Um mundo possível para todos
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Um mundo possível para todos - Gustavo Rodrigues
obrigado.
Capítulo 1
Acordar pela manhã nunca foi o meu forte, já que eu sempre preferi muito mais ficar acordado até tarde lendo meus mangás e vendo minhas séries favoritas na Netflix, mas as aulas iriam começar e eu precisava estar preparado para mais um ano letivo. Eu estava entrando no ensino médio, o que para muitos poderia ser algo super novo, mas para mim seria apenas mais um ano em que eu colocaria meu esforço todo nos estudos. Aliás, dificilmente eu me distraía com qualquer coisa ao meu redor. Eu não perdia muito tempo com isso, e, talvez por essa razão, me mantinha sendo um dos melhores alunos do meu ano. Não que isso me importasse muito, até porque eu era muito pouco vaidoso em relação a esse assunto, mas era uma forma de me manter afastado de tudo aquilo que não me agradava, e isso incluía os meus colegas. Exceto Daniel.
Daniel é o meu melhor amigo nesta escola. Na verdade, ele é meu melhor amigo desde que nos conhecemos por gente. Nossos pais se conheceram em nosso bairro, aqui no Partenon, e logo ficaram grandes amigos. Minha mãe, quando se mudou para cá, veio sozinha comigo, ainda muito perdida sobre o que fazer com uma criança de apenas um ano de idade e sem o pai, pois ele decidiu, em uma noite qualquer, desaparecer. Meu pai simplesmente sumiu da face da Terra quando eu ainda era bem pequeno, deixando minha mãe sozinha comigo e completamente perdida sobre o que fazer. Até hoje ela fala pouco sobre ele, mas eu também nunca tive muito interesse em saber quem ele era ou o que o levou a nos deixar. Como minha mãe, após ter sido deixada pelo homem que se dizia meu pai, estava sem saber o que fazer, decidiu sair do nosso bairro antigo por estar com muita vergonha. Ela veio parar aqui no Partenon, região leste de Porto Alegre. Logo que ela chegou aqui, conheceu os pais de Daniel, que também tinha um ano de idade. De cara eles se entenderam e, principalmente, compreenderam a situação delicada que minha mãe estava passando.
Nos seus primeiros dias de Partenon, minha mãe, Dona Carmela, que prefere ser chamada de Carmô
, pois crê que seu nome a envelhece, foi ajudada pelos pais de Daniel em todos os sentidos. Eles a ajudaram na mudança, a encontrar um emprego em uma loja de sapatos no centro da cidade e, ainda, toda vez que precisava, ficavam comigo, para que ela pudesse também se divertir. Sim, porque minha mãe, logo após perceber que meu pai jamais voltaria, decidiu se encaminhar para a vida mundana
e se embrenhar em festinhas da cidade, indo em pagodes e domingueiras. Uma das vantagens dessas saídas de minha mãe era que eu sempre ficava com os Ferreiras, pais de Daniel, e, obviamente, perto dele. Foi aí onde tudo começou e que aprendemos a nos gostar, ou a pelo menos nos aturar, pois éramos, e ainda somos, muito diferentes. Então brincávamos de tudo. De carrinho, de lutinha, assistíamos a filmes de noite comendo pipoca e depois dormíamos até o outro dia, quando minha mãe vinha me pegar ainda meio embriagada da noite anterior. Até os nossos sete anos foi assim e tudo estava indo bem, no entanto a gente não sabia o que estava por vir.
Em uma noite chuvosa, os pais de Daniel decidiram sair para um jantar de comemoração de seu aniversário de casamento, e, pela primeira vez, a ordem se inverteu e eles deixaram Daniel em minha casa. Como minha mãe já tinha feito isso várias vezes comigo, não custava nada para ela cuidar do filho de seus amigos por uma única noite. O que ela não contava é que essa seria a
noite. Pela madrugada, o telefone de minha casa tocou e minha mãe foi atendê-lo. Eu levantei da cama junto, porque na verdade ainda não tinha nem pegado no sono e estava lendo meus gibis. Mas Daniel continuou na cama. Naquele momento, minha mãe veio correndo ao meu quarto para nos acordar e se surpreendeu por me ver acordado. Percebi que ela estava com um aspecto de quem tinha visto um fantasma em sua frente, e em seus olhos, lágrimas já começavam a brotar. Não entendi nada no primeiro momento, mas veio me pedindo que acordasse Daniel. Perguntei a ela o porquê de tanto nervosismo, e minha mãe só me disse:
— Felipe, teu amigo vai precisar muito de ti. Vamos ter que ser fortes, OK?
Eu, sem saber o que fazer, apenas confirmei com a cabeça e acordei Daniel. Logo que ele acordou, minha mãe foi lhe dizendo que seus pais tinham sofrido um acidente na Avenida Ipiranga, enquanto estavam tentando chegar em casa. Um carro não viu o veículo deles, pois a chuva estava torrencial, e os pegou em cheio, não sobrando nada. Na hora, acredito que Daniel tenha ficado em choque, pois não sinalizou nenhum tipo de reação, enquanto eu, muito preocupado, comecei a chorar.
No dia seguinte, o sol nasceu brilhando e enfeitando o céu azul, contrariando a noite anterior de chuva e tragédia. Eu não sabia nem muito o que sentir. Daniel acordou e foi logo indo ao banheiro. Acredito que ele ainda estava meio em choque, pois não tinha demonstrado qualquer tipo de tristeza, bem pelo contrário, ele parecia estar muito forte diante daquela situação que estava acontecendo. Minha mãe, então, nos chamou para o café, porque logo sairíamos para os trâmites do velório e enterro. Os avós de Daniel, pais de sua mãe, já tinham cuidado de tudo durante a madrugada, quando receberam a notícia. Foi um choque, principalmente para Dona Laura, que tinha uma única filha e se viu agora sem saber o que fazer. Seu Alfredo, avô de Daniel, teve que ser, naquele momento, a pessoa a organizar tudo. Com certeza não deve ter sido fácil, mas acredito que ele tenha pensado primeiramente em seu neto, para que tivesse forças o suficiente para tudo.
Naquele dia, Daniel foi a criança mais forte que eu conheci, pois se despediu dos seus pais apenas com uma lágrima escorrendo de seu olho. Mas tenho certeza de que não deve ter sido nada fácil para meu amigo. Pelo que conheço dele, deve ter segurado suas emoções até o seu máximo, para que pudesse ajudar seus avós, que estavam devastados com a perda de sua filha tão querida e de seu genro, que tratavam como o filho que nunca tiveram. Daquele dia em diante, Dona Laura e Seu Alfredo decidiram morar na casa que os pais de Daniel tinham construído, pois não queriam que seu neto perdesse contato com sua vizinhança e, principalmente, com seus amigos.
E nesse cenário nós dois crescemos, estudando na mesma escola, brincando na mesma rua e dividindo nossos segredos. Daniel se tornou um adolescente forte, e extrovertido, sendo quase que o menino mais popular da escola. O que, para mim, aconteceu de forma completamente diferente. Eu, ao contrário de meu melhor amigo, cresci sendo um menino/adolescente tímido, que preferia muito mais ficar em casa, assistindo às minhas séries e, obviamente, lendo meus mangás. Aliás, desde que eu descobri a existência das letras e percebi que juntando elas eu conseguiria entender um milhão de coisas, como livros, revistas e meus gibis, também comecei a me afastar de tudo aquilo que não me interessava tanto, incluindo pessoas. Isso não incluía Dani, como eu o chamava, pois para mim ele era um dos únicos que conseguia me entender e saber que aquele era o meu jeito de viver, mesmo nós dois sendo diferentes um do outro. O mais engraçado é que, na escola, o Daniel é aquele colega que está sempre sendo chamado para tudo, trabalhos, festinhas, jogos, brincadeiras, enfim. Tudo mesmo. Mas ele nunca deixava de tentar me incluir, ou, pelo menos, de me avisar quando ele estava fazendo alguma coisa com nossos outros colegas e não poderia estar em minha casa.
Isso não me deixava com nem um pouco de inveja ou ciúme dele. Pelo contrário. Saber que eu não precisava atuar em frente aos outros amigos dele, meus colegas, me deixava muito tranquilo. Sem falar que não é que eu não gostava deles, eu apenas achava todos muito cansativos, sempre com as mesmas conversas. Nunca mudava. E para ele, tudo parecia ser muito fácil. Ele simplesmente vivia aquilo. Aquilo era a vida dele e estava tudo bem. Sem nenhum esforço ou fingimento.
Enfim, as aulas estavam começando e a gente precisava levantar cedo. Durante muitos anos estudamos no turno da tarde, mas o ensino médio era pela manhã, turno reservado para os maiores, os mais velhos da escola, como costumávamos falar. E agora, nós éramos os mais velhos. Para dizer a verdade, eu mesmo não ligava muito para esses rótulos. Apenas queria chegar à escola cedo, pegar o meu lugar habitual na frente do professor e começar o meu ano já focado nos estudos.