Macabéa, Pobre Macabéa: Desamparo e Feminilidade no Romance Clariciano
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Macabéa, Pobre Macabéa - Jéssica Samantha Lira da Costa
COMITÊ CIENTÍFICO DA COLEÇÃO MULTIDISCIPLINARIDADES EM SAÚDE E HUMANIDADES
Ao seu Leunamme Epilogo Lima da Costa (in memoriam), por ter sido o melhor
pai-avô que alguém poderia ter e por me ensinar a amar.
AGRADECIMENTOS
Quem me conhece sabe que eu não tenho o hábito de misturar vida profissional com vida pessoal (como se pudéssemos realmente ter esse controle total). Muito por conta disso, nunca fiz qualquer agradecimento em meus trabalhos acadêmicos que não fossem àqueles que estavam cercando-me em âmbito profissional. Todavia, um livro, para além de ser um recorte profissional, é algo indubitavelmente pessoal, e sempre soube que, no dia em que finalmente lançasse o meu primeiro livro, os agradecimentos seriam àqueles que são os pilares que me sustentam em todos estes anos.
Este livro é inteiramente dedicado a uma única pessoa: seu Leunamme, meu avô, meu pai, meu amigo, meu conselheiro, meu escudo, minha carne e meu sangue. Aquele que, com toda a sua sensibilidade e bom humor, ensinou-me como deveríamos viver a vida e o que realmente importa nela. Obrigada por tudo, pelos ensinamentos, pelas risadas, pela leveza das brincadeiras bobas, por me amar incondicionalmente (mesmo quando eu não merecia), por me mostrar que devemos sempre respeitar o próximo, não importa em qual objeto esse próximo esteja encarnado. Obrigada por me ensinar o valor da bondade, por me ensinar em como melhorar a cada dia, fazendo o bem ao próximo (ainda que por vezes ele possa não ser digno). Eu sinto a tua falta como sentiria a falta do ar caso não conseguisse respirar. Mas te prometi, e estou tentando cumprir a cada dia, que daria o meu melhor para honrar teu nome e teus ensinamentos. Lembro que sempre me falavas que ainda me veria prosperar muito e que o mundo seria pequeno para mim. Bom, vô, não sei se este mundo realmente é pequeno demais ou se realmente estou em um caminho de prosperidade, o que sei é que sempre te levo comigo e peço para que me guies no melhor e mais justo caminho. Queria que tivesses esperado só mais um pouquinho que seja, que estivesses aqui agora (ainda que eu saiba que nunca te foste de fato). Amo-te, old man.
À Dona J., minha avó. A mulher mais falante que eu conheço na vida. A minha figura de limites, de respeito e de dignidade. O ser humano mais correto que eu já conheci na vida e que me ensinou a preciosidade que é você honrar seu nome e não precisar passar por cima de ninguém para conseguir tudo o que almeja. Obrigada por me ensinar que ainda é possível viver praticando o fair play. Aquela que sempre acredita em mim e que faz com que eu me sinta capaz de absolutamente tudo. Aquela para quem eu sempre corro para contar tudo (das coisas ínfimas às mais importantes decisões da minha vida), porque sei que a sua experiência irá clarear o meu caminho e a minha decisão e porque nunca falaria absolutamente nada que pudesse me prejudicar. Obrigada pelo amor incondicional que a senhora e o vovô direcionaram a mim e ao P. Não seríamos nada (literalmente) sem vocês dois em nossas vidas. Estou muito feliz por estares ao meu lado em mais esta conquista. É para ti e por ti. Amo-te, old lady.
À minha mãe. Meu amor maior, aquela que me ensinou o significado do amor sem medida, do transbordamento. Aquela que me ensinou que não devemos ter vergonha ou receio por amar. Aquela que me ensina diariamente os segredos da feminilidade.
À D., pela companhia, parceria, companheirismo, amor, carinho e cuidado. Obrigada por estar ao meu lado e sustentar, também, a dificuldade que é conviver com um ser tão inamável como eu. Amo-te, maktube!
Ao Y., meu alter ego masculino, meu primeiro, meu amigo, meu irmão, minha alma. Lembra o que lhe disse sobre a importância da philia em detrimento do eros? Pois é. Tu és a representação máxima desse significado para mim. Amo-te como a mim mesma.
Ao P., meu irmão, meu quase gêmeo, meu amigo, meu admirador, minha plateia cativa, meu incentivador e a minha pessoa irritante favorita do mundo. Amo-te! Estarei sempre ao teu lado, da mesma forma como tu sempre estiveste do meu.
Ao Henry (tenho certeza de que futuramente ele gostará de ver o nome dele citado de maneira completa aqui — risos), meu amor, aquele que surgiu para mostrar que eu tinha um amor materno guardado bem nas profundezas do meu ser. Quero investir neste mundo para tentar fazer uma pequena e ínfima parte para que você tenha uma experiência e possibilidade de vida futuramente melhor que a que temos agora, no presente. Amo-te, dindinho.
Ao Tyler (in memoriam) e ao Apollo (in memoriam), aos dois seres que fazem a jornada de um humano valer a pena. Freud tinha (mais uma vez) razão: vocês são indubitavelmente elevados em comparação aos seres humanos.
Aos meus Mestres, que, de uma forma ou de outra, contribuíram para a feitura deste estudo. Profissão nobre que eu escolhi para mim. A vocês, meu respeito e minha genuína admiração!
Aos meus alunos, por quem nutro uma paixão avassaladora: obrigada por me manterem em atividade psíquica e por serem tão gentis, me possibilitando colocar em prática diariamente as forças que movem a minha existência: a arte de transmitir conhecimento.
Aos demais, que não são menos porque não foram diretamente citados, mas que são partes constituintes do meu investimento libidinal e que fazem com que eu me sinta plena pela presença singular de cada um em cada âmbito da minha vida. Obrigada por cada contribuição e participação. Vocês são especiais porque são únicos para mim.
Ela canta, pobre ceifeira,
Julgando-se feliz talvez;
Canta, e ceifa, e a sua voz, cheia
De alegre e anônima viuvez,
Ondula como um canto de ave
No ar limpo como um limiar,
E há curvas no enredo suave
Do som que ela tem a cantar.
Ouvi-la alegra e entristece,
Na sua voz há o campo e a lida,
E canta como se tivesse
Mais razões para cantar que a vida.
Ah, canta, canta sem razão!
O que em mim sente ‘stá pensando.
Derrama no meu coração a tua incerta voz ondeando!
Ah, poder ser tu, sendo eu!
Ter a tua alegre inconsciência,
E a consciência disso! Ó céu!
Ó campo! Ó canção! A ciência
Pesa tanto e a vida é tão breve!
Entrai por mim dentro!
Tornai Minha alma a vossa sombra leve!
Depois, levando-me, passai!"
(Cancioneiro
, de Fernando Pessoa)
PREFÁCIO
ENSAIO PARA UMA CENA COM MACABÉA
No início de A hora da estrela, o narrador Rodrigo S. M. afirma que a história acontece em estado de emergência e de calamidade pública
. Escrito em 1977, essa novela — ou romance — foi o último livro publicado em vida por Clarice Lispector, que faleceu alguns meses após o seu lançamento. Chamam a atenção as palavras do narrador, emergência
e calamidade pública
, palavras corriqueiras, mas que parecem ter ganho um novo peso na atualidade. Diante da enorme tragédia ambiental, social e sanitária que a cada dia experimentamos de forma mais intensa, é impossível não sermos tomados por um sentimento de profundo desamparo. Porém, há inevitavelmente certo grau de desamparo ao qual nenhum de nós pode escapar, mesmo nas épocas mais afortunadas. Lembremos, para começar, do livro de Hilda Hilst A obscena senhora D, em que Hillé, a senhora D, fica absolutamente só após a morte do marido e passa a viver no vão da escada, experimentando o sentimento de um desamparo extremo: Desamparo, Abandono, desde sempre a alma em vaziez, buscava nomes, tateava cantos, vincos, acariciava dobras [...]
. Movida por essa afecção, Hillé entrega-se a um questionamento infinito, compartilhando com o leitor as suas dúvidas a respeito de Deus, o sentido da existência, a morte e a vida. Assim como Hillé, Macabéa, a pobre nordestina em cujo rosto o olhar do narrador pegou no ar de relance o sentimento de perdição
, também é obs-cena, não no sentido de ser despudorada, mas no de estar, literalmente, fora da cena
.
É exatamente esse o viés perseguido pelo estudo da psicanalista Jéssica Lira Macabéa, pobre Macabéa: desamparo e feminilidade no romance clariciano, oriundo de sua dissertação de mestrado. Perseguindo essa passagem do fora da cena
à cena, ou seja, à hora da estrela
, a psicanalista constrói um campo de investigação que liga a questão do desamparo àquele da feminilidade, outro tema igualmente relevante nos tempos atuais, sobretudo quando pensamos nos debates contemporâneos que também colocam em cena
o lugar da mulher e os enigmas por ela representados — pergunta que Freud nunca chegou a responder. Ainda que Jéssica Lira prefira se afastar das discussões mais diretamente ligadas aos estudos feministas, o estudo traz um importante mapeamento do quanto a feminilidade representou um papel preponderante para o desenvolvimento da Psicanálise.
Por outro lado, seria impossível não mencionar que a publicação deste estudo vem em ótima hora, logo após as comemorações do centenário de Clarice Lispector, ocorrido em 10 de dezembro de 2020. O livro A hora da estrela destaca-se por um registro que une a dimensão subjetiva à social, nos apresentando Macabéa, uma personagem cuja enorme simplicidade revela muitas das inquietações que estão no cerne da existência humana. A hora da estrela é um romance muito diferente dos outros romances de Clarice, assim como Macabéa, uma datilógrafa que mal sabe escrever, é muito diferente das outras mulheres às quais Clarice deu vida. Desprovida de tudo, essa personagem insignificante toca-nos profundamente; Macabéa é uma flecha envenenada que nos fere sem concessões. O que estaria em jogo nessa figura tão perturbadora? Como assinala Jéssica Lira, o escritor não escreve por opção, mas sim por necessidade
. E é a essa necessidade de escrever — e de criar a inquietante Macabéa — que a pesquisadora dedica o seu trabalho, propondo uma investigação atenta que entrelaça todas essas temáticas com sensibilidade e cuidado: a feminilidade, o desamparo, a Psicanálise e a literatura.
Esse último ponto merece um destaque particular. A dissertação de Jéssica Lira foi escrita no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Psicanálise da UFPA, mas elegeu como objeto de estudo um texto literário. Munida de uma linguagem simples, sem os jargões mais comuns daqueles que se dedicam à Psicanálise, Jéssica brinda-nos com um texto acessível mesmo para os que não são especialistas na área. Ao aproximar a Psicanálise da literatura, a psicanalista retoma um gesto freudiano, que era o de recorrer aos escritores para melhor elaborar as suas propostas teóricas. São bastante conhecidas e ressaltadas algumas vezes ao longo da pesquisa de Jéssica as observações de Freud de que os Dichter teriam um acesso privilegiado ao psiquismo humano. Em suas cartas a Arthur Schnitzler, Freud demonstra perplexidade diante de algum tipo de conhecimento secreto
que o escritor teria a respeito das verdades do inconsciente
, conhecimento esse que Freud, ele mesmo, só teria adquirido por meio de uma árdua exploração do seu objeto de estudo.
A literatura, assim como a Psicanálise, lida com um não saber, algo que só pode ser dito à medida que o gesto de dizer concretiza-se. É importante pensar que a própria ficcionalidade desempenhou um papel importantíssimo para o pai da Psicanálise na elaboração de sua teoria, uma vez que a ficção, para bom entendedor, não faz parte do mundo da falsidade ou da mentira, mas tem, justamente, o poder de dissolver as fronteiras entre o verdadeiro e o falso. Para Freud, que estava profundamente mergulhado no ambiente dos fatos científicos e das verdades incontestáveis, era essencial encontrar uma via de escape dos modelos oriundos da Neuropsicologia. E essa via foi encontrada na literatura.
Tudo se passa como se, por intermédio das obras literárias, Freud pudesse abrir o seu campo de olhar, atentando para o fato de que tanto a literatura quanto a Psicanálise põem em evidência um trabalho com a linguagem, uma ética do dizer por meio da qual o sujeito, ao contar uma história, talvez a sua própria história, experimenta um processo de despossessão de si, sem o qual nenhuma (re)construção seria possível. No texto Literatura e magia
, produzido por ocasião de sua participação no I Congresso Mundial de Bruxaria, Clarice Lispector expressa esse paradoxo que ronda o processo de escrita: Escrever, e falo de escrever de verdade, é completamente mágico. As palavras vêm de lugares tão distantes dentro de mim que parecem ter sido pensadas por desconhecidos, e não por mim mesma
.
É notável que, em A hora da estrela, Clarice tenha enveredado por muitos novos caminhos, sendas ainda não trilhadas em seus textos anteriores. Em primeiro lugar, o fato de dar vida a uma personagem extremamente pobre, tão miserável que parece vazia, insignificante, sem qualquer tipo de consciência a respeito de sua própria condição. Mas é justamente dessa pequenez, dessa miséria, que Clarice extrairá uma poeticidade imprevista. Curiosamente, a protagonista ganha vida por meio de um olhar masculino, o do narrador Rodrigo S.M. No entanto, não devemos nos enganar com esse recurso empregado pela autora, uma vez que ela o reforça ao mesmo tempo que embaralha as peças do jogo. Assim, o livro começa com uma Dedicatória do autor
seguida da observação na qual se lê: (Na verdade Clarice Lispector). Essa pequena anotação não busca afirmar a verdadeira identidade
da autora, mas, ao contrário, assinala a necessidade de uma despersonalização, à moda de Fernando Pessoa, como se fosse preciso desapossar-se de si para que Macabéa pudesse ganhar vida. Para dialogar ainda com Fernando Pessoa, o vazio de Macabéa, talvez mesmo a sua falta de consciência, ecoa no poema dedicado à pobre ceifeira
que canta sem razão
e tem mais razões para cantar que a vida
. Diante dela, o sujeito que a observa (na verdade, Fernando Pessoa) pode afirmar: O que em mim sente está pensando
, no mesmo passo em que pretende chegar a uma síntese