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Revista Arquivo do Museu das Bandeiras: Volume I - 2020
Revista Arquivo do Museu das Bandeiras: Volume I - 2020
Revista Arquivo do Museu das Bandeiras: Volume I - 2020
E-book342 páginas3 horas

Revista Arquivo do Museu das Bandeiras: Volume I - 2020

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Sobre este e-book

Esta obra tem como objeto de estudo o Museu das Bandeiras. O Muban é uma instituição pública, federal, vinculada ao Ibram, autarquia, atualmente, do Ministério do Turismo. Possui um rico acervo museológico e arquivístico. O primeiro é caracterizado por objetos representativos das entradas e bandeiras, a câmara e cadeia, elementos constitutivos da formação de Goyaz (cidade de Goiás) e por objetos significativos da presença negra, indígena e portuguesa em Goiás. Já o acervo arquivístico é dividido em diversos fundos e coleções: Armas Imperiais/Armamentos; Oratórios; Arte tumular; Instrumentos de Tortura; Imaginária Sacra-Cristã; Indumentária; Etnográfico; Mobiliário; Construções Sacras Cristãs; Utensílios Domésticos; Equipamento de Trabalho/Estudo etc.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento1 de out. de 2020
ISBN9786587782850
Revista Arquivo do Museu das Bandeiras: Volume I - 2020

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    Revista Arquivo do Museu das Bandeiras - Cristina De Cassia Pereira Moraes

    Copyright © 2020 by Paco Editorial

    Direitos desta edição reservados à Paco Editorial. Nenhuma parte desta obra pode ser apropriada e estocada em sistema de banco de dados ou processo similar, em qualquer forma ou meio, seja eletrônico, de fotocópia, gravação, etc., sem a permissão da editora e/ou autor.

    Revisão: Márcia Santos

    Capa: Matheus de Alexandro

    Diagramação: Larissa Costa

    Edição em Versão Impressa: 2020

    Edição em Versão Digital: 2020

    Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

    Conselho Editorial

    Profa. Dra. Andrea Domingues (UNIVAS/MG) (Lattes)

    Prof. Dr. Antonio Cesar Galhardi (FATEC-SP) (Lattes)

    Profa. Dra. Benedita Cássia Sant’anna (UNESP/ASSIS/SP) (Lattes)

    Prof. Dr. Carlos Bauer (UNINOVE/SP) (Lattes)

    Profa. Dra. Cristianne Famer Rocha (UFRGS/RS) (Lattes)

    Prof. Dr. José Ricardo Caetano Costa (FURG/RS) (Lattes)

    Prof. Dr. Luiz Fernando Gomes (UNISO/SP) (Lattes)

    Profa. Dra. Milena Fernandes Oliveira (UNICAMP/SP) (Lattes)

    Prof. Dr. Ricardo André Ferreira Martins (UNICENTRO-PR) (Lattes)

    Prof. Dr. Romualdo Dias (UNESP/RIO CLARO/SP) (Lattes)

    Profa. Dra. Thelma Lessa (UFSCAR/SP) (Lattes)

    Prof. Dr. Victor Hugo Veppo Burgardt (UNIPAMPA/RS) (Lattes)

    Prof. Dr. Eraldo Leme Batista (UNIOESTE-PR) (Lattes)

    Prof. Dr. Antonio Carlos Giuliani (UNIMEP-Piracicaba-SP) (Lattes)

    Paco Editorial

    Av. Carlos Salles Bloch, 658

    Ed. Altos do Anhangabaú, 2º Andar, Salas 11, 12 e 21

    Anhangabaú - Jundiaí-SP - 13208-100

    Telefones: 55 11 4521.6315

    atendimento@editorialpaco.com.br

    www.pacoeditorial.com.br

    Sumário

    Apresentação

    PARTE 1 - Dossiê: A CAPITANIA DE GOIÁS EM PERSPECTIVA: Governo, justiça, sociedade e caminhos no século XVIII

    1. Dossiê sobre a memória e a identidade pesquisado na documentação do Arquivo do Museu das Bandeiras

    2. Cartografia histórica: as origens e destinos de viajantes e condutores por meio dos registros da capitania de Goiás (1793-1815)

    3. No labirinto das discórdias: queixas e denúncias contra os governadores da capitania de Goiás (1749-1804)

    4. Abusos, atos despóticos, desentendimentos e perseguição: questões jurisdicionais na capitania de Goiás (1778-1804)

    5. Magistrados da justiça régia nas minas de Goiás no século XVIII

    6. Estratégias coletivas de liberdade na aquisição de alforrias

    7. Doenças e tratamentos no Real Hospital Militar de Vila Boa (c.1792-c.1813)

    PARTE 2 - Artigos do Museu das Bandeiras

    1. Museu das Bandeiras 70 anos

    2. O pecúlio como forma de conquista: a história escravagista não contada

    3. Entre grades e correntes: os crimes e a presença feminina na antiga Casa de Câmara e Cadeia de Goiás (1934-1935)

    4. Collegio Izabel – (do Presídio de Leopoldina à Fazenda Dumbazinho – 1870 a 1888) – primeiras instruções aos indígenas do Vale do Araguaia: relatos de uma pesquisa

    5. As mudanças do sistema punitivo da cadeia pública da cidade de Goiás (1830-1946)

    Sobre os autores

    Paco Editorial

    Apresentação

    O Museu das Bandeiras (Muban) é uma instituição pública, federal, aberta ao público e vinculada ao Instituto Brasileiro de Museus (Ibram), autarquia, atualmente, pertencente ao Ministério do Turismo. Está localizado no Centro Histórico da Cidade de Goiás, reconhecida como Patrimônio Cultural da Humanidade em 2001. Foi tombada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional em 1978, pelo governo estadual em 1980 e pelo município de Goiás em 1996. Tem como missão

    preservar, pesquisar e comunicar a memória nacional relativa à ocupação na região Centro-oeste do Brasil, enfatizando as contribuições dos diversos segmentos étnico-sociais presentes neste processo, visando a universalidade do acesso, a sustentabilidade cultural, social, econômica e ambiental, e contribuir para o desenvolvimento do país, por meio da promoção da inclusão social, da igualdade racial e de gênero, da valorização da diversidade cultural e sexual; e do respeito aos direitos e à dignidade humana. (Muban, 2020, p. 5)

    Este espaço museal está sediado no antigo edifício construído para ser utilizado como câmara e cadeia, construído em 1766 na antiga Vila Boa de Goyaz. Sua nova função foi dada em 3 de dezembro 1949 por meio da Lei n. 394, mas aberto ao público somente em 1954. Destaca-se que sua criação e manutenção de museus para a guarda dos bens móveis identificados como de importância nas cidades em que eram consideradas patrimônio nacional e tombadas pelo Decreto-Lei 25/37 (Muban, 2007, p. 9). Possui uma construção de 225 m² em um lote de 1.060,8 m². Ao todo são mais de 500 objetos museológicos preservados pela instituição.

    O edifício que hoje abriga o Museu das Bandeiras é muito significativo para a história goiana e brasileira. Mediante a sua importância, em 1951, foi tombado por meio do processo 395-T-945, sendo inscrito no livro de Belas Artes pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Essa mesma edificação foi tombada pelo estado de Goiás em 1980 por meio da Lei n. 8915/80, além de ser reconhecido com um bem imóvel integrado no dossiê da Unesco que conferiu à Cidade de Goiás o título de Patrimônio Cultural da Humanidade. Segundo o Iphan,

    O prédio da antiga Casa de Câmara e Cadeia, que hoje abriga o Museu das Bandeiras, é um dos melhores exemplos da arquitetura oficial civil portuguesa no Brasil e o mais significativo do Centro-Oeste. A construção do prédio data de 1766 e foi realizada segundo o projeto da Coroa Portuguesa, projeto esse preservado pelo Arquivo Colonial da Marinha e Ultramar, em Portugal. A parte superior do edifício é formada por salões que atendiam as necessidades administrativas e judiciárias da Vila Boa de Goiás. Na sua parte inferior situava-se a cadeia, com duas enxovias, as celas individuais e a casa de armas. As paredes externas e internas são de taipa de pilão, entremeadas com pedras para dar segurança desejada à cadeia. Nas enxovias, forradas de vigas de madeira, as paredes têm 80 cm de espessura. O prédio funcionou como cadeia até 1950, quando foi doado ao Patrimônio Histórico que o transformou em Museu.1

    O Museu das Bandeiras possui um rico acervo museológico e arquivístico. O primeiro é caracterizado por objetos representativos das entradas e bandeiras, a câmara e cadeia, bem como elementos constitutivos da formação de Goyaz (cidade de Goiás). Já o acervo arquivístico é dividido em diversos fundos e coleções e foi o primeiro acervo doado ao Museu das Bandeiras. Em conjunto, o acervo museológico e arquivístico são grandes referências para a Região Centro-Oeste.

    O arquivo guarda o acervo documental que foi dado tratamento especial desde sua incorporação ao Museu já na década de 1950. Foi o primeiro acervo doado ao Museu. Vários planos de arranjo possibilitavam ao pesquisador acesso às informações dos documentos. Segundo o Plano Museológico (2009), o núcleo inicial do seu acervo foi constituído pelo próprio edifício e pelo arquivo documental da Fazenda Pública da Província de Goiaz. Esse conjunto de documentos representa uma das fontes de informação mais importante sobre a administração pública da região Centro-Oeste no período colonial, Império e República, sendo enriquecido por aquisições e doações de móveis, utensílios e equipamentos, pratarias e outros objetos dos séculos XVIII, XIX e início do XX.

    No arquivo do Museu das Bandeiras, estão reunidos documentos de Colônia, Império e República. Ao todo, o arquivo guarda, os seguintes documentos:

    • Brasil Colônia contém 25,72 metros lineares,

    • Brasil Império: 177,82 metros lineares;

    • Brasil República: 110 metros.

    Seu acervo museológico é composto por objetos significativos da presença negra, indígena e portuguesa em Goiás. Inicialmente, foi constituído por objetos/documentos do arquivo documental da Delegacia Fiscal do Tesouro Nacional em Goiás e pelo mobiliário já pertencente ao edifício. O acervo é composto por 590 peças, entre elas objetos de arqueológicos, mobiliário, fragmentos de igrejas, elementos representativos da ocupação bandeirante e da escravidão, arte indígena e originária, arte sacra e os bens integrados do edifício.

    Atualmente, o acervo museológico é dividido em distintas coleções, a saber, Numismática; Alfaias Litúrgicas; Ourivesaria; Armas Imperiais/Armamentos; Oratórios; Chaves e Espelhos de Fechaduras; Arte tumular; Bens Móveis Integrados; Instrumentos de Tortura; Imaginária Sacra-Cristã; Indumentária; Etnográfico; Mobiliário; Construções Sacras Cristãs; Utensílios Domésticos; Equipamento de Trabalho/Estudo; Telefonia; Telas; Montaria; Urbanização.

    O presente livro irá apresentar pesquisas realizadas com o acervo documental e museológico do Museu das Bandeiras. Esta publicação foi dividida em duas etapas, a primeira organizada pela professora Cristina Moraes, uma das mais importantes pesquisadoras do nosso arquivo. Em seguida, serão apresentados artigos produzidos por colaboradores e pesquisadores da instituição. Em conjunto, essa primeira publicação do Arquivo do Museu das Bandeiras reforçará seu potencial científico e educativo.

    Tatielle Nepomuceno

    Tony Boita

    Direção do Museu das Bandeiras


    1. Disponível em: https://bit.ly/2xCKe8E. Acesso em: 03 jul. 2020.

    PARTE 1

    DOSSIÊ

    A CAPITANIA DE GOIÁS EM PERSPECTIVA: Governo, justiça, sociedade e caminhos no século XVIII

    1. Dossiê sobre a memória e a identidade pesquisado na documentação do Arquivo do Museu das Bandeiras

    Cristina Moraes

    Não é exagero afirmar que guardar recordações do passado (algumas boas e outras nem tanto) faz parte de quem somos. No entanto, não deixa de suscitar dúvidas: quem define o que deve ser lembrado e quem define o que (se deve) esquecer? A pergunta merece muitas respostas e, uma delas, pode ser: todos nós. Se em arquivística há a aplicação de tabelas de temporalidade, normas a serem seguidas, a reunião de uma equipe de especialistas em várias áreas; no exercício pouco agradável de guardar comprovantes de contas pagas, cada qual, se pautando na intuição ou até na vontade. Assim, o documento serve, em primeiro lugar, para fins práticos, para provar algo. Dito de outro modo, o documento, no ato de sua produção, não é destinado para deleite de historiadores. Malgrado os diferentes tipos de documentos, dos diversos interesses que permeiam o ato de guardar documentos, continuamos a fazê-lo.

    Para além disso, lembrar e esquecer são partes de nossa memória e constituem partes de nossa história. Lembrar e esquecer é um exercício individual e coletivo. Os caminhos da memória e do esquecimento são partes da atividade humana e muitos são os mecanismos do lembrar e esquecer. Nesse sentido, somos todos parte de um grande mosaico de memória no qual se fundem e confundem pedaços de nosso(s) (ante)passado(s). Em nossas atividades cotidianas a memória afetiva manifesta-se no guardar fotografias, cartas de amor, diários do vivido, bem como a obrigação de lembrar o pagamento das contas a vencerem no fim do mês, do seguro do carro aos impostos; cada um de nós deixa algum registro.

    Os registros das atividades humanas são fontes para compreensão do passado – não em sua totalidade, mas vestígios de seus processos, suas formas de viver, morrer, agrupar-se, separar-se, lidar com o passado, enfim, da cultura. Esse conjunto de atividades humanas difere no tempo e no espaço. São os componentes da identidade nacional, local, de um grupo ou de uma família e, na atualidade, denominados bens culturais. O documento é, antes de qualquer coisa, o registro da atividade humana.

    Lembrar e esquecer, documentar e guardar ou eliminar são facetas da humanidade, nos processos que caracterizam sua diversidade; são, enfim, processos sociais. Como bem afirma Le Goff, o documento é o veículo a partir do qual as sociedades impõem – voluntária ou involuntariamente – a imagem que querem de si (1984). Ainda segundo este historiador, o documento é um instrumento de poder. Tornar-se senhores da memória e do esquecimento é uma das grandes preocupações das classes, dos grupos, dos indivíduos que dominaram e dominam as sociedades históricas. Os esquecimentos e os silêncios da história são reveladores destes mecanismos de manipulação da memória coletiva (Le Goff, 2003, p. 422).

    O estudo destes vestígios do homem no tempo é a mola mestra do historiador, muito embora palavras como resgatar, preservar e difundir esses vestígios do passado têm sido a bandeira de vários grupos sociais, cujos interesses nem sempre são confluentes. Todavia, estamos no século XXI e parece que o sentido da modernização da sociedade não atingiu ainda a tarefa do pesquisador no Brasil. Com raras exceções, poucos são os arquivos organizados e o documento ainda é visto como um exemplar descartável se ele não tem prática ou validade legal como instrumento de prova.

    Data de algumas décadas apenas a preocupação das instituições no Brasil em guardar documentos, como condição para a preservação de sua memória. Esta preocupação tem possibilitado algumas experiências, com a criação de centros de memória ou laboratórios de pesquisas e/ou núcleos de documentação setorizados. Nesta tarefa, existem pessoas que procuram preservar acervos, encarando o documento como peça fundamental para a recuperação de fatos, de modos de vida e de pensar, enfim, dos homens em uma determinada época e em um determinado lugar.

    Textuais, audiovisuais, cartográficos ou iconográficos, os documentos constituem fatores de informações únicas, que são agrupadas, relacionadas e selecionadas pelo pesquisador, no seu trabalho de reconstrução de realidades passadas. Nesse sentido, a história só se torna possível pela existência de traços, de evidências, ou documentos que, analisados à luz de determinados conceitos, possibilitam a construção do conhecimento histórico.

    A preservação de documentos é, assim, imprescindível para a memória e a história das sociedades. Esta, possibilita a recuperação de identidades, quer de grupos, quer de indivíduos. Preservar não significa apenas guardar, mas sim desenvolver uma atividade sistematizada de classificação e descrição que facilite a busca da informação pelo usuário.

    O inventário das mudanças verificadas a partir do século XV leva-nos a constatar que a nova cartografia quinhentista, para além da criação de uma intensa complementaridade entre os grandes oceanos, intensificou a interação entre homens das mais longínquas regiões do globo inaugurando um processo que até hoje se mantém dinâmico. O trânsito de pessoas e culturas, além de espécies vegetais, animais e produtos, por um longo período, reconfigurou as regiões, dando origem a uma nova paisagem humana e natural. No caso específico da África e da América portuguesa, foram criados laços que mobilizaram os mais diversos setores da existência humana desde a linguagem, o comportamento, o paladar, o gosto musical e estético, as representações do sagrado, além de inúmeros outros aspectos.

    O tráfico e a escravidão, processos de longa duração que transformaram tanto a vida das regiões de origem do escravizado, como os locais de chegada daqueles contingentes humanos, foram os fatores fundadores do grande intercâmbio cultural. Entretanto, após a abolição do tráfico e da escravidão, estes eventos passam a ser abordados com certo constrangimento. Tornam-se, com o advento do liberalismo e das campanhas antiescravistas, fenômenos históricos que devem ser evitados e, se possível, jogados nos subterrâneos do esquecimento, suprimidos da memória coletiva.

    Um episódio polêmico em torno da figura de Rui Barbosa é bastante ilustrativo da ação de silenciamento da memória coletiva sobre um acontecimento que constitui motivo de constrangimento ao ser rememorado. Segundo uma interpretação frequentemente reproduzida nas escolas, o Ministro da Fazenda, logo após a proclamação da República, teria mandado incinerar os documentos relativos às matrículas de escravizados para anular a mancha da escravidão do passado nacional1. A origem desse mito foi a lei que determinava que fossem incinerados

    todos os papeis, livros e documentos existentes nas repartições do Ministério da Fazenda, relativos ao elemento servil, matrículas dos escravos, dos ingênuos, filhos livres de mulheres escravas e libertos sexagenários.2

    Ora, segundo diversos estudos3, a intenção de Rui Barbosa não foi apagar um episódio da história, mas evitar que proprietários viessem a pleitear indenizações pelos seus ex-escravizados junto ao novo regime republicano, por isso, teria mandado queimar as referidas matrículas. Entretanto, a história contada e repetida diz que Rui Barbosa teria tido a intenção de anular a mancha da escravidão. Essa é uma demonstração de que para muitas pessoas falar do tráfico e da escravidão gera um constrangimento e seria, então, mais conveniente apagar da história os acontecimentos relacionados. Encerrada as discussões sobre o episódio, pesquisas têm demonstrado que muito se pode investigar sobre a escravidão a despeito dos documentos queimados.

    Entretanto, toda a polêmica construída em torno da atitude de Rui Barbosa chama a atenção, ainda hoje, para a existência de uma disputa da memória, de um conflito entre o que seria a história oficial, que encerra o evento da escravidão com a Lei Áurea de 13 de maio e os setores que querem discutir os desdobramentos decorrentes daquele processo, criar novas narrativas e buscar compreender a discriminação sofrida pelos afrodescendentes e, até mesmo, compreender algumas manifestações contemporâneas da escravidão.

    O silenciamento4 de aspectos da memória social não constitui fato inédito na historiografia, em particular as narrativas da constituição da nação calaram inúmeros episódios, tais como os genocídios indígenas no setecentos e em séculos posteriores e toda a violência decorrente da escravidão africana. Quanto à escravidão, uma vez oficialmente extinta, foi necessário colocar uma pedra sobre os acontecimentos para promover uma convivência harmoniosa entre algozes e vítimas, entre ex-escravizados e senhores.

    A fronteira entre o dizível e o indizível, o confessável e o inconfessável, separa, em nossos exemplos, uma memória coletiva subterrânea da sociedade civil dominada ou de grupos específicos, de uma memória coletiva organizada que resume a imagem que uma sociedade majoritária ou o Estado deseja passar e impor5.

    A memória coletiva nacional constitui um fator de coesão, uma interpretação dos acontecimentos que fornece um quadro de referências comum a todos. As comemorações do dia 13 de maio e as homenagens à redentora Princesa Isabel têm essa conotação, estabelecem o encerramento de uma etapa e pretendem inaugurar uma nova era de congraçamento. Para além disso, todos nós conhecemos os desdobramentos desse silenciamento cuja expressão mais acabada foi o mito da democracia racial brasileira.

    A escravidão de africanos deportados para a América foi acompanhada de um processo ideológico de reificação (coisificação), de inferiorização do negro e de racismo. A discriminação racial explícita, como no caso norte-americano, ou dissimulada, como no caso brasileiro, exigiu a retomada de acontecimentos indizíveis, bem como o aprofundamento de análises e pesquisas sobre os grupos excluídos, buscando a reconfiguração da memória coletiva.

    O estudo sobre o tráfico de escravizados da África para o Brasil tem sido um dos campos mais revisitados nos últimos tempos, reavaliando os números da diáspora e as características e transformações que o processo promoveu na África e nas Américas, mas, ele é quase nulo para o Centro-Oeste. O aprofundamento de seu estudo é um dos passos necessários para sabermos lidar tanto com os acontecimentos do passado quanto as manifestações contemporâneas daquele evento.

    Foi embebido dessa perspectiva que, ainda em meados de 1980, Manolo Florentino demonstrou na sua tese que o tráfico de escravizados6 não foi, como se imaginou, controlado pelos tentáculos da Coroa portuguesa. Em costas negras (1995) o autor descobriu que, na realidade, o controle advinha de outro lugar: da própria América. Foram os negociantes moradores da Praça do Rio de Janeiro e da Bahia que controlaram esse negócio. Derrubava, assim, a tese de que o Brasil era um apêndice de Portugal e as relações mantidas aqui acompanharam, de maneira absoluta, as diretrizes portuguesas. A contribuição desses trabalhos foi, a nosso ver, desvendar e analisar os mercados internos existentes na América portuguesa. Constatar que, durante o processo de conquista, havia fissuras e que muitas leis régias não foram aplicadas integralmente nos espaços de conquistas, mostrou, assim, que havia socialmente grupos, práticas e valores distintos de Portugal. Era uma sociedade diferente7. Com efeito, o ineditismo dessa historiografia era que, em vez de substituir a centralidade de Portugal pelo local, tal perspectiva preocupou-se mais pelo modificado, adaptado e a comparação entre o que era divergente e/ou convergente.

    Para tanto, um dos brasilianistas responsáveis por introduzir essa nova percepção da América portuguesa e da própria noção de Império português foi, certamente, Charles Boxer. De um lado, sua obra Salvador de Sá e a luta pelo Brasil e Angola8 e, de outro, O império marítimo português (2002), empregou uma nova interpretação. Tanto a primeira obra como a segunda,

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