que põe fim à sua razão de viver. Quaresma, preso na Ilha das Cobras, mas cujo fim permanece em aberto (será fuzilado? receberá algum tipo de perdão?), desespera-se ao fazer um balanço da sua vida e perceber que nada mais havia feito além de perseguir um sonho impossível, envelhecendo e gastando seu tempo atrás de uma quimera.

    Veja-se, ainda, que tanto D. Quixote quanto Quaresma são apresentados ao leitor na fase de maturidade, ambos beirando os cinquenta anos, quando estão prestes a sair a campo para tentar concretizar os seus sonhos; e que, tanto num caso quanto no outro, a culpa pelas ações desarrazoadas dos protagonistas recairá sobre os seus livros. Na obra de Cervantes, o cura e o barbeiro da aldeia, amigos do valoroso cavaleiro, terminam levando ao fogo quase toda a biblioteca de D. Quixote, causadora de tantos males. Quanto ao romance de Lima Barreto, bastaria lembrar a frase que o General Albernaz, que fora vizinho de Quaresma, diz para o trovador Ricardo Coração dos Outros: Aquele Quaresma podia estar bem, mas foi meter-se com livros... É isto! Eu, há bem quarenta anos, que não pego em livro...

    Poderíamos também pensar em certas aproximações entre alguns personagens mais diretamente ligados aos dois protagonistas em questão. Assim, se D. Quixote possui uma ama e uma sobrinha, Quaresma possui uma irmã mais velha, Adelaide, que mora com ele e cuida da casa, e uma afilhada, Olga. Em relação a esta, Quaresma deixa transparecer um sentimento que às vezes nos sugere uma espécie de amor reprimido, casto e sublimado (talvez o mais correto fosse dizer isso a respeito dos sentimentos de Olga em relação a Quaresma), e que nos faz pensar no amor de D. Quixote por Dulcineia del Toboso. Na mesma linha de pensamento, o fiel escudeiro de D. Quixote, Sancho Pança, poderia ser associado a Ricardo Coração dos Outros, o grande amigo de Quaresma, aquele que não lhe dará as costas nem desistirá de pedir pela sua liberdade, ao final do romance.

    Que fique claro, porém, que o aspecto visionário de Quaresma é muito mais realista do que o de D. Quixote. Ao longo de quase todo o romance de Lima Barreto, à exceção do período que passa internado no hospício da Praia das Saudades, Quaresma demonstra possuir uma lucidez muito acima do comum. Tomado, desde moço, aí pelos vinte anos, pelo amor da Pátria, um sentimento sério, grave e absorvente, um sentimento puro e desinteressado, que abarcava o país inteiro e nada tinha a ver com ambições políticas, administrativas ou de fortuna, Quaresma nada mais quer do que trabalhar pelo desenvolvimento do seu país e a melhoria de vida do seu povo. Suas ideias, em grande parte (o retorno à língua Tupi estaria, novamente, no campo da exceção), são dotadas de grande seriedade, e se muitas delas ainda nos levam ao riso, precisaríamos repensar até que ponto continua atual a famosa reflexão de Machado de Assis: Um dos defeitos mais gerais, entre nós, é achar sério o que é ridículo, e ridículo o que é sério, pois o tato para acertar nestas coisas é também uma virtude do povo.

    Resta-nos, por fim, e tendo em vista as dimensões reduzidas deste prefácio, chamar a atenção dos leitores para a crítica social mordaz que é uma constante na obra de Lima Barreto, uma crítica que procura não só arrancar as máscaras e pôr a nu o Brasil oficial, mas revelar as suas entranhas; chamar a atenção, inclusive, para a atualidade dessa crítica, em nosso país ainda hoje repleto de políticos da estirpe de Floriano Peixoto e do doutor Campos, de doutores e pseudoescritores como Armando Borges e de bajuladores profissionais como Genelício. Por mais que a história oficial procure nos mostrar outra imagem de Floriano, por exemplo, a que irá predominar será sempre a do homem insignificante, com sua total ausência de qualidades intelectuais e a preguiça mórbida do seu caráter.

    Trata-se, portanto, o Triste fim de Policarpo Quaresma, também de um livro vingador, para usarmos uma expressão cara a Euclydes da Cunha, livro que deve ser lido e relido por todos os brasileiros de bom-senso, sobretudo pela nossa juventude, como uma espécie de vacina contra o vírus da hipocrisia social que insiste em nos atacar e corromper. Em nosso tempo de globalização da economia e da cultura, a questão nacional, levantada por Quaresma, não é algo ultrapassado. Isto porque uma globalização que imponha valores culturais pretensamente universais, que não esteja aberta para escutar a nota dissonante e peculiar que cada país deve tocar no concerto das nações do mundo, e que procure confundir, de propósito, universalidade e uniformização, esta globalização nada mais será do que outro nome para a velha e indesejável prática do imperialismo.

    Carlos Newton Júnior

    Escritor, poeta e professor universitário.

    Recife, dezembro de 2009.

    A

    João Luiz Ferreira

    Engenheiro Civil

    Le grand inconvénient de la vie réelle et ce qui la rend insupportable à l’homme supérieur, c’est que, si l’on y transporte les principes de l’idéal, les qualités deviennent des défauts, si bien que fort souvent l’homme accompli y réussit moins bien que celui qui a pour mobiles l’égoïsme ou la routine vulgaire.¹

    Renan, Marc-Auréle

    Nota:

    1. O grande inconveniente da vida real e o que a torna insuportável ao homem superior é que se aplicarmos a ela os princípios do ideal as qualidades se tornam defeitos, de modo que muito frequentemente o homem realizado obtém muito menos sucesso do que aquele que é movido pelo egoísmo ou pela rotina vulgar.

    Sumário

    Parte I

    Capítulo 1

    Capítulo 2

    Capítulo 3

    Capítulo 4

    Capítulo 5

    Parte II

    Capítulo 1

    Capítulo 2

    Capítulo 3

    Capítulo 4

    Capítulo 5

    Parte III

    Capítulo 1

    Capítulo 2

    Capítulo 3

    Capítulo 4

    Capítulo 5

    Parte I

    1

    A lição de violão

    Como de hábito, Policarpo Quaresma, mais conhecido por Major Quaresma, bateu em casa às quatro e quinze da tarde. Havia mais de vinte anos que isso acontecia. Saindo do Arsenal de Guerra, onde era subsecretário, bongava pelas confeitarias algumas frutas, comprava um queijo, às vezes, e sempre o pão da padaria francesa.

    Não gastava nesses passos nem mesmo uma hora, de forma que, às três e quarenta, por aí assim, tomava o bonde, sem erro de um minuto, ia pisar a soleira da porta de sua casa, numa rua afastada de São Januário, bem exatamente às quatro e quinze, como se fosse a aparição de um astro, um eclipse, enfim um fenômeno matematicamente determinado, previsto e predito.

    A vizinhança já lhe conhecia os hábitos e tanto que, na casa do Capitão Cláudio, onde era costume jantar-se aí pelas quatro e meia, logo que o viam passar, a dona gritava à criada: Alice, olha que são horas; o Major Quaresma já passou.

    E era assim todos os dias, há quase trinta anos. Vivendo em casa própria e tendo outros rendimentos além do seu ordenado, o Major Quaresma podia levar um trem de vida superior aos seus recursos burocráticos, gozando, por parte da vizinhança, da consideração e respeito de homem abastado.

    Não recebia ninguém, vivia num isolamento monacal, embora fosse cortês com os vizinhos que o julgavam esquisito e misantropo. Se não tinha amigos na redondeza, não tinha inimigos, e a única desafeição que merecera fora a do Doutor Segadas, um clínico afamado no lugar, que não podia admitir que Quaresma tivesse livros: Se não era formado, para quê? Pedantismo!

    O subsecretário não mostrava os livros a ninguém, mas acontecia que, quando se abriam as janelas da sala de sua livraria, da rua poder-se-iam ver as estantes pejadas de cima a baixo.

    Eram esses os seus hábitos; ultimamente, porém, mudara um pouco; e isso provocava comentários no bairro. Além do compadre e da filha, as únicas pessoas que o visitavam até então, nos últimos dias, era visto entrar em sua casa, três vezes por semana e em dias certos, um senhor baixo, magro, pálido, com um violão agasalhado numa bolsa de camurça. Logo pela primeira vez o caso intrigou a vizinhança. Um violão em casa tão respeitável! Que seria?

    E, na mesma tarde, uma das mais lindas vizinhas do major convidou uma amiga, e ambas levaram um tempo perdido, de cá pra lá, a palmilhar o passeio, esticando a cabeça, quando passavam diante da janela aberta do esquisito subsecretário.

    Não foi inútil a espionagem. Sentado no sofá, tendo ao lado o tal sujeito, empunhando o pinho na posição de tocar, o major, atentamente, ouvia: Olhe, major, assim. E as cordas vibravam vagarosamente a nota ferida; em seguida, o mestre aduzia: É ‘ré’, aprendeu?

    Mais não foi preciso pôr na carta; a vizinhança concluiu logo que o major aprendia a tocar violão. Mas que cousa? Um homem tão sério metido nessas malandragens!

    Uma tarde de sol – sol de março, forte e implacável – aí pelas cercanias das quatro horas, as janelas de uma erma rua de São Januário povoaram-se rápida e repentinamente, de um e de outro lado. Até da casa do general vieram moças à janela!

    Que era? Um batalhão? Um incêndio? Nada disto: o Major Quaresma, de cabeça baixa, com pequenos passos de boi de carro, subia a rua, tendo debaixo do braço um violão impudico.

    É verdade que a guitarra vinha decentemente embrulhada em papel, mas o vestuário não lhe escondia inteiramente as formas. À vista de tão escandaloso fato, a consideração e o respeito que o Major Policarpo Quaresma merecia nos arredores de sua casa diminuíam um pouco. Estava perdido, maluco, diziam. Ele, porém, continuou serenamente nos seus estudos, mesmo porque não percebeu essa diminuição.

    Quaresma era um homem pequeno, magro, que usava pince-nez, olhava sempre baixo, mas, quando fixava alguém ou alguma cousa, os seus olhos tomavam, por detrás das lentes, um forte brilho de penetração, e era como se ele quisesse ir à alma da pessoa ou da cousa que fixava.

    Contudo, sempre os trazia baixos, como se se guiasse pela ponta do cavanhaque que lhe enfeitava o queixo. Vestia-se sempre de fraque, preto, azul, ou de cinza, de pano listrado, mas sempre de fraque, e era raro que não se cobrisse com uma cartola de abas curtas e muito alta, feita segundo um figurino antigo de que ele sabia com precisão a época.

    Quando entrou em casa, naquele dia, foi a irmã quem lhe abriu a porta, perguntando:

    – Janta já?

    – Ainda não. Espere um pouco o Ricardo que vem jantar hoje conosco.

    – Policarpo, você precisa tomar juízo. Um homem de idade, com posição, respeitável, como você é, andar metido com esse seresteiro, um quase capadócio, não é bonito!

    O major descansou o chapéu de sol – um antigo chapéu de sol com a haste inteiramente de madeira, e um cabo de volta, incrustado de pequenos losangos de madrepérola – e respondeu:

    – Mas você está muito enganada, mana. É preconceito supor-se que todo o homem que toca violão é um desclassificado. A modinha é a mais genuína expressão da poesia nacional e o violão é o instrumento que ela pede. Nós é que temos abandonado o gênero, mas ele já esteve em honra, em Lisboa, no século passado, com o Padre Caldas que teve um auditório de fidalgas. Beckford, um inglês, muito o elogia.

    – Mas isso foi em outro tempo; agora...

    – Que tem isso, Adelaide? Convém que nós não deixemos morrer as nossas tradições, os usos genuinamente nacionais...

    – Bem, Policarpo, eu não quero contrariar você; continue lá com as suas manias.

    O major entrou para um aposento próximo, enquanto sua irmã seguia em direitura ao interior da casa. Quaresma despiu-se, lavou-se, enfiou a roupa de casa, veio para a biblioteca, sentou-se a uma cadeira de balanço, descansando.

    Estava num aposento vasto, com janelas para uma rua lateral, e todo ele era formado de estantes de ferro.

    Havia perto de dez, com quatro prateleiras, fora as pequenas com os livros de maior tomo. Quem examinasse vagarosamente aquela grande coleção de livros havia de espantar-se ao perceber o espírito que presidia a sua reunião.

    Na ficção, havia unicamente autores nacionais ou tidos como tais: o Bento Teixeira, da Prosopopeia; o Gregório de Matos, o Basílio da Gama, o Santa Rita Durão, o José de Alencar (todo), o Macedo, o Gonçalves Dias (todo), além de muitos outros. Podia-se afiançar que nem um dos autores nacionais ou nacionalizados de oitenta pra lá faltava nas estantes do major.

    De História do Brasil, era farta a messe: os cronistas, Gabriel Soares, Gândavo; e Rocha Pita, Frei Vicente do Salvador, Armitage, Aires do Casal, Pereira da Silva, Handelmann (Geschichte von Brasilien), Melo Moraes, Capistrano de Abreu, Southey, Varnhagen, além de outros mais raros ou menos famosos. Então no tocante a viagens e explorações, que riqueza! Lá estavam Hans Staden, o Jean de Léry, o Saint-Hilaire, o Martius, o Príncipe de Neuwied, o John Mawe, o von Eschwege, o Agassiz, Couto de Magalhães e se se encontravam também Darwin, Freycinet, Cook, Bougainville e até o famoso Pigafetta, cronista da viagem de Magalhães, é porque todos esses últimos viajantes tocavam no Brasil, resumida ou amplamente.

    Além destes, havia livros subsidiários: dicionários, manuais, enciclopédias, compêndios, em vários idiomas.

    Vê-se assim que a sua predileção pela poética de Porto Alegre e Magalhães não lhe vinha de uma irremediável ignorância das línguas literárias da Europa; ao contrário, o major conhecia bem sofrivelmente francês, inglês e alemão; e se não falava tais idiomas, lia-os e traduzia-os correntemente. A razão tinha que ser encontrada numa disposição particular de seu espírito, no forte sentimento que guiava sua vida. Policarpo era patriota. Desde moço, aí pelos vinte anos, o amor da pátria tomou-o todo inteiro. Não fora o amor comum, palrador e vazio; fora um sentimento sério, grave e absorvente. Nada de ambições políticas ou administrativas; o que Quaresma pensou, ou melhor: o que o patriotismo o fez pensar foi num conhecimento inteiro do Brasil, levando-o a meditações sobre os seus recursos, para depois então apontar os remédios, as medidas progressivas, com pleno conhecimento de causa.

    Não se sabia bem onde nascera, mas não fora decerto em São Paulo, nem no Rio Grande do Sul, nem no Pará. Errava quem quisesse encontrar nele qualquer regionalismo: Quaresma era antes de tudo brasileiro. Não tinha predileção por esta ou aquela parte de seu país, tanto assim que aquilo que o fazia vibrar de paixão não eram só os pampas do Sul com o seu gado, não era o café de São Paulo, não eram o ouro e os diamantes de Minas, não era a beleza da Guanabara, não era a altura da Paulo Afonso, não era o estro de Gonçalves Dias ou o ímpeto de Andrade

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