Madrasta é a mãe! Reflexões sobre uma maternidade marginal
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Sobre este e-book
Diante de tantas interdições, Letícia Tomazella ousa fazer perguntas para as quais ainda não formulamos respostas: "Nós pertencemos? O que somos no clã familiar? Quem somos, afinal?". Correndo o risco de ser moralmente apedrejada, comete uma heresia ainda maior: refere-se, vez ou outra, às madrastas como mães. Sim, mães! O que ela defende aqui é que a madrasta também é mãe. Invisibilizada, mas mãe. Uma outra mãe, por que não?
O número de famílias mosaico hoje é imenso, mas a nossa sociedade continua desejando lidar com um conceito único e excludente de família. Este livro faz um convite: vamos dar um passo além?
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Madrasta é a mãe! Reflexões sobre uma maternidade marginal - Letícia Tomazella
(...) eu o conheci, e nos conhecemos, e descobri com enorme emoção que os filhos são queridos não por serem filhos, mas pela amizade que surge conforme os criamos...
(Gabriel García Márquez, em O amor nos tempos do cólera)
A vida não é mãe, é madrasta. Ela nos tira mais do que dá.
(dito popular)
Mãe só tem uma.
(dito popular)
Sessé, Leon e Yuri, toda a minha gratidão e amor por vocês, que me ensinam todos os dias que família é laço de amor, afeto, confiança e proteção.
1Prólogo
2Jorro inicial
3A canalização do mal
4Queimem-nas, este território é meu!
5Bruxas e santas
6Meus, seus, nossos filhos
7A mãe
8A casa é de quem?
9Dinheiro
10 Escola
11 Manto da invisibilidade
12 Ciúme
13 Por que continuar?
14 Dicas para um maternar saudável
apresentacaoSou madrasta e mãe, e a leitura do livro Madrasta é a mãe! me arrebatou de um jeito vasto e profundo. Cada palavra, cuidadosamente escolhida, abriu em mim um diálogo entre madrastar
e maternar.
A leitura me provocou severas sensações. Lembrei que existem tantos sentimentos misturados, inexatos, incompreendidos, silenciados e aprisionados nas fronteiras criadas pela sociedade patriarcal para dividir, explicar e impor os papéis, tanto das mães quanto das madrastas, que cheguei a perder o ar. Essa classificação binária da vida, dividida em duas faces, dois lados, isso ou aquilo, é tão limitante quanto perigosa e opressora.
Como podemos determinar de forma tão genérica e superficial o papel da mãe e o da madrasta, se elas se misturam tanto e a todo tempo na criação de um ambiente seguro e afetuoso para as crianças? O livro da Letícia é um corajoso e necessário trabalho que traz luz a um tema marginalizado – o papel da madrasta na construção de uma sociedade mais contemporânea, colaborativa, justa e afetuosa.
Há um provérbio africano muito conhecido e, na minha visão, extremante verdadeiro que diz: É preciso uma vila inteira para criar uma criança
.
É importante e até vital não limitar o amor, a disponibilidade de doação e a generosidade de mulheres que se conectam às crianças desse mundo. E o livro nos mostra isso com maestria. Nos lembra de resgatar nossas verdades numa sociedade patriarcal e machista, que criou a cultura da competição entre mulheres, disseminada até nos contos de fadas. Neles, mães são puras e santificadas, enquanto madrastas são más e dissimuladas.
Acontece que nós, mulheres, somos muito mais fortes que as falácias criadas para nos enfraquecer e desestabilizar. Sabemos que, juntas, formamos uma rede capaz de mudar até as realidades mais enraizadas em inconscientes coletivos que só fazem nos distanciar.
Madrasta é a mãe! é um livro que nos transforma, que nos provoca, que nos faz jogar por terra ideias preconcebidas baseadas em disputas territoriais pelo afeto de seres humanos que deveriam nos unir e jamais nos cindir (amo essa palavra usada com tamanha propriedade pela Letícia).
Depois de ler atenta e apaixonadamente cada linha, eu desejo que o mundo compreenda suas palavras corajosas, Lê. Precisamos delas para tirar dos dias essa poeira que insiste em fechar nossos olhos para a capacidade de amar e de seguirmos juntas na jornada de criar pessoas melhores para um mundo que tanto precisa delas. E que tanto precisa de nós!
FLAVIA CAMPOS,
MÃE, ESCRITORA E FEMINISTA
1 PrólogoNa primeira noite em que dormi na casa do meu então namorado, éramos nós dois numa cama grande e deliciosa. Dormimos em dois... Acordei, éramos quatro. Assim, bem assim, começou minha vida de madrasta. Espremida numa imensa novidade.
Se você acha que é difícil ser mãe, experimente ser madrasta.
Essa frase é da minha querida amiga Mariana Camardelli, mãe e madrasta. Ou melhor, madrasta e mãe, nessa ordem, conforme ela mesma sempre pontua. Que difícil comparar cargas já tão complexas por si só. Que difícil comparar mulheres e funções femininas. Que ousadia comparar as mães com qualquer outra coisa no mundo, não?! Mas, saibam, sempre somos comparadas.
Pautadas na comparação diária, as mulheres construíram suas noções de feminilidade, de autoestima, de existência, de socialização. Pautadas na extenuante comparação com a outra, olhamos nosso reflexo no espelho, e do outro lado tem sempre um algoz que nos chama de feia, pequena, incapaz, menor que uma outra. E foi assim, pautada na comparação, que a figura da madrasta foi jogada à marginalidade dos clãs, sendo ora má, ora simples coadjuvante, sem voz na própria casa e na própria vida. Ou mesmo ladra dos filhos alheios, ladra de família, eterna estrangeira (chego a pensar que a sociedade assistiu em looping à novela mexicana A usurpadora, e as madrastas são as Paolas Brachos das casas. Entendedoras entenderão, rs!).
Escrevo este prólogo num momento em que, passados dois anos de pandemia, estou exausta. Estamos todas e todos assim, eu sei. É um período em que muitas questões do coletivo e do individual estão em ebulição, e não seria diferente na minha madrastidade
.
O livro ficou descansando
por todo esse tempo, após 80% dele ter sido escrito. Enquanto eu, madrasta, definitivamente não descansei. A vida doméstica nos engoliu (quase) todas e todos. Ao mesmo tempo, foi justamente estando neste contexto esquisito que pude aprofundar noções e sentimentos que já estavam pincelados no livro, pois a vida foi e está sendo pródiga em me ensinar coisas. O podcast Maternizando, que criei com minha querida amiga Júlia Rodrigues Mota, roteirista e mãe de dois, foi tomando forma e me trazendo narrativas das mais variadas mães, madrastas e famílias mosaico. Gestei, assim, algumas reflexões e compreensões acerca do universo das madrastas, desde as mais sortudas até as mais azaradas (e tem cada história cabulosa!).
Estou numa fase difícil da minha madrastidade
. Minha família só é o que é hoje porque eu lutei. Sim, lutei muito, incansavelmente, mas... Cansei. Estou numa fase cansada – embora siga lutando diariamente pelas causas em que acredito. Amo meus enteados, mas não amo ser madrasta – não é o que as mães já podem dizer publicamente? Talvez um dia a gente construa um alicerce mais pacífico e saudável para a madrastidade
, e então poderemos amar essa função. Até lá, saibam, a sociedade nos cansa, nos pesa, nos julga, nos exclui, nos quer longe. Criamos filhos, mas não somos nada deles
, dizem. Eu sei que isso é mentira, mas dói ouvir e saber que as pessoas pensam assim. É por essas e outras (tantas outras!) que este livro existe. É por nós, para nós, mulheres. Para que a gente quebre essa estrutura que nos cinde, nos separa, nos faz competir, nos isola, nos faz sofrer tanto e faz com que causemos sofrimentos umas nas outras. Chega.
Este livro não é um manual da boa madrasta, mas um estudo sobre a competição feminina simbolizada nessa dupla mãe-madrasta
e um mergulho na família mosaico. Talvez, desse mergulho nas sombras possa sair uma luz, uma solução, uma forma de curar feridas e seguir adiante com mais saúde. Almejo que possamos encontrar esse tesouro atrás do arco-íris. Talvez ele, o tesouro, não esteja tão longe assim.
Eu sinto que conquistei muitas coisas boas na minha madrastidade
, e narro algumas no livro. Mas não deixem que minha esporádica positividade sobre o meu maternar faça vocês pensarem que minha vida é ou foi fácil como madrasta, que sou o grande exemplo da família mosaico, ou algo assim. Não. Sofri e sofro muito até hoje. A madrastidade
é basicamente o centro das minhas sessões terapêuticas (viva a terapia!) e o abismo onde me jogo volta e meia. A madrastidade
é um cânion. E a maternidade também. Sendo assim, é diante do horror e da beleza do cânion que estamos. Não precisamos nos jogar, mas venham comigo contemplar um pouco esse abismo, esse horizonte, essa paisagem complexa. Da contemplação podem surgir insights ou, no mínimo, juntas aqui, diante disso tudo, descobriremos que nossos sentimentos são mais comuns do que imaginávamos. Não estamos sós.
Neste e em outros tantos sentidos, madrastas, palmas a todas vocês, que passaram por tantos desafios nessa vida puxada. Não conheci uma madrasta sequer que teve uma madrastidade
fluida desde o início. Todas tiveram que lutar muito para pertencer. Às mães também ofereço meus aplausos... Que difícil é ser mulher e mãe e ainda ter que conseguir preservar sua identidade, que difícil é o que nos contaram sobre a maternidade e que agora temos que desconstruir assim, a pauladas. Não ensinaram as mães que compartilhar o maternar é bom. Dolorida a forma como construíram a vida da mulher nessa sociedade patriarcal... mas, enfim, sobre as mães muito já se fala e muitas são as redes que reconhecem o valor materno e as cargas imensas que pesam sobre elas. Estou aqui para olhar outra maternidade. Uma maternidade marginal. Um tanto invisível e bastante trabalhosa... Sim, pois educar o chamado filho de alguém
é tarefa muito difícil. E se tornará quase impossível enquanto você, madrasta