Um copo d'água: e outros escritos imperfeitos
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Sobre este e-book
Esta edição, revista e ampliada, reúne o conteúdo do livro Um copo d'água, sete artigos do autor publicados em anos diversos na Revista de Estudos Avançados, além de três palestras do autor.
Como diz Gerôncio Rocha, esta é a sua "fortuna". Um livro referência no assunto água.
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Um copo d'água - Gerôncio Rocha
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Sumário
Livro I – Um copo d’água
Introdução
Quanta água
Aquarela
Espelho do mundo
Olhos d’água
Correnteza
Um dia, um rio
Livro II – Outros escritos imperfeitos
A construção do sistema paulista de gestão dos recursos hídricos
Água subterrânea
Ai de ti, Amazônia
Aquífero guarani: o grande manancial do cone sul
A disputa pela água em São Paulo
Água, gente e ambiente, segundo Guimarães Rosa
Maldição sobre São Paulo: breve crônica sobre o tietê metropolitano
Livro III – Palestras
Desafios da gestão de águas subterrâneas na metrópole paulista
Desafios da gestão de recursos hídricos em São Paulo
Panel Gestión de Recursos Hídricos en La Cuenca del Plata /Aguas Subterráneas
Oficina de critérios para a revisão do hidrograma de Belo Monte, na Volta Grande do Xingu.
Para Amíria, Ana e Tiago.
Apresentação
Esta obra é minha fortuna.
Um copo d'água foi originalmente publicado pela Editora Unisinos, em 2002. Outros escritos imperfeitos, na maioria, foram acolhidos ao longo de 25 anos pela revista Estudos Avançados, da USP. Além deles, foram acrescidos quatro roteiros de palestras, a título de ilustração do movimento pela água. Essa reunião mostra a repetição de temas e tópicos ao longo do tempo, como se fossem reiterações insistentes e impacientes: a água precisa de atenção; também a água pede democracia.
O novo livro – agora em formato e-book – é oferecido ao leitor como se fosse um copo d'água.
O autor
Livro
I
UM COPO D'ÁGUA
Introdução
Este livro trata da água e de suas circunstâncias.
Há algum tempo, organismos internacionais – onu, unesco, oms – vêm advertindo os governos e a opinião pública sobre a crise da água no mundo: a escassez tende a se agravar em muitos países devido ao uso descontrolado e à demanda crescente com o aumento da população.
Esses avisos são importantes, mas convém desconfiar da carga de alarmismo que os acompanha. A rigor, não falta água na Terra. Desde tempos imemoriais – há milhões de anos –, graças à renovação anual do ciclo das águas, a natureza mantém um estoque permanente de água doce, capaz de suprir todas as necessidades das sociedades. No entanto, a distribuição global desse volume excedente de água é desigual: nas regiões áridas ou desérticas, onde quase não chove, há escassez natural de água. Afora essas regiões, na maior parte do mundo há água em abundância.
A escassez relativa de água, da qual tanto se fala hoje em dia, não é culpa da natureza. Tudo indica que é coisa dos homens. Basta ver a situação do Brasil, onde a água é naturalmente abundante: com exceção da Bacia Amazônica, em vários estados há bacias hidrográficas com problemas de suprimento de água para os diversos usos, principalmente para o abastecimento doméstico. A explicação está à vista, mas é frequentemente dissimulada. Começa pelo modo de apropriação da água: os principais setores usuários – agricultura, indústria, empresas de saneamento – disputam a água segundo a lei do mais forte, e dela fazem uso privativo. Além disso, em vez de zelar por um bem de uso comum, essencial à vida, maltratam a água: jogam nos rios e lagoas os esgotos e refugos da indústria, desencadeando um processo de poluição sem precedentes. A coisa chegou a tal ponto que parece não haver administração nem governo.
Por reação da sociedade, foi iniciado há quase dez anos um novo modo de gestão das águas. São os comitês de bacia hidrográfica, compostos de maneira equitativa por representantes do governo, dos usuários e da sociedade civil organizada; por meio da negociação e da busca do consenso, esses fóruns deliberativos estabelecem prioridades de ações e investimentos e promovem a recuperação ambiental das bacias e o uso equilibrado dos recursos hídricos. É esse movimento que este livro pretende revelar.
O texto segue um plano simples. O primeiro capítulo dá uma visão geral da ocorrência das águas superficiais e subterrâneas, com destaque para a situação brasileira. Logo a seguir – para não cansar o leitor –, faz-se uma pausa lúdica com um painel de citações sobre a água, recolhidas de escritores, poetas, músicos e santos. Nos capítulos seguintes procura-se descrever as condições e vicissitudes da água no país e as tentativas de gestão compartilhada que se estão propagando nos estados. O final – uma breve alegoria sobre o rio Alto Tietê – serve como um desafio geral.
Quanta água
Vista de longe, a Terra é azul
. Esta foi a exclamação de Iuri Gagarin, o primeiro homem a viajar pelo espaço, em 1961. Depois dele, sucederam-se viagens espaciais de homens e mulheres cujas naves fotografaram impressionantes imagens do Planeta Água. Azul é a cor da água; 2/3 da superfície do planeta Terra estão recobertos por água:
– água dos oceanos, água dos rios, lagos e arroios e sangas, água das calotas polares em forma de gelo,
– água de chuva, muita água. Mas nem tudo é azul. Toda a água da Terra é constituída basicamente de dois tipos: água salgada dos oceanos e
– água doce (água de beber) dos rios, lagos e do subsolo. A água salgada representa 95% do total. Puxa vida!
Ciclo das águas
O ciclo das águas, ou ciclo hidrológico, abrange a ocorrência e o movimento da água na hidrosfera (camada em torno da Terra que contém água nas formas líquida, de vapor ou de gelo), num circuito contínuo movido pela energia do Sol (Figura 1). O volume total de água no ciclo é praticamente constante (Quadro 1).
A água é armazenada em diferentes partes da hidrosfera. Os principais mecanismos de circulação de uma parte para outra são a evaporação e a transpiração, a precipitação, o escoamento superficial e o escoamento subterrâneo. A média de tempo em que a água permanece numa parte da hidrosfera é o chamado tempo de permanência, um importante indicador do período de renovação das águas. Note, por exemplo, que as águas dos rios se renovam mais rapidamente do que a água subterrânea.
Figura 1 – O ciclo das águas. (Todos os volumes entre parênteses estão em milhares de quilômetros cúbicos e representam as quantidades de água que circulam anualmente.)
Fonte: The Open University – Unicamp, 2000.
Quadro 1
Volumes e tempos de permanência da água no ciclo hidrológico
Fonte: The Open University – Unicamp, 2000
O ciclo das águas não tem início marcado nem fim. Podemos começar a descrevê-lo a partir da evaporação da vastíssima massa d’água dos oceanos. O vapor d’água sobe à atmosfera onde é resfriado e condensado, formando as nuvens.
Então, ocorre a precipitação: sob a ação da gravidade, as águas retornam aos continentes e oceanos na forma de chuva, neve, granizo ou geada. Quando toda essa água chega à superfície terrestre, uma parte é retida pela vegetação que dela se nutre e devolve um pouco para o ar, no processo de transpiração das plantas; a parte maior é evaporada dos lagos, rios e pântanos; uma parte se infiltra no solo e passa a escoar lentamente como água subterrânea; e somente uma pequena parte escoa como água superficial, nos rios, córregos, sangas e igarapés. A engrenagem dessa gigantesca usina de reciclagem da água não para.
Feitas as contas, a natureza é justa: a água que escapa à atmosfera sob a forma de evaporação e transpiração é compensada, com vantagem, pela água de precipitação. A diferença entre o volume de água que cai e o que evapora é cerca de 45 mil km³ por ano: um saldo que, em tese, a humanidade poderia gastar. Mas, desse total de água doce, somente cerca de 20% é aproveitável.
O maior volume de água ocorre nos aquíferos subterrâneos; porém a água subterrânea doce circula a profundidades de até mil metros (a profundidades maiores ela se torna salobra, devido ao maior tempo de permanência (Quadro 1). Existe, também, um grande volume de água na forma de gelo nas calotas polares, mas seu aproveitamento é provavelmente antieconômico e causaria problemas ecológicos (de vez em quando, surgem ideias de transportar blocos de icebergs para regiões secas, como o Nordeste, mas até hoje ninguém se atreveu a isso). De modo que os mananciais de água utilizável são: os rios, os lagos, a água subterrânea e a água de chuva. Eles correspondem a apenas 1% do volume total de água doce.
Figura 2 – Distribuição das chuvas na Terra, em mm/ano.
Fonte: IHP-UNESCO, apud Aldo Rebouças, 2000.
Recursos hídricos
Graças ao ciclo hidrológico, a água é o bem natural mais abundante no mundo. Até bem pouco tempo – pelo menos no tempo dos nossos pais ou avós – a água era simplesmente uma dádiva da natureza, assim como o ar: qualquer um poderia utilizá-la à vontade. Hoje em dia, apesar do conceito jurídico de bem de uso comum do povo
, a água é um recurso, dotado de valor econômico.
Isto resulta do crescimento da demanda por água para os diversos usos, que acompanha o desenvolvimento urbano e industrial dos países.
A distribuição da água doce no mundo é irregular, tanto no tempo como no espaço. A Figura 2 mostra a distribuição das precipitações (chuvas) nos continentes; ela permite uma primeira visualização da disponibilidade espacial das águas. De modo geral, há mais água nas regiões intertropicais (Trópicos de Câncer e de Capricórnio), porque é aí que estão localizadas as zonas mais úmidas, com chuvas mais abundantes e regulares.
O mapa mostra, também, regiões de escassez natural de recursos hídricos como no Norte da África, no Centro Oeste dos Estados Unidos e, particularmente, no Nordeste Seco brasileiro. No conjunto, o Brasil aparece com uma boa imagem, tal como visualizada pelo escrivão descobridor Pero Vaz de Caminha, no ano 1500, dia 22 de abril:
Esta terra, Senhor (...) De ponta a ponta,
é tudo praia – palma, muito chã e muito formosa.
Águas são muitas: infindas. E em tal maneira é graciosa que, querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo, por bem das águas que tem.
[a] Águas superficiais
O território das águas de superfície é chamado bacia hidrográfica (Figura 3). A bacia é delimitada por uma linha imaginária – divisor das águas – que une as partes mais altas do relevo: a água das chuvas escoa das serranias para a planície abrindo caminhos – nascentes, córregos, riachos, rios –, até desaguarem num rio maior, que recebe toda a água corrente. É na bacia hidrográfica que, desde o início das sociedades, se desenvolve toda a atividade humana: a agricultura, a indústria, a dinâmica das cidades – tudo em torno da água. Água, gente e ambiente formam uma unidade ecológica. É por isso que no planejamento e administração das águas a referência é a bacia hidrográfica, independentemente dos limites políticos dos municípios, estados ou países.
Figura 3 – Bacias hidrográficas no Estado de São Paulo.
Fonte: DAEE, 1990.
No Brasil, as águas de superfície são naturalmente abundantes, exceto no Nordeste Seco. O Quadro 3 mostra a disponibilidade de água nas bacias hidrográficas maiores, expressa em vazões médias de longo período. No total, há cerca de 180.000 m³/s, o que corresponde a 12% das águas pluviais do mundo. Todavia, mais de 3/4 da água se encontra na Amazônia (Bacia Amazônica e Bacia do Tocantins), que é habitada por apenas 7% da população brasileira.
A Figura 4 mostra a distribuição da população no país. Vista em associação com o Quadro 2, fica evidente a assimetria de localização geográfica dos recursos hídricos: onde há menos água é onde se concentra cerca de 80% da população e da atividade econômica. Apesar disso, a disponibilidade de água nessas bacias hidrográficas mais densamente ocupadas é elevada. Isso se deve, fundamentalmente, à rápida renovação das águas fluviais (Quadro 1). Problemas de escassez relativa de recursos hídricos estão associados a outros fatores e serão tratados mais adiante.
Quadro 2
Disponibilidade de água nas bacias hidrográficas do Brasil
*IBGE, 1996.
Fonte: Arnaldo Setti: Introdução ao Gerenciamento de Recursos Hídricos; ANA - ANEEL, 2001 (simplificado).
Figura 4 – Distribuição geográfica da população brasileira: cidades com mais de 20 mil habitantes.
Fonte: Milton Santos e Maria Laura Silveira: O Brasil.
[b] Águas subterrâneas
O volume de água armazenada no subsolo é muito maior do que o das águas de rios e lagos, mas seu período de renovação é mais prolongado. No ciclo hidrológico, a função natural da água subterrânea é a de alimentar o fluxo de base dos rios. Há, portanto, uma íntima relação entre as águas de superfície e as águas subterrâneas.
Os terrenos ou formações geológicas que armazenam as águas subterrâneas são chamados aquíferos. Há duas matrizes de terrenos: os aquíferos granulares ou sedimentares, onde a água circula entre os poros, como se fosse uma esponja; e os aquíferos fraturados, geralmente rochas duras onde a água circula por fendas, fissuras, fraturas. Os terrenos granulares, arenosos, contêm maior potencial de água.
A Figura 5 mostra a distribuição geográfica das águas subterrâneas no Brasil, segundo essas duas tipologias de aquíferos. Os terrenos de maior potencial ocupam cerca de 40% do território; no restante do país predominam os terrenos de baixa potencialidade hídrica.
Os recursos hídricos subterrâneos são largamente explotados em todo o território, principalmente no abastecimento público, por poços tubulares. Centenas de cidades, pequenas e médias, são inteiramente abastecidas por água subterrânea.
Figura 5 – Distribuição dos potenciais de água subterrânea no Brasil.
Dentre as regiões de maior potencialidade, destacam-se as bacias sedimentares do Parnaíba (Piauí-Maranhão), do Amazonas e do Paraná (Sudeste). Nas três, encontram-se reservas estratégicas de água subterrânea.
Na bacia sedimentar do Amazonas há dois aquíferos de grande extensão: o aquífero Alter do Chão, um valioso manancial para Manaus, Belém, Santarém e Ilha de Marajó; e o aquífero Solimões, a oeste, importante manancial para Rio Branco.
Na bacia sedimentar do Parnaíba há muita água; porém há pouca gente e pouca atividade econômica. Ali, a abundância de água