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Enquanto Isso em Dom Casmurro
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E-book258 páginas3 horas

Enquanto Isso em Dom Casmurro

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Sobre este e-book

Se ousarmos um pouco, podemos afirmar que, no princípio, era Dom Casmurro a linguagem. Linguagem. Também era o pensamento de Capitu. Romance realista é Caixa de Pandora. Às vezes, personagens como ela dão um basta às amarras e debandam. Buscam outros ares. Outras histórias. Ela acabava de debandar. Se ousarmos ainda mais, podemos desejar que, agora, é Enquanto isso em Dom Casmurro a linguagem da linguagem. Capitu já se encontrava na nova história. Proferia as primeiras palavras. Sujas. Para sentir o efeito da linguagem na voz própria, e ouvidos. "Merda. Que vidinha de merda essa minha." O ensaio verbal agradara à autora. A linguagem tinha carne, energia, vida. Tinha mais, muito mais, que Machado de Assis. Esta cidade já foi negra, bem negra. Tão negra como a negritude da louca Bertília, do vereador Badias, do Príncipe Negro. De outros negros, muitos outros negros. Tantos negros. Mais negros que Machado de Assis. A alma é negra. Que ela volte, então. A louca negra alma de Bertília voltará.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento24 de set. de 2019
ISBN9788547320232
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    Pré-visualização do livro

    Enquanto Isso em Dom Casmurro - José Endoença Martins

    COMITÊ CIENTÍFICO DA COLEÇÃO LINGUAGEM E LITERATURA

    EDIÇÃO DE ANIVERSÁRIO DE 25 ANOS

    A

    Negra Bertília,

    que sempre quis ser vista.

    todas as mulheres negras – e brancas –,

    que ainda permanecem invisíveis

    e nem conseguem se ver.

    Elvira e João, meus pais amados.

    Paulo, Maria, João, Teresa, Lúcia e Antônia,

    queridos irmãos e irmãs, no sangue

    e na palavra.

    Mara, amada esposa, em busca de visibilidades

    possíveis e impossíveis,

    dentro e fora das linguagens.

    Sheila, encantadora filha, cuja visibilidade é, agora,

    de linguagens e translinguagens.

    Almin, Larissa e Luan, minha família transcontinental.

    I am invisible, understand, simply

    because people refuse to see me.

    Ralph Ellison, Invisible man.

    Dat’s where Ah wuz s’posed to be, but

    Ah couldn’t recognize dat dark chile as me.

    So Ah ast, ‘where is me? Ah don’t see me’.

    Zora Neale Hurton, Their Eyes Were Watching God

    APRESENTAÇÃO

    ENQUANTO ISSO EM DOM CASMURRO

    Viegas Fernandes da Costa

    Antes mesmo de lançar Enquanto isso em Dom Casmurro, em 1993, José Endoença Martins já suscitara polêmicas com o conteúdo e a forma dos seus versos, inauguradores daquilo que mais tarde chamaria de Poema Minuto. O negro, a mulher, o sexo, a vida e seu simulacro explodiam em seu texto, que tinham na cidade de Blumenau cenário e suporte. Não foi diferente com este romance, que alcança, 25 anos após a primeira publicação, esta terceira edição. Uma ficção que permanece atual, seja no olhar cáustico que lança à colônia alemã de Hermann Blumenau (fundada antes mesmo de se decretar o Estado alemão), seja na proposição do autor de romper o emparedamento do negro na verve daqueles que gritavam aleluia Gretchen!

    Em Enquanto isso em Dom Casmurro, a linguagem, e tão somente ela, tornou possível aproximar 1899, ano em que Machado de Assis dá à luz Capitu e Bentinho, e 1993, ano em que Martins imprime seu sopro a Capitu, e esta se liberta do realismo de Dom Casmurro para encontrar a pós-modernidade e Bertília neste livro (paródia?) ambientado em uma Blumenau preconceituosa e hipócrita que vive, no início da década de 1990, a crise do setor têxtil, principal atividade econômica e em torno do qual se organizava socialmente toda a região. Uma Capitu kitsch, amoral, bissexual, sadomasoquista, negra e drogada que se move pela linguagem e pelo desejo e que escolhe esta cidade do Vale do Itajaí para viver uma nova vida fantasiada de cantora sertaneja. Uma vida de protagonista, tão diferente daquela que os olhos escondidos sob o pince-nez lhe determinaram.

    Provocador e experimental, Enquanto isso em Dom Casmurro, no tempo do seu primeiro lançamento, dividiu águas na literatura produzida no interior de Santa Catarina e permanece potente, problematizando esta nossa sociedade do pastiche, das aparências, onde tudo pode ser valorado pela plástica e pela capacidade de se tornar mercadoria, inclusive a própria Capitu, que paga com seu corpo o cachorro quente vendido na esquina.

    Neste romance, José Endoença Martins questiona os fundamentos identitários blumenauenses, cidade na qual cresceu o autor, sempre tão prussiana com seus olhos pretensamente azuis e o discurso higiênico de ordem e trabalho. A Blumenalva das ruas varridas de Bell, dos nazistas que lecionam história, mas também do ribeirão das jararacas, que deu nome ao bairro-metáfora do autor, a Jararacumbach que viu viver o negro ledor doutros negros, dentre estes, aquele do Cosme Velho.

    Em Enquanto isso... temos uma Blumenau que já foi negra, que já foi italiana, que já foi até mesmo alemã, para hoje ser qualquer outra coisa indefinida, uma terra onde as enchentes anuais perderam leveza e novidade (MARTINS 2018, p. 31) para ganhar angústia, uma cidade cheia de ruídos, mas sem som próprio, como a Oktoberfest, nascida germânica com seus grupos sertanejos animando foliões vestidos de landerhose e embriagados com chope de milho.

    Enquanto isso em Dom Casmurro constitui-se como um romance rico em intertextualidades, que flerta com a história e com nossa sociedade pós-industrial, que discute as relações interétnicas e, acima de tudo, que mostra que na ficção tudo é possível, desde que haja desejo.

    PREFÁCIO

    AS ORIGENS LITERÁRIAS DO ROMANCE ENQUANTO ISSO EM DOM CASMURRO

    I – A Hemoptise Verbal

    Neste momento, em que chega ao leitor a edição comemorativa dos 25 anos de publicação de Enquanto isso em Dom Casmurro, gostaria de realizar uma prestação de contas.

    Prestações de contas são sempre subterfúgios que romancistas usam para impingir ao leitor a possibilidade de um novo olhar sobre o texto já conhecido e lido. Por trás do ato de prestação de contas, viraliza a ideia de que o leitor precisa ser tirado da zona de conforto de uma leitura à qual ele já se acostumou. Talvez fosse melhor que o admirador do romance continuasse com a visão antiga, mas, ditador, o prestador de contas deseja convencê-lo de que há ganhos estéticos em mudar e assumir nova forma de abordagem textual.

    Pode ser.

    Nesta proposta de prestação de contas, posso dizer, primeiramente, com límpida sinceridade, que não sei hoje, menos ainda sabia em 1993, qual foi a ideia inicial geradora do romance.

    Teria tido, ao escrevê-lo, um viés pós-moderno, com parecem indicar os textos dos analistas presentes nesta publicação?

    Difícil dizer.

    Um romancista-arquiteto, segundo o francês Arrou-Vignod (2017), planejaria cada mínimo detalhe da sua narrativa ficcional. Na contramão do arquiteto, fui muito mais um ficcionista-tisserand que, nas palavras desse mesmo francês, deixa que a narrativa tome as rédeas da tessitura romanesca. No papel de tisserand ficcional, preferi seguir um conselho de um poema meu, emprestando ao fluxo narrativo uma grande hemoptise verbal.

    Hemoptise verbal.

    A hemoptise verbal não é apenas uma metáfora poética a sugerir o verso como proveniente de uma torrente vérsica incontrolável. É também uma realidade autobiográfica. Nos dias de 1965, com 16 anos, quando acometido de tuberculose, fui protagonista de homéricas hemoptises de sangue.

    Esse poema de 1986, verbalmente hemoptísico, repete, várias vezes, que enquanto houver palavra eu grito. Fora ou dentro do poema, a palavra de um autor negro sempre assume a força de um grito. O leitor pode qualificar esse grito como achar melhor. Para mim se reveste de um grito contra a vida que lhe impingem. Amarras que ele precisa quebrar com sangue, invariavelmente. Por isso, o poema fecha com estes versos duros: E se houver sangue farei / da palavra uma grande hemoptise verbal (MARTINS, 1986).

    Um grito de sangue, a hemoptise poética.

    O poeta-tisserand não controla a hemoptise poética – tampouco, o ficcionista. É levado de roldão por ela e a ela sucumbe.

    II – Os Ritos Combalidos

    Poderia ter aberto a narrativa de Enquanto isso em Casmurro com o verso inicial deste outro poema, publicado em 1986, inserido em obra poética cáustica contra o Jararacumbach, minha cidade natal.

    Temos rio, e daí?.

    Quando se pensa nas enchentes mortíferas e constantes na cidade, a possível beleza do verso dissipa-se e o poema adensa-se em dramaticidade, culminando com versos ainda mais fatídicos: Temos coisas, e daí? / Somos animais irremidos / nesta cidade de ritos combalidos (MARTINS, 1986).

    Visíveis aí se articulam o grito e a hemoptise verbal: a denúncia contra os animais irremidos que somos nós, e a cidade de ritos combalidos em que vivemos.

    Meu primeiro romance, de 1993, repete de forma mais densa essa minha atitude beligerante em relação à cidade e ao seu povo. A trama articula-se como o grito primal propulsor do ataque lírico.

    O narrador dá o tom de combate entre o autor e a cidade, ao desmerecer a festa símbolo local, a Oktoberfest.

    Até 1984, tínhamos o rio da nossa danação. Em 1993, temos a Oktoberfest da nossa redenção.

    A Oktoberfest adquiriu o teor escuro da revolta desesperada, da dor. Uma dor de cerveja e mijo azedo (MARTINS, 1993).

    No plano da revolta autoral que me anima entre o ano de 1986 dos versos e o de 1993 da ficção, insinua-se a Signifying. Nele, em função de suas negatividades, a Oktoberfest significa sobre o rio. O romance significa sobre o poema. A minha revolta ficcional significa sobre a minha revolta política.

    III – A Cilada Verbal

    Essa atitude pessoal de embate literário com a cidade que me viu nascer encontra uma metáfora de contundência pérfiro-cortante visível: um canivete, com várias navalhas.

    A origem da arma-metáfora?

    Bem, em determinado momento especial da minha vida acadêmica, em 1969, ao alcançar a posição de melhor aluno no então melhor colégio público da cidade, a premiação não passou de um instrumento de luta.

    Não foi um diploma, uma caneta, um livro. Não!

    Foi um canivete a sussurrar, no mutismo frio das suas inúmeras navalhas, de forma categórica, que a minha relação com o Jararacumbach seria de duros embates. De forma singular, seriam embates poéticos. De forma plural, transformar-se-iam em embates literários.

    No poema e na poética, o meu verso sempre assumiu a postura da cilada verbal, para a qual a cidade não se preparou. Habituado às blumenalvas belianas e às nauemblus de Radünz, o Jararacumbach viu sua pior nudez exposta pelas ciladas verbais da minha negritice mais iconoclasta.

    Cilada verbal é grito.

    Com o canivete, em suas várias navalhas, vira grito mortal.

    Antecipação do verso de 1986 enquanto houver palavra eu grito. Assim, o canivete virou a caneta, a pena, o pênis. Todos instrumentos pérfiro-cortantes.

    Entendi claramente o sinal emitido pelo canivete. Minha primeira decisão foi escolher o campo de luta.

    A literatura foi a escolha. Primeiro, a poesia; depois, a ficção.

    O processo? A Signifyin(g).

    IV – O Bêbado Piedade

    A Signifyin(g) ampara-se no ato de relacionar dois fenômenos literários. Na experiência significativa, o segundo fenômeno repete o primeiro, mas também se diferencia daquele. Historicamente, o primeiro escritor negro significou sobre modelos brancos acessíveis a ele. No ambiente poético que me circundava nos anos 1970, signifiquei sobre o verso de Lindolf Bell. Devido à presença poética extraordinariamente hegemônica de Bell, em todo o cenário artístico do Jararacumbach, não tinha outra opção a não ser significar sobre os seus versos se desejasse reagir contra seu olhar acolhedor sobre nossa cidade comum. Amorosamente, Bell descreve o Jararacumbach nos versos a seguir:

    Esta cidade que dorme nos meus braços

    quando eu adormeço,

    esta cidade sem paisagem

    eu fecundarei nos seus altos corpos de cal. (BELL 2009, p. 29)

    A proximidade simbólica que se descortina entre o sujeito que fala nos versos de Bell e a cidade que ele ama como amante – ele não apenas dorme nos braços da cidade, mas também a fecundará – será desafiada pelo distanciamento que o falante lírico de meus versos insere entre si e a mesma cidade. Meu orador reage agressivamente ao agente da poética de Bell, dizendo que A cidade é ali, escura e escondida, / e não tem heróis. Tem, apenas, o bêbado Piedade / que, no maior dos porres, vira a glória da cidade (MARTINS, 1986).

    Na visão pessimista que apresenta da cidade – escuridão, invisibilidade e falta de heróis, exceto o heroísmo canhestro de um bêbado chamado Piedade –, meu poema duro contrasta fortemente com as linhas suavizadas de Bell, o poeta branco cuja arte insiste sistematicamente em glorificar o Jararacumbach.

    A Bell faltava canivete, hemoptise e cilada verbais. Sobrava Bell, com o seu cerzir da ternura e a sua catapulta de autossublimação.

    1970, ano divisor de águas.

    Os anos de 1970 representaram uma guinada surpreendente na minha vida, quando as atividades acadêmicas e as produções literárias compartilhavam relevância semelhante em minhas experiências. Desde então, tenho insistido na construção de carreira literária e acadêmica próprias, em relação estrita e próxima com a ideia de Signifyin(g).

    Mas o que fiz antes de 1970?

    Que tipo de experiências tive antes de a literatura e a vida acadêmica entrarem na minha existência?

    V – Se Estás no Céu

    A resposta mais simples a essas duas perguntas poderia ser: eu estava tentando lidar com o que eu chamarei aqui, agora, de "minha Signifyin(g) experiencial".

    No Jararacumbach, aprendi a significar desde o berço. A minha era a única família negra ali, rodeada, de um lado, pelos moradores alemães; do outro, pelas famílias italianas.

    Na verdade, "minha Signifyin(g) experiencial" começou muito cedo na minha vida. Desde o final dos anos 1940, quando nasci, e o início dos anos 1970, quando a poesia me encontrou pela primeira vez, minha adesão àquilo que Signifyin(g) simbolizaria na elaboração teórica de Gates (1988) foi encontro inconsciente.

    É verdade que Gates nos adverte que o negro vem significando desde a escravidão. Portanto, a expressão "minha Signifyin(g) experiencial" parece-me apropriada quando se pode relacioná-la à vida de um Negro no Jararacumbach, onde eu nasci.

    A experiência da Signifyin(g) do Negro é inevitável. Foi para mim, na verdade, porque o Jararacumbach – o lugar onde eu vivia, então – tornou-se uma comunidade de imigrantes alemães e italianos que haviam se mudado para o Brasil por volta dos anos 1850 e 1875, respectivamente.

    No final de 1940, meus pais reuniram seus parcos e humildes pertences, pegaram seus três filhos, deixaram a pequena Apiaí, no estado de São Paulo, onde a família vivia, e tomaram o caminho do Jararacumbach. A nossa foi a primeira casa de negros, construída naquele local, linguisticamente estranho e culturalmente inóspito para um negro, e continuou sendo assim até eu completar 15 anos.

    Como resultado do isolamento racial e linguístico da minha família, tive que aprender a desenvolver um senso pessoal de Signifyin(g) a partir do zero. Se eu quisesse lidar de forma eficiente com aquela realidade social, cultural, racial e linguística, totalmente adversa para os meus anseios de negro, teria que me ancorar na Signifyin(g).

    A Signifyin(g) foi meu ancoradouro existencial.

    Felizmente, depois de ter superado problemas de todo tipo, consegui lidar com aquele cenário racial e, estrategicamente, integrar-me àquela sociedade inóspita. Meu sentimento inconsciente de Signifyin(g) foi a estratégia de sobrevivência. Como tal, levou-me a dominar as especificidades das culturas alemã e italiana, suas regras de comportamento e rotina diária.

    Apesar da nacionalização, a política linguística do governo brasileiro durante a Segunda Guerra Mundial, disposta a reduzir a influência das comunidades de imigrantes estrangeiros no Sul brasileiro e a forçar sua integração à população do país, pela obrigatoriedade da utilização do português no território nacional, alemão e italiano ainda permaneciam as línguas de comunicação na comunidade do Jararacumbach quando entrei, pela primeira vez, no Grupo Escolar Adolpho Konder, nos meados dos anos 1950.

    Como consequência dessas realidades linguísticas, tanto o alemão como o italiano foram para mim os meios inevitáveis de comunicação nas minhas negociações diárias para comprar coisas, conhecer pessoas e aprender.

    Com os alemães era:

    Wie geht’s dir?

    Mir geht’s gut.

    Com os italianos era:

    Come stai?

    Sto bene.

    Sem dúvida,

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