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Laníssima
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E-book264 páginas3 horas

Laníssima

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Sobre este e-book

Este livro apresenta uma reflexão bastante particular sobre as intrigas típicas da alma humana numa ambiência permeada de falsa piedade onde uma doente em fase terminal viveu lutando com sua peculiar leveza e fino senso de humor. Tenham uma excelente leitura, espero, profundamente, que apreciem o livro.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento11 de jan. de 2021
ISBN9786599042201
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    Pré-visualização do livro

    Laníssima - Regina Farias

    PAIXÃO PELA ESCRITA

    Faz um tempinho que ando rabiscando uma dobradinha estilo Clarice Lispector e Nelson Rodrigues com pitadas de J.K. Rowling, só que algo paradoxalmente calmo. Nada muito visceral como eles são e como também costumo ser. Apenas fragmentos registrados do que me ocorre aqui e ali. Ainda assim, qualquer coincidência não é mera semelhança (e vice-versa), ainda que fatos do meu cotidiano com fortes marcas da tragicomédia bem peculiar aos três e que abraçam a realidade, a memória e o irreal.

    Ah, e não sou escritora. Não no sentido profissional. No mais, somos todos escritores. Apenas nem sempre colocamos no papel. Eu, por minha vez, escrevo dispensando rótulo que pesa e remete à obrigação. A essa altura dos meus dias, tenho horror à obrigação. Escrevo porque sinto vontade, prazer, necessidade. Até já houve quem dissesse que sou escritora de um só livro por ter escrito e publicado um livro há mais de vinte anos. Aquele eu amei, embora tenha sido feito nas coxas e, desde então, falo em edição aprimorada. Mas fica nisso, não movo uma palha. De lá pra cá escrevi tanta coisa por aí que não me classifica em nada... Apenas escrevo.

    Escrever é um exercício diário na minha vida. É como respirar. Sou do tipo que quanto mais escreve, mais aprende, não havendo nenhum pedantismo nisso. Fugindo de coisa muito rebuscada e preferindo um estilo bem coloquial, dá gosto escrever como se estivesse em uma roda de conversa informal e assim o faço desde que me entendo por gente.

    Na adolescência minha preferência era pela poesia. Devia ser da idade e/ou da eternamente romântica pisciana com ascendência em peixes. Depois, fui me interessando pelo comportamento das pessoas, suas atitudes, o porquê de determinadas ações e reações, por ser uma apaixonada pela alma humana e suas idiossincrasias.

    Pois bem, estava eu com aquele projeto de livro em banho-maria por uns seis meses e eis que me aparece este bem mais visceral e urgente. Diz a oposição que sou a mulher de coisas inacabadas. E é verdade, pois eu tenho três iniciados. E este mal começou fervilhando dedos e alma, já me pego refazendo demais. De repente, é melhor. Vai que há uma linha tênue entre impulso e inspiração. Enfim, o que for excluído terá me servido de terapia. Ou não. De uma coisa não tenho dúvida: anotações no meio da noite, fragmentos, lembranças aleatórias recentes e antigas têm sido uma catarse. É isso o que importa. Receio até que alguns passem a rejeitar ainda mais o meu estilo pessoal, porém, confesso que não me interessam tanto os sentimentos e mais as ações que os tipos de sentimentos irão provocar.

    Há os que se omitem, os que fazem cara de paisagem, os de cima do muro... E os que dão a cara à tapa. Estes últimos agem, posicionam-se, emitem opinião. Estou inserida nesse grupo. No meu caso é mais por meio da escrita. Em todas as vezes houve uma motivação externa, sendo que nessas viagens pelas letras sempre existe uma necessidade terapêutica e, ainda, porque nelas viajamos. Nelas não há censura no limiar entre o real e o imaginário. Quando pende para a ficção tudo fica mais leve, lúdico, brincalhão. Fixando o olhar no real, o imaginário some e surge a indignação provocada pela injustiça bem característica da existência humana. Aprecio uma frase atribuída a Darcy Ribeiro que diz só haver duas opções nessa vida: se resignar ou se indignar. E eu não vou me resignar nunca. Foi então que resolvi me indignar por meio da escrita. Ela é excelente divã. Eis, portanto, as minhas características natas reunidas em um só pacote: ter paixão pela escrita tornando-a útil como terapia enquanto exerço meu senso de justiça.

    ‘Eu também sou vítima de sonhos adiados, de esperanças dilaceradas, mas, apesar disso, eu ainda tenho um sonho, porque a gente não pode desistir da vida.’

    (Martin Luther King, Jr.)

    LANA EM TRÊS LINHAS?!

    Foi o pedido que me fizeram, mas confesso que eu não saberia defini-la em três linhas. Logo eu, que sou tão prolixa. E ela? Ela foi muito gente, foi densa demais para conter tanta vida em três linhas, três parágrafos, três páginas, três livros. Contida era ela. E contida, ela transbordava, não podemos esquecer. Foi, então, quando eu respondi:

    - Ela era simplesmente LANÍSSIMA! Rememorando meu cunhado Romeu que assim a apelidou, acertando em cheio.

    E fui dormir com esse pedido. Foi então que uma dessas madrugadas sábias, parceiras e inspiradoras que sempre me acordam, me deu uma ideia. Suspendi tudo que estivera escrevendo e me ocorreu colocar neste outro livro, em muitas linhas, quem foi Lana dentro do contexto em que viveu. E ainda não será tudo. Porque não cabe em palavras cada pedacinho daquele ser que aqui veio para se doar. Não. Definitivamente, não é justo um resumo em três palavras. Ela merece uma trilogia tolstoiana em um só tomo. De sua Infância, Adolescência e eterna Juventude. Assim como o estilo da autoria citada, inevitável é inspirar-me em parentes e conhecidos, emergindo nas disfunções familiares, seu ambiente de trabalho, colegas, amigos, amores e paixões. E em sua atuação ante às carências e desigualdades sociais. O que é justo e necessário é que nos deleitemos dos detalhes de sua belíssima alma em meio ao caos chamado existência. Entendo que é salutar a ideia de que apreciemos pelas letras toda sua beleza, seu legado, sua preciosidade.

    Não se trata exatamente de uma biografia ou uma sequência linear de fatos. Não há essa linearidade na vida dela. Não há vida linear e assim é essa narrativa.

    Repleto de flashbacks, esse mergulho que se descortina aos olhos do leitor pretende um despertar do senso crítico que envolve as preferências afetivas e seus arcabouços. Coisa de gente grande. A intenção não é levar ao leitor uma carga dramática que não lhe acrescente algo frutífero. A ideia é trazê-lo à razão, pois de tudo que aconteceu só nos resta uma reflexão: examinando o fato de que nenhum doente se cura sozinho. O entorno e quem o completa são essenciais para a sua cura e a de todos.

    Comecei a escrever sobre Lana porque não suportei tantas lembranças. Não tive grandes problemas com o desenlace em si, ainda que relutando um pouco com o óbvio iminente. O certo é que sofri, chorei, vivi cada etapa das emoções de um luto, passando pela negação, pela raiva e pela aceitação.

    Não me deprimi, ainda que tenha caído em tristeza tão profunda que me impressionei com aquele sentimento que me acometeu. Afastei-me um pouco de algumas ligações afetivas e mergulhei em reflexões nunca antes imaginadas, embora não tenha questionado qualquer divindade, por (achar) ter isso muito bem resolvido em mim. Bem, eu questionei um pouco, confesso. Porém, a minha dor emocional, a minha angústia, a minha aflição e o meu inconformismo residiam nas lembranças mais recentes. Isso sim me fez chorar dias e noites seguidas.

    Lembranças da ambiência em que tudo aconteceu estavam me consumindo. O sentimento de perda ia além da ausência. Sua falta, por mais que doesse, era algo que eu sabia não poder resgatar. A questão crucial era ter vivenciado o sofrimento dela naquela casa que era sua casa, mas não era seu lar. Bem disse sua filha: minha mãe era minha casa. O certo é que ambas se supriam, se completavam, se bastavam. Essa é a parte que me acalma a alma. Espaços físicos e coisas materiais, tais como paredes, varandas, plantas, camas, quartos, redes, cadeiras, geladeira, máquina de lavar, armários, panelas, manteiga ou margarina, óleo ou azeite, leite em pó ou leite em caixa, tudo isso é muito ínfimo e nada diz da imensidão do amor que as unia e as fortalecia mutuamente.

    Meu contato direto com Lana nesses quatro últimos anos foi intenso e intensivo, principalmente nos últimos seis meses. Tivemos muitas conversas sobre as pessoas, que eu ainda vou processar por muito tempo. É desse processo que falo, buscando ser honesta e ao mesmo tempo habilidosa, usando e abusando de eufemismos, em alguns casos até preferindo a supressão de alguns fatos.

    Escrever sobre a vida de Lana desencadeia um turbilhão de emoções porque mexe com a estupidez humana. Assim, dosar toda a escrita para não ficar enfadonho nem fugir dos acontecimentos, requer certo cuidado. Principalmente porque a leveza dela é a marca que aqui eu quero deixar impressa. Trata-se, ainda, de uma iniciativa envolvendo um luto que vai durar enquanto minha memória emocional me levar a recantos por ela vividos durante todos os dias anteriores que culminaram na metástase até o seu final.

    É perturbador parecer uma lavagem de roupa suja literária, só que não cabe faz de conta, excluir parágrafos, deixar uma lacuna ou fingir que não aconteceu, apenas pelo risco de apedrejamento. Portanto, há de se considerar não apenas o propósito, como também o pano de fundo. Assim, por ser uma escrita não apenas contemporânea, mas bem fresquinha, sugiro aos mais sensíveis fazerem cara de paisagem, e, até que pulem umas páginas. Quando era menina eu pulava para as partes leves e divertidas. Há ainda as opções do faz de conta que não é comigo, não é bem assim ou ainda, nossa, que exagero. A opção mais atual: ela simplesmente surtou. Aos que leem fazendo autocrítica, minhas palavras são: bem-vindos à vida adulta.

    Enquanto isso eu lanço a inquietante pergunta: como conciliar profundo desapontamento com esperança?

    Ou, ainda, parafraseando a Mafalda: para onde vão nossos silêncios quando paramos de dizer o que sentimos?

    NÃO É SER FORTE.

    É SER FLEXIVEL.

    (Biscoito da sorte)

    A PREFERIDA DO PAPAI

    Na infância, Lana já nos dava lições de meiguice deixando-se conduzir com a docilidade e a confiança de quem sabe silenciar. Criança de fácil convivência, ela era a queridinha do papai, embora tivesse crescido sem tirar partido disso com chantagem emocional ou qualquer tipo de manipulação para conseguir algum intento. Ao contrário, com seu jeito desprendido, logo cedo suscitou ciúme e competitividade, não apenas diante dessa preferência paterna, como ainda pelo seu desapego natural, pagando caro por isso durante toda sua existência. Como não ser feliz com um papai desses, típico homem austero do seu próprio tempo, que se derretia com sua presença? Que referência maior para uma filha? Sua mente, ainda verdinha e sem malícia, não alcançava a hostilidade externa devido àquela preferência, simpatia, empatia, identificação, seja lá qual for o nome, ainda que tal forma de relação tenha delineado seu comportamento na vida adulta.

    Equilibrada e sensata, desde muito jovem usava de muita prudência tanto em algumas circunstâncias embaraçosas e constrangedoras, aparentemente difíceis de solucionar, como em situações simples do cotidiano. Quando adulta, se saía muito bem como mediadora em conflitos entre irmãos e outros familiares, assim como também era expert no controle de suas finanças e compromissos, sendo extremamente generosa. Articulada, sem ser ‘a política’ no sentido pejorativo, tinha uma forma particular de lidar com as mais variadas dificuldades em todas as esferas de sua atuação. Dona de um senso de justiça espantoso, ela sabia a forma e o momento de agir para abordar as pessoas, por mais constrangedora e desagradável que fosse a conjuntura, ainda que saísse ferida e magoada. Esse enfrentamento com serenidade era-lhe uma marca admirável, uma virtude extraordinária.

    Foi crescendo especialista em ficar calada sem que isso exprimisse submissão, exatamente. Ao contrário, firme e decidida, sabia o que queria. Porém, desde cedo demonstrava uma grande canseira com autoafirmação. Não sentia necessidade de bater o pé e derrubar a casa para se fazer respeitar. Desde cedo também já se destacava pela sua imparcialidade, sua virtude em acolher e repartir sem discriminar, sem fazer distinções injustas, sem olhar condição religiosa, social, beleza física, defeitos e qualidades, vendo no outro um ser humano igual a ela. Levou isso tudo para a vida, sempre enxergando além das aparências.

    Como uma criança ela viveu no seu coração, querendo apenas ser feliz no presente. As circunstâncias posteriores nem precisariam forjar tanto seu caráter nesse sentido, pois ela já pensava assim. Sem nem imaginar a bronca que viria pela frente, já experimentava um dia de cada vez, pois isso era da sua natureza.

    Mesmo diante da finitude flagrante e prováveis ameaças que rodeiam qualquer existência, ela foi tirando de letra, seguindo confiante nas pessoas e nas instituições. Apesar do que via e ouvia, não perdia a esperança no ser humano, empenhando-se em carregar na alma a atenção pelo necessitado, atuando como advogada nata em prol do marginalizado indefeso.

    A criança que ela levava em si desempenhou bem seu papel. Não correu atrás do dinheiro ou do sucesso, escolhendo focar no bem-estar do outro. Todas as conquistas e destaques que vivenciou foram fruto da sua dedicação em prol do coletivo, e não pela ânsia em colher aplausos para si por algum feito pessoal. Seu conceito de sucesso estava atrelado ao bem-estar geral e assim ela imprimiu seu caráter em tudo que se colocava sem a neura em mascarar sentimentos. Passou a vida inteira empenhada em ajudar as pessoas.

    Até mesmo nos momentos cruciais da sua doença ela se colocava sempre presente, amparando a todos no seu sentido mais amplo, da ajuda monetária ao colo. Ainda menina, experimentou uma baita adversidade e, talvez, naquele infortúnio ela estivesse vivenciando um primeiro crescimento que envolvia sua força interior, sua fé e seu caráter. Só ela sabia desse sofrimento, pois apenas ela experimentava na pele. Melhor dizendo, na sua visão. Foi quando ela teve considerável diminuição da visão, vítima de Toxoplasmose. Foi quando também, ela teve que carregar aquilo em sua corrente sanguínea pelo resto da vida, com sério risco de atingir a resistência do organismo, no caso do sistema imunológico ser afetado por outra doença, como ocorreu em outra etapa de sua vida. A perplexidade de todos era grande com a sua quietude, seu silêncio, sua aceitação. Ela não fazia barulho. Não esperneava. Não questionava. Não tinha crises existenciais. Não se fazia de vítima nem tirava partido de sua situação. Marcadamente uma pessoa discreta, mas de atitude, buscou tratamento adequado, escolheu melhores especialistas em Belo Horizonte.

    Ninguém a viu reclamar dessa sua deficiência, creditar o mal a qualquer divindade, vomitar suas mazelas nas pessoas ao redor ou demonizar seu estado. Assim era ela: fazia o que tinha que ser feito e apenas seguia, aceitando o que a vida lhe reservava, sempre que possível se refrescando com as limonadas pelo caminho, pois disso ela gostava muito: de tirar proveito do que lhe era gratuito e de direito. Com bastante gelo. Mais tarde, ciente dos prejuízos que a quimioterapia e medicamentos em geral causavam ao seu sistema imunológico, isso era o que menos lhe afetava os pensamentos, sentimentos, emoções e consequentes ações. Na verdade, paralelo ao disciplinado tratamento, o que ela mais prezava era um ambiente sadio. Lutou como uma guerreira, pois disso ela sabia ser primordial como coadjuvante de qualquer processo curativo. Por saber disso, ela passou a vida ocupada em promover esse ambiente sadio, ainda que remando contra forte correnteza. (Ironicamente, em meio a familiares).

    Lutou por isso todos os dias de sua existência e, em muitos episódios pontuais, essa luta era um verdadeiro cabo de guerra, fugindo totalmente das regras desse jogo da vida. Isto porque a outra equipe, além de puxá-la, esgotando suas energias, ainda usava outra estratégia para vencer a disputa, forçando-a a cometer uma falta, de modo que ela escorregasse e caísse. E ela sempre levantava. Desgastada, mas altiva.

    A sinceridade era a marca do seu coração honesto, não tendo medo de expressar seus sentimentos, sem qualquer preocupação com autoimagem. A duras penas, aprendeu a não se importar em mostrar suas emoções. Essa talvez fosse a sua exposição que mais tenha incomodado a oposição gratuita. Alegre sem excessos ou autoafirmação, foi verdadeira, perdoando com facilidade e se reconciliando. As mágoas e ressentimentos que colheu no caminho eram revertidos em atitudes práticas que anulavam qualquer conflito mais denso instalado pela incompreensão alheia.

    Fez boas amizades com facilidade e as conservou. Em todas as ambiências por onde passou teve muitos amigos leais. Porque era uma amiga leal.

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