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O enredo do meu samba: A história de quinze sambas-enredo imortais
O enredo do meu samba: A história de quinze sambas-enredo imortais
O enredo do meu samba: A história de quinze sambas-enredo imortais
E-book303 páginas5 horas

O enredo do meu samba: A história de quinze sambas-enredo imortais

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Sobre este e-book

O mais antigo samba é de 1964; o mais recente, de 1993. Em forma de deliciosas crônicas, o autor destaca como o talento do compositor popular contribuiu para a glória do carnaval carioca, evidenciando as circunstâncias em que os sambas nasceram, cumpriram a sua finalidade na avenida e tornaram-se imortais, uma vez que são lembrados até hoje.
O enredo do meu samba valoriza a cultura do samba-enredo, produto incontornável do encontro, do diálogo, das parcerias, do movimento orgânico dos terreiros, das quadras cheias e das disputas emocionantes pela vitória.
IdiomaPortuguês
EditoraRecord
Data de lançamento6 de mar. de 2015
ISBN9788501104168
O enredo do meu samba: A história de quinze sambas-enredo imortais

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    O enredo do meu samba - Marcelo Pereira de Mello

    1ª edição

    2015

    CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE

    SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

    M479e

    Mello, Marcelo de

    O enredo do meu samba [recurso eletrônico] / Marcelo de Mello. - 1. ed. - Rio de Janeiro : Record, 2015.

    recurso digital

    Formato: ePUB

    Requisitos do sistema: Adobe Digital Editions

    Modo de acesso: World Wide Web

    sumário, agradecimentos, apresentação,

    ISBN 978-85-01-10416-8 (recurso eletrônico)

    1. Carnaval - Brasil - História. 2. Livros eletrônicos. I. Título.

    15-20131

    CDD: 394.250981

    CDU: 394.25(81)

    Copyright © Marcelo de Mello, 2015

    Texto revisado segundo o novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.

    Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução, armazenamento ou transmissão de partes deste livro através de quaisquer meios, sem prévia autorização por escrito. Proibida a venda desta edição em Portugal e resto da Europa.

    Direitos exclusivos desta edição reservados pela

    EDITORA RECORD LTDA.

    Rua Argentina, 171 – 20921-380 – Rio de Janeiro, RJ – Tel.: 2585-2000.

    Produzido no Brasil

    ISBN 978-85-01-10416-8

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    Atendimento direto ao leitor:

    mdireto@record.com.br ou (21) 2585-2002.

    Para Ana, diretora de harmonia que guia

    minha evolução com serenidade.

    Para Francisco e Antônio, pela certeza

    de que o show vai continuar.

    E para a velha guarda do Estandarte de Ouro,

    primeira referência para pensar o samba.

    Sumário

    Agradecimentos

    Homenagem a Fernando Pamplona

    Apresentação

    1. Aquela aquarela mudou

    2. O canto vitorioso da lavadeira

    3. A tristeza é linda

    4. Presença de Olorum

    5. Ser bonito é tudo

    6. Quem dera que todo carnavalesco fosse assim

    7. Quando o local é universal

    Fotos

    8. O R da questão

    9. Declaração de independência

    10. Não deu para segurar

    11. A Vila mata a sede e fere o racismo

    12. Sujeito oculto

    13. A música que venceu o Cristo

    14. Pérola imperfeita

    15. O mito do herói solitário

    Agradecimentos

    A cultura do agradecimento é forte no mundo do samba. Por mais recursos de que disponham, as escolas sempre precisam de colaboração. Seja do Poder Público para liberar as ruas em dia de ensaio técnico, da imprensa para divulgar suas atividades ou mesmo do supermercado que fornece os ingredientes da feijoada por uma questão de marketing institucional.

    Não vou fugir à regra. Este livro só saiu porque tive o apoio de muitos amigos, que aqui menciono, já me desculpando pelas omissões. Mario Toledo, Adriana Oliveira e Angelina Nunes, que viabilizaram a série de reportagens no Globo, o ponto de partida deste trabalho. Felipe Ferreira, também um pouco pai da criança. Argeu Affonso, Alba Valéria, Luiz Antonio Simas e Marcelo Moutinho, pelos elogios que me encorajaram a prosseguir. Aloy Jupiara, que indicou caminhos. Nilcemar Nogueira, cujo trabalho foi uma referência valiosa. Renato Buarque, por me ajudar com conhecimento tecnológico e com as fontes. Ricardo Lourenço, por falar em nome do grande Arlindo Rodrigues. Alberto Mussa, que representou Didi. Fábio Borges, pela paciência. Luís Felipe de Lima, por me ajudar a fazer contato com Juana Elbein dos Santos. Além destes, Alberto João, Alice Fernandes, Anderson Baltar, Baianinho, Bárbara Pereira, Cassio Novo, Cláudia Lamego, Daniel Bitter, Elisa Fernandes, Evandro Lima, Fábio Fabato, Fernando Miranda, Flavia Cirino, Guilherme Nóbrega, Leonardo Bruno, Ludmilla Aquino, Luis Carlos Magalhães, Luiz Fernando Reis, Márcia Zaíra, Maria Augusta, Natal Vinícius, Paulo Menezes, Rachel Valença, Rejane Guerra, Ricardo Fernandes, Selminha Sorriso, Simone Fernandes e Tuninho Professor. Obrigado a todos vocês!

    E, para fechar os trabalhos em grande estilo, um agradecimento especial aos compositores de sambas-enredo. Sem eles, não haveria Carnaval. Que dirá o livro.

    Homenagem a Fernando Pamplona

    Tive o privilégio de assistir a muitos desfiles ao lado de Fernando Pamplona, para minha honra, colega de júri no Estandarte de Ouro do jornal O Globo. Ouvia com atenção suas observações sobre desenvolvimento do enredo, acabamento das esculturas e criatividade das fantasias porque ele falava com autoridade. Joãosinho Trinta, Rosa Magalhães, Renato Lage e muitos outros carnavalescos de primeira linha o reconheciam como mestre e eu também queria aprender.

    No entanto, o que mais chamava minha atenção nos últimos anos era seu desconforto com a perda de qualidade e descaracterização do samba-enredo. Logo ele, que tinha tudo para achar que o visual era uma prioridade, incomodava-se com o que ouvia e marcava posição mesmo sob o risco de parecer antipático e antiquado. Pensando bem, não era um comportamento surpreendente e tampouco conservador. Espetáculo audiovisual sem uma boa música fica mesmo incompleto e desonra a tradição da festa. Essa talvez seja a lição mais importante deixada pelo professor. Espero ter aprendido, mestre!

    Apresentação

    O desfile das escolas de samba do Rio de Janeiro é promovido como o maior espetáculo da Terra. E tem motivos para reivindicar o título. São milhares de foliões, centenas de fantasias diferentes e dezenas de carros alegóricos que compõem imagens impressionantes, convenientes tanto para a televisão e a indústria do turismo, quanto para a autoestima da cidade e

    do país. Tanta exuberância é um banquete para os olhos.

    No entanto, a visão é apenas um dos cinco sentidos. Numa festa sensual por natureza, melhor que todos eles sejam bem contemplados. Deixar a audição em segundo plano dá a sensação de que falta algo importante. O samba-enredo é fundamental: por definição, porque o espetáculo é audiovisual; e por tradição, já que, antes de se destacarem pelas grandes alegorias, as escolas eram, sobretudo, espaços de produção musical.

    Este livro desembarca no maior show da Terra cheio de euforia para destacar como o talento do compositor popular contribuiu para a glória do carnaval carioca. Não de forma isolada, já que, nas crônicas sobre os sambas-enredo, um a cada capítulo, estão as circunstâncias em que eles nasceram, cumpriram a sua finalidade na avenida e não chegaram ao fim porque são lembrados até hoje. Na minha visão, o contexto importa tanto quanto o texto. Por isso, não pretendo traçar um perfil estritamente musical nem instigar uma luta contra o predomínio do visual. Há registros de conflito de interesses entre compositor e carnavalesco, mas também dos momentos em que a criação de um complementa a do outro.

    Escolhi quinze sambas não só pela sua qualidade em particular. Pesaram na minha decisão histórias interessantes que eles trazem. O mais antigo é de 1964; o mais recente, de 1993. Ou seja, apenas aqueles que se mostraram capazes de resistir na memória por pelo menos duas décadas. Na seleção há referências objetivas como o fato de terem levado notas máximas, ajudado a ganhar o título ou terem sido premiados. Há casos, entretanto, em que o mais curioso é justamente o samba entrar para a história mesmo após perder pontos e a escola ficar mal colocada. Nesses, principalmente, prevaleceu o meu gosto, tão subjetivo quanto o do leitor. Cada um tem a sua lista dos melhores.

    O ponto de partida foi a série publicada no jornal O Globo em janeiro e fevereiro de 2013 homônima ao livro. Entrevistei compositores, carnavalescos e diretores de harmonia; vi vídeos

    de desfiles; consultei jornais, revistas, livros, arquivos e depoimentos de sambistas ao Centro Cultural Cartola. Busquei toda a informação disponível, e o resultado é uma narrativa cuidadosa dos fatos, porém sem a pretensão de revelar toda a verdade. Muitas outras histórias ainda podem ser contadas sobre o mesmo assunto. Todas elas versões saborosas que comprovam a forte presença dos grandes sambas-enredo no imaginário brasileiro. É por isso que eles merecem estar aqui.

    1

    Aquela aquarela mudou

    IMPÉRIO SERRANO, Aquarela brasileira, 1964

    Ahistória do Carnaval registra como uma efeméride que, em 1964, Ary Barroso, autor de Aquarela do Brasil, morreu horas antes de o Império Serrano entrar na avenida Presidente Vargas com Aquarela brasileira, de Silas de Oliveira. O desfile teve temática semelhante à obra do compositor nascido em Ubá, Minas Gerais, e torcedor fanático do Flamengo, o mesmo time do sambista imperiano. Uma coincidência dessas não poderia ser ignorada, da mesma forma que a passagem de um cometa pela Terra. Mas houve algo tão ou mais surpreendente naquele ano: o samba-enredo da verde e branco — regravado por Martinho da Vila, Elza Soares, Dudu Nobre, Zeca Pagodinho e reeditado pelo Império no Carnaval de 2004, com a reverência devida apenas às unanimidades — não ganhou as notas máximas. No júri oficial, O segundo casamento de dom Pedro I, da Portela, foi o melhor, com um ponto a mais que o sambão da Serrinha.

    Cinco décadas depois, ninguém tem dúvida quanto à barbaridade que foi aquele julgamento. Aquarela brasileira é eterno, enquanto a música da Portela pode, sem polêmica, ser deixada de lado em antologias. Mais do que uma avaliação equivocada, foi um escândalo.

    E havia um jornalista na época capaz de compartilhar a indignação da Serrinha por ser um imperiano de fé. Além de torcedor, José Carlos Rego tinha com a verde e branco relações de amizade, compadrio (era padrinho de Silas de Oliveira Jr.) e amorosas, porque namorou uma neta de Tia Eulália, fundadora.

    Coube a ele assinar as reportagens mais veementes contra a injustiça. E com o espaço devido. Na capa da Última Hora de 17 de fevereiro de 1964, segunda-feira seguinte ao Carnaval, a segunda chamada com mais destaque — a primeira falava do aumento de servidores públicos — era Samba protesta hoje contra o júri que premiou Portela. Estava acima do texto: As escolas de samba vão formalizar hoje perante o sr. Carlos Lacerda o seu protesto contra o julgamento que deu à Portela o título de campeã de 1964 e que injustiçou o autor do samba do Império Serrano, mestre Silas de Oliveira, autor da ‘Aquarela Brasileira’, que todo o povo cantou durante o desfile, e um dos mais fluentes poetas-sambistas das novas gerações...

    Silas caminhava para os cinquenta anos. Faria 48 em 4 de outubro de 1964. Por que foi chamado de sambista da nova geração? Talvez porque não fosse novo de idade, mas novidade para muita gente. Ainda não tinha conquistado o status capaz de tornar uma ousadia imensa tirar pontos da sua Aquarela.

    Depois daquele Carnaval, ele só cresceu em talento, fama e prestígio até virar unanimidade. Em agosto de 1968, assinou com o portelense Walter Rosa a trilha do musical Dr. Getúlio, sua vida sua glória, dos imortais Dias Gomes e Ferreira Gullar, com Nelson Xavier, Tereza Rachel e Emiliano Queiroz no elenco. Estava ao lado da elite cultural e, certamente, a fama conquistada com o clássico Os cinco bailes da história do Rio, com Dona Ivone Lara e Bacalhau, de 1965, contribuiu para que fosse chamado a fazer o samba-enredo do espetáculo.

    Para 1969, ele comporia, com Mano Décio e Manoel Ferreira, Heróis da liberdade, eleito em enquete realizada pelo jornal O Globo em 2003 como o melhor samba-enredo de todos os tempos. Morto em 1972, virou enredo da Imperatriz em 1974. E chegou consagrado de tal forma a 2004, quando o Império reeditou Aquarela brasileira, que os jurados do Grupo Especial ficaram à vontade para tirar pontos da Serrinha em todos os quesitos, com exceção de samba-enredo. Com quarenta anos de atraso, a obra imortal ganhava as merecidas notas máximas, além do Estandarte de Ouro em votação unânime.

    Quem ousaria, em 2004, negar ao viga-mestre do Império a consagração devida? Ninguém, pois já em 1964, quando Silas ainda não tinha status de mito, tirar pontos de uma de suas obras mais bonitas não era coisa que se fizesse impunemente. Havia gente capaz de dar voz à indignação imperiana. Na reportagem com chamada na capa da Última Hora de 17 de fevereiro, Rego não contemporizou: Derrota da ‘Aquarela’ injustiçou o poeta do Império era o título publicado na página 5 do Segundo Caderno. "Todo o sentimento da dor de uma perda de campeonato que possa existir na mística e alma das escolas de samba está reunido na insensibilidade com que o juiz de letra e melodia¹ da comissão julgadora das grandes escolas de samba julgou o samba do Mestre Silas de Oliveira, da Império Serrano."

    Em seguida, o jornalista destaca que a nota 3 (a máxima era 5) foi contestada até por adversários. Além disso, afirma que bastaria a composição Samba, em parceria com Mano Décio da Viola, para torná-lo imortal. E acrescenta que Silas é respeitado por duas gerações de sambistas, evocado com respeito em todos os terreiros do Rio de Janeiro, com a sua composição ‘Aquarela brasileira’, Silas de Oliveira ganhou toda a cidade neste Carnaval. Talvez isso lhe tenha valido muito mais do que a consagração de melhor samba do desfile que a comissão julgadora lhe negou.

    O texto apaixonado de Rego, falecido em 2006 e velado com a bandeira verde e branca sobre o caixão, revela a cumplicidade de quem se sentia um pouco responsável pela Aquarela brasileira. Contam Marília T. Barboza da Silva e Arthur L. de Oliveira Filho, autores de Silas de Oliveira: do jongo ao samba-enredo, que, em novembro de 1963, o jornalista deu um empurrão para que o sambista, após três anos, voltasse a fazer samba-enredo. Então, me falaram que a única coisa que faltava para o Silas voltar a compor era uma reportagem. Eu fui fazer, disse ele.

    Silas se sensibilizou com a reportagem e a insistência dos amigos e compôs o samba, dois meses depois. O repórter acompanhou a criação e orientou o sambista a não aceitar nenhum parceiro.

    O autor mudou a letra por sugestão do jornalista. Segundo os autores do livro, Quando o samba ficou pronto, havia um verso que preocupou José Carlos Rego. Era assim: ‘Os rios enfeitados de jangadas.’ É que, segundo haviam lhe dito, jangada não anda em rio, só no mar. Falou com Silas. Este, sempre cordato, foi correndo alterar o samba. E como se Moacir Rodrigues (presidente) descobrisse, no momento, que ele esquecera de falar em São Paulo, o verso incorreto foi substituído por ‘São Paulo engrandece a nossa terra’.

    Quando o samba foi composto, José Carlos e Silas já tinham começado a amizade que durou até a morte do compositor, em 1972. Eram próximos, já que o jornalista viria a batizar o primeiro filho homem do sambista, Silas de Oliveira Jr., nascido dois meses depois daquele Carnaval, em 15 de abril de 1964. A ligação do repórter com a família Oliveira sobreviveria à partida do autor de Aquarela.

    Em entrevista a mim, Silas Jr. contou que o jornalista esteve presente em sua vida depois que seu pai morreu, quando ele tinha oito anos. Foi uma referência masculina para o herdeiro do poeta. José Carlos segurou a minha onda, diz ele, que se aventurou a seguir o exemplo paterno sem o mesmo sucesso.

    É certo que Silas ouviu o jornalista para alterar a Aquarela brasileira. Mas a descoberta de um antigo panfleto com a letra pelo site Esquentando os tamborins indica que pode ter havido outras mudanças, não registradas em Silas de Oliveira: do jongo ao samba-enredo. E isso não seria surpresa alguma e tampouco desmereceria o excelente trabalho de pesquisa dos autores do livro, porque é comum que compositores burilem suas obras enquanto podem. Há modificações decididas pouco antes do prazo de entrega e até depois da decisão. Enquanto o CD oficial não é gravado, dá para mexer.

    No panfleto há um trecho — do qual faz parte o verso referente às jangadas — que sofreu alterações na versão definitiva: Brasília tem o seu destaque / Na arte na beleza e formosura / Bem merece ter o nome Belacap / É símbolo de paz e de ternura / Do leste por todo centro-oeste / Tudo é belo / E tem encantos mil / Os rios enfeitados de jangadas...

    A ser autêntico o panfleto, São Paulo ficou de fora em alguma fase da composição. Os versos Bem merece ter o nome Belacap / É símbolo de paz e de ternura foram substituídos por Feitiço de garoa pela serra / São Paulo engrandece a nossa terra.

    Outra diferença do panfleto em relação à versão definitiva é que o título é Aquarela do Brasil, o mesmo da música de Ary Barroso. Na cobertura do Carnaval de 1964 dos jornais O Globo, Jornal do Brasil e Última Hora, no entanto, aparece o nome Aquarela brasileira, como sempre foi conhecido. Ou seja, o panfleto é um registro curioso, mas deve ser considerado com cautela.

    Na reportagem sobre a injustiça contra Silas na Última Hora, foi publicada a íntegra da letra. Na maior parte, os versos correspondem ao que se ouve na gravação de Martinho da Vila em 1975, na reedição do samba-enredo em 2004 e em outras gravações. Mas há uma diferença mínima que pode esclarecer uma questão importante. Em vez de É um episódio relicário, consta no jornal É um episódio, um relicário.

    As duas versões cabem perfeitamente na melodia, mas, do ponto de vista da letra, a alteração muda o sentido. Ao escrever Episódio relicário, Silas estaria dando à segunda palavra, um substantivo, o valor de adjetivo, o que teria motivado críticas.

    Na letra reproduzida pela Última Hora, o problema estaria resolvido, já que, separado pela vírgula do episódio e antecedido do um, o relicário voltaria à sua condição de substantivo. A mudança pode ter sido uma falha de digitação (há outras) ou uma tentativa de correção do erro. E até uma iniciativa de José Carlos Rego para proteger o compadre da acusação de não ter bom domínio da língua portuguesa.

    Especulações à parte, uma coisa é certa. Silas contemplou todas as regiões do Brasil.² Ouvida hoje, a música parece incompleta por não falar em Santa Catarina, Paraná e Rio Grande do Sul, mas naquela época São Paulo fazia parte da região sul. E a Serrinha foi do Oiapoque ao Chuí, levando para a avenida Presidente Vargas a destaque Cecília representando uma gaúcha.

    E se em 2015 a escola de Madureira pena há seis anos na tentativa de voltar ao Grupo Especial, em 1964 entrou na Presidente Vargas preparada para brigar pelo título entre as grandes. Não se acomodou por contar com a música mais bonita daquele ano (e uma das melhores de todos os tempos) e investiu em outros quesitos. Enquanto o Salgueiro tinha Arlindo Rodrigues, profissional de TV, a verde e branco contratou o cenógrafo, diretor de arte e roteirista de cinema Cajado Filho para fazer suas alegorias. Ele, que assinou diversos trabalhos para os estúdios da Atlântida, declarou na época que queria mostrar um Carnaval moderno e bem diferente dos apresentados até então pela Serrinha.

    O investimento incluiu bancar a viagem do artista plástico Jorge Bettancourt (que dividiu o trabalho com Cajado Filho, Dino Florêncio e o escultor Soares) a outros estados em busca de inspiração, segundo reportagem da Última Hora de 21 de janeiro de 1964. A ideia era ser ambicioso e inclusivo, sem deixar de lado nenhum rincão na Aquarela brasileira (ver foto 1).

    Os imperianos gastaram tudo o que podiam para brilhar em 1964. Cada baiana saiu por 600 cruzeiros, enquanto a destaque — chamada assim porque sua fantasia se sobressai pela riqueza — Olegária dos Anjos gastou 800. Não surpreende porque a Serrinha foi fundada por estivadores aguerridos nas lutas sindicais, que jamais admitiriam ver sua escola dando uma de coitadinha.

    Se a expectativa em relação à verde e branco era grande, o desfile não decepcionou. Império foi a melhor escola com samba que merece nota 10 foi o título da reportagem, assinada por Marcos de Castro, que ocupou toda a página 3 do Caderno B do Jornal do Brasil de 13 de fevereiro de 1964. Para Castro, a Serrinha esteve impecável em todos os pontos, mas num entre todos se destacou, e foi no samba — um magnífico samba de Silas de Oliveira, de uma riqueza melódica rara. [...] Se marcou pontos altos na melodia — e na letra — do seu samba, a Império os deve ter marcado em vários outros itens, também, pois o desfile de sua escola esteve perto da perfeição que se pode exigir dela. Ao comentar a passagem da Unidos do Cabuçu, que veio com enredo semelhante (Brasil de norte a sul), ele diz que sua apresentação não deu para fazer esquecer — muito pelo contrário — a ‘Aquarela brasileira’ magnífica do Império.

    O texto de Marcos de Castro é a impressão de apenas um jornalista, mas reportagens não assinadas do Globo e da Última Hora também falam da Serrinha como favorita. No Globo, ela é apontada como a vedeta da noite; na Última Hora, diz-se que Aquarela brasileira foi a melhor música das dez e que a escola era candidata ao título.

    Mas o resultado acabou com a festa. Naquela época, letra e melodia eram julgadas separadamente, com notas de 1 a 5. Aquarela brasileira levou 3 do antiquário Paulo Afonso de Carvalho, jurado de letra. Já a melodia ganhou a nota máxima de Edgar da Rocha Miranda, somando 8 pontos, o mesmo que Chico Rei, de Djalma Sabiá, Geraldo Babão e Binha, do Salgueiro, e um a menos que o samba da Portela, de Antônio Alves.

    O presidente do Salgueiro, Osmar Valença, declarou que a Serrinha não podia ter recebido uma nota daquela. E Milton Cordeiro, advogado da vermelho e branco, protestou em nome de todas as agremiações: Não pelo samba do Salgueiro que reclamo, mas sim pelo do Império, que todo mundo cantou na avenida.

    A indignação não era só da boca para fora. O consenso de que Aquarela era uma obra-prima foi sincero e dois meses depois do Carnaval a música ganhou uma gravação em LP pela Discobrás. Naquela época, isso era um privilégio porque os sambas-enredo não eram lançados em disco anualmente. A faixa foi o título do primeiro LP de Carmem Silvana, que se destacara como puxadora. Isso um ano antes de Dona Ivone Lara ser a primeira mulher a assinar um samba-enredo em grande escola, Os cinco bailes da história do Rio.

    A Serrinha foi a terceira a desfilar,

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