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O Modelo Social da Deficiência: entre o Político e o Jurídico
O Modelo Social da Deficiência: entre o Político e o Jurídico
O Modelo Social da Deficiência: entre o Político e o Jurídico
E-book338 páginas4 horas

O Modelo Social da Deficiência: entre o Político e o Jurídico

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Sobre este e-book

Hodiernamente, a deficiência é uma temática multidimensional, podendo ser abordada pela mais variadas áreas da Ciência, desde as esferas da saúde, como a medicina, até as Ciências Sociais, como o Direito e Política. Entretanto, esta plurivisão é algo recente, de maneira que até meados do século XXI prevalecia de modo hegemônico uma perspectiva puramente biomédica do fenômeno da deficiência, considerando-a como uma patologia. O modelo social da deficiência surge como um paradigma inovador, definindo deficiência como a vivência em corpos com impedimentos em ambientes com barreiras. Neste sentido, ela se torna parte da diversidade humana e não um estigma. Apesar dessa revolução interpretativa, a deficiência ainda é governada pelos ditames do senso comum, por posturas caritativas ou mesmo relegada à invisibilidade social. O Direito brasileiro contém um amplo rol de normas protetivas das pessoas com deficiência, que, contudo, carecem de densificação. Essa mazela deve-se em parte a carência de estudos sobre a temática pela ótica jurídica. Ademais, mesmo no âmbito da sociologia da saúde, o modelo social ainda é pouco difundido. Portanto, o objetivo deste trabalho é analisar o modelo social da deficiência pela perspectiva do Direito, demonstrando "se" e "como" o ordenamento jurídico interno está adotando tal arquétipo. A metodologia utilizada foi a análise de conteúdo de decisões e legislações nacionais e internacionais, bem como a revisão bibliográfica sobre a deficiência. Os resultados encontrados demonstram que o Estado brasileiro dispõe de mecanismo de efetivação dos direitos das pessoas com diversidade funcional, todavia, óbices, como a invisibilidade, preconceito e descomprometimento socioinstitucional representam barreiras ambientais que geram e promovem a exclusão dos deficientes.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento22 de fev. de 2021
ISBN9786587402000
O Modelo Social da Deficiência: entre o Político e o Jurídico

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    O Modelo Social da Deficiência - Denisson Gonçalvez Chaves

    mundo.

    1. UMA BREVE HISTÓRIA SOCIAL DA DEFICIÊNCIA

    Inicialmente, pretende-se realizar uma análise histórica e não historicista da deficiência. O objeto deste capítulo centra-se na epistemologia da deficiência no ocidente e toma-se como material de estudo não os fatos ou eventos sociais em si, ou, pelo menos, não somente estes, mas sim uma investigação das principais ideias que influenciam até hoje o modo como o homem contemporâneo qualifica a pessoa com deficiência.

    Justifica-se esta postura de investigação partindo das ideias aos comportamentos sociais, porque se entende que as disseminações de culturas intelectuais segregadoras foram determinantes para construção de práticas sociais discriminatórias, a exemplo do descaso da filosofia platônica com corpo ou a ideia de corpo-máquina de Descartes, resultando na percepção mecanicista do ser humano.

    Assim, primeiro refletir-se-á sobre alguns filósofos que pensaram o corpo e buscar-se-á perceber quais influências sobressaíram sobre o aspecto da deficiência.

    1.1 O CORPO COMO REPRESENTAÇÃO: DA FILOSOFIA À POLÍTICA

    O corpo como representação simbólica do homem ou como local de experiência do ser, é uma reflexão filosófica atual, ou pelo menos, historiograficamente moderna. Ocorre que desde as sociedades primitivas, isto é, as sociedades anteriores à escrita, o corpo sempre teve lugar importante na relação do sujeito com o mundo; obviamente essas relações tiveram seus significados modificados ao longo do tempo, todavia, persiste mesmo na contemporaneidade, um substrato pejorativo e fatalista sobre o corpo, espólio da história das sociedades ocidentais que prezavam por processos de estigmatização dos sujeitos, onde a representação do corpo era feita por meio de uma leitura moral (bom e mau) e estética (feio e belo) (PALACIOS, 2008; FOUCAULT, 1977; DINIZ, 2007; ANDRADA; 2013).

    Não é escopo deste trabalho discorrer de modo prolixo sobre a história do corpo nas sociedades ocidentais, visto que tal abordagem cai facilmente no equívoco de perceber a história como algo evolutivo e linear. É comum do homem considerar que o hoje é sempre o melhor dos tempos, que o passado é obsoleto, arcaico e atrasado e o futuro um paraíso consequencial das razões presentes. Todavia, os eventos históricos e as críticas sérias da ciência, estão aí para mostrarem o contrário, que algumas doenças sociais só mudam de nomenclatura, mas atacam os mesmos corpos (ou as mesmas vítimas). Desse modo, pretende-se inicialmente dissertar sobre a relação entre as ideias e os fatos sociais, e, para tanto, toma-se em conta a relação que determinados argumentos ou teorias filosóficas tiveram para que certos comportamentos sociais sobre o corpo pudessem ser estabelecidos no seio social até o ponto de serem considerados dogmas.¹

    Assim, neste primeiro momento objetiva-se antes de tudo demonstrar que algumas teorias filosóficas foram cruciais para determinarem o comportamento e a forma como as pessoas interpretavam e reconheciam o corpo em certo tempo e localidade. Isto porque a Filosofia e as Ciências Políticas são áreas do conhecimento pertinentes à seleção dos questionamentos tidos como importantes para determinada época – trata-se de uma questão epistemológica no sentido lato do termo; assim, é preciso pensar uma filosofia do corpo e até mesmo uma sociologia do corpo, isto porque as perguntas não nascem do acaso ou bel prazer dos filósofos, crer nisso é no mínimo uma ingenuidade perigosa, pois condenaria o conhecimento ao solipsismo. Os problemas do pensar e do agir são construídos e com isso se defende que a questão do corpo sempre esteve como matéria central das discussões filosóficas e políticas porque o corpo é sempre aquela parte do ser que estar visível; e por ser visível tende a ser transitório (CANGUILHEM, 1990, p. 40). Nesse sentido, entende-se ser da máxima relevância saber quais as formas clássicas de pensar sobre o corpo e como essas formas de pensar interferiram no modo como os indivíduos reconhecem as pessoas com deficiência, ou seja, as pessoas com corpos limitados.

    Destarte, compreende-se aqui a deficiência como uma forma de experimentar o corpo com limitações e restrições. É importante deixar claro: parte-se de uma visão geral sobre o corpo por que esta é fundamental para entender a deficiência; mesmo as doenças mentais, ditas patologias da alma ainda assim sofreram e sofrem influência do modo como o homem percebe o corpo nas suas relações de poder. Tais considerações não nascem do nada, existe sempre uma força geradora de pensamentos que amparam preconceitos e interpretações excludentes. Trata-se do poder discursivo, do poder dos argumentos que funcionam como justificadores da práxis social. Não é possível cogitar a deficiência sem antes compreender o corpo como representação simbólica do ser no mundo, prescindir de tal reflexão é considerar o corpo como mero objeto sem história e sem sujeito.

    1.2 OS NEGADORES DO CORPO: PLATÃO E DESCARTES

    Pode-se afirmar que Platão foi um dos primeiros a pensar o corpo como questão filosófica. Ao lado de seu mestre Sócrates e tomando os ensinamentos deste, considerou o corpo como um tema de relevância para o homem pensar sua existência como ser solipsista e como agente político. Em sua teoria dualista entre corpo e alma, o filósofo já postulava a superioridade da alma em relação ao corpo (PLATÃO, 2004). A alma, desse modo, seria uma ideia perfeita anterior à encarnação.² O corpo, por sua vez, seria o túmulo da alma; tratando-se, assim, de duas existências distintas.³ O corpo como realidade aparente, transitória e passível da dor e das paixões humanas, sendo, portanto, suscetível à falha e ao erro; e a alma, por sua vez, perfeita, imutável e eterna. Percebe-se que a ideia do perene e eterno é muito forte em Platão, que remete à imortalidade da alma, fazendo alusão à natureza dos deuses, enquanto o corpo é momentâneo.

    No discurso platônico o corpo é reconhecido como uma realidade humana por excelência, porque é multiforme, sensível ao tempo e à dor e marcado pela instabilidade, atributos típicos da existência do homem no mundo. A alma, por outro lado, não é contrária ao corpo, mas superior a ele, isto porque a alma pensa melhor quando não tem nada (...) a perturbá-la; (...) e concentrada em si mesma, dispensa a companhia do corpo (Fédon). Para Platão: o corpo é a queda da alma⁴. Interessante que para o filósofo grego, mesmo as patologias cognitivas (loucura e outras doenças mentais) não são atribuídas à alma, mas à relação, ou melhor, à contaminação da alma pelas paixões e limitações do corpo, como a luxúria, a insensatez e a ignorância.

    Indaga-se: qual a importância do pensamento de Platão sobre o corpo e a alma para uma reflexão crítica sobre a deficiência?

    Ocorre que o dualismo platônico foi uma das primeiras teorias a retratar o corpo, visto sua tese da dualidade, ressoando, até os dias atuais, suas consequências mais salutares são: a) o corpo como uma dimensão da existência humana; b) a carga semântica negativa sobre o corpo como receptáculo da dor e da queda do homem.⁵ O primeiro ponto significa dizer que o corpo é um elemento imprescindível do homem. Não se pode abster-se do corpo; mesmo em sua mutabilidade ele é real e o homem deve saber como tratá-lo, cuidá-lo e reconhecê-lo. No que diz respeito à negatividade do corpo como obstáculo da alma, esta mentalidade vai repercutir até o racionalismo cartesiano e a primazia da razão sobre qualquer outra realidade (ANDRADA, 2013). Assim, se o corpo é a obstrução da alma, o que pensar dos corpos deficientes? Para uma reflexão profícua sobre esta questão é importante relembrar a doutrina do orfismo, uma das bases do pensamento socrático platônico:

    O Orfismo nasceu provavelmente no século VI A.C., baseado no mito de Orfeu. Sua doutrina elaborou a concepção da origem divina da alma. Era uma concepção marcadamente dualista. O corpo era o cárcere da alma e só a morte a libertava. Por isso propunha a abstenção como norma, desde a alimentar até a sexual, para fins de purificação. Falava sobre reencarnação e natureza da alma, e possuía três ideias-chave: a alma está presa ao corpo para pagar uma culpa originária; as reencarnações servem para sanar essa culpa; a conduta de vida, através de iniciações e ritos, purifica a alma. Assim, o sofrimento não era mais do que uma longa educação da alma. O sofrimento era purificação. E no mundo inteligível, tanto as punições pelas culpas quanto os prêmios pelos méritos seriam passíveis a qualquer alma, sem distinção (COSTA, 2016, p. 1-2).

    A doutrina do orfismo adotada por Platão influenciou de modo preponderante o pensamento ocidental, pois a ideia da pessoa deficiente como aquela acometida do destino trágico, e diz-se trágico relacionado à carga semântica grega, isto é: destino fatal inescapável⁶, é justificada por tal mentalidade. Assim, nesse contexto a pessoa com deficiência é aquela que carrega consigo a culpa originária, culpa esta que é anterior (pecados dos pais ou maldição de família) ou contemporânea (pecado próprio ou carma) a existência do indivíduo. Chaga de sua alma impura. É fatal, arrebatadora e não se pode escapar. Desse modo, o sofrimento sentido pela pessoa com deficiência nada mais é que um processo de educação e purificação da alma – uma verdadeira catarse: o corpo deficiente era a sentença condenatória e o sofrimento a pena perpétua para alma impura.

    É interessante lembrar também que Platão, ao discorrer sobre as possibilidades do retorno da alma ao mundo sensível, não abandonou sua lógica separatista dos puros e impuros. Assim, para o filósofo, aqueles que tiveram uma vida virtuosa e prudente, ao morrerem, isto é, ao libertarem-se do cárcere corpóreo, terão acesso as coisas do mundo inteligível, à sabedoria maior existente na realidade da Alma; por sua vez, os insensatos estarão condenados a reencarnar em corpos menos honrados. A alegoria platônica, sem dúvida, serviu como fundamento para justificação da discriminação dos deficientes, isto é, daqueles que são punidos pelos deuses por suas vidas passadas menos honradas e cuja punição é consequência. Platão, nesse sentido, não só justificou o sofrimento, como atribuiu a ele um significado moralmente negativo – sentença metafísica destinada àqueles de natureza ruim (SILVA, 1987, p. 45).

    Séculos depois, a filosofia platônica teve um adepto especial: Descartes. O pai do racionalismo e um dos fundadores dos princípios básicos da ciência e Filosofia moderna partiu dos mesmos pressupostos de Platão, isto é, da separação entre Alma e Corpo e da inferioridade do corpo com relação à Alma. A relevância de Descartes para toda sua posterioridade é interessante para pensar que o ponto de partida dos questionamentos epistemológicos de pensar a ciência e a filosofia da modernidade tiveram como parâmetros os estudos cartesianos, ou seja, inferências que se despreocupavam com o corpo. Até mesmo a medicina via o corpo como máquina, instrumento da Alma e da razão. É por este motivo que o filósofo francês afirma: Ora, o primeiro e principal requisito que previamente se exige para o conhecimento da imortalidade da alma é que dela nos formemos um conceito, o mais claro possível e que seja completamente distinto de todo conceito do corpo (DESCARTES, 2004, p. 37).

    Como anteriormente mencionado, Descartes não toma de Platão tão somente a separação entre corpo e alma, mas também a negação do corpo. Porém, o filósofo francês não vê a decadência do corpo por ser prisão da alma, mas por aproximar o homem do sofrimento e das paixões. O corpo é sensível ao mundo, é a parte primeira da existência a entrar em contato com as ressonâncias da realidade, é através do corpo que se sente dor e sofrimento. Nesse sentido, negar o corpo é também negar a parte obscura da realidade humana: o sofrimento das sensações (dor, morte, perecimento e acidentes).⁷ Mas, tais características também denotam a ideia de movimento e do transitório, nesse ponto o corpo é fraco porque se permite mudar ou ser transformado a qualquer tempo:

    Pois, embora todos os seus acidentes se modifiquem – ela entende umas coisas, quer outras, sente outras etc. –, nem por isso a própria mente torna-se outra. Ao passo que o corpo humano se torna outro, em virtude apenas de que se modifique a figura de qualquer uma de suas partes. Disto se segue que tal corpo morre muito facilmente, enquanto a mente ou a alma do homem (o que não distingo) é imortal por sua natureza (DESCARTES, 2004, p. 39).

    A mortalidade e decadência ligadas à noção de corpo são preconcepções que imbuíram este de uma inferioridade natural. De Platão a Descartes, salvo algumas poucas exceções, o corpo é percebido como parte menos digna do ser humano, seja por não ser perene, seja porque o homem via no corpo suas próprias chagas e limitações. Não se pode negar que a supremacia do espírito e da Alma se tratava deveras de um idealismo da razão. É por este motivo que em críticas posteriores serão denominados de negadores do corpo, uma vez que repudiavam sua consideração. Como resultado do processo de negação do corpo, este foi interpretado apenas como conceito, dentro de abstrações linguísticas que fugiam a qualquer tipo de fenomenologia. Houve uma aculturação ou separação do corpo da história e da política. Nesse ponto, destaca Novaes:

    Se lembrarmos da tradição do humanismo ocidental, somos obrigados a pensar o corpo como o elemento menos nobre de uma série de pares: corpo-alma, corpo-espírito, corpo-mente, corpo-razão. Nesses pares, ele ocupava o lugar da natureza em oposição ao da cultura; o local do primitivo em oposição ao do civilizado; o lado animal e instintivo em oposição ao racional ou humano. Para que tais dicotomias funcionassem era preciso tomar seus polos como exteriores um ao outro, como independentes e incontaminados. O corpo, nesta lógica tradicional, não poderia ser pensado como instância da cultura ou como esfera da política (NOVAES, 2012, p. 7).

    Esse esquecimento do corpo significa dizer que ele é algo não político. Estar no centro dos debates políticos, isto é, na discussão acerca dos interesses que podem ser qualificados como de interesse geral ou da coletividade é fundamental para o amadurecimento e para construção de práticas sobre o objeto das questões politizadas (BARTON, 1998). Toma-se como exemplo as questões como família, sobre o estrangeiro, a propriedade privada, dentre outros. O corpo não fazia parte desse rol de coisas dignas de serem consideradas políticas e, por não ser questão de debate, foi submisso ao poder das coisas do espírito (FOUCAULT, 2008). A despolitização do corpo se deve em grande parte a essa primeira concepção dos negadores do corpo, que com o argumento da inferioridade em relação à Alma sempre esteve relegada a discussões periféricas, nada comparadas as construções abstratas como Estado, Democracia, Religião. Como lembra sabiamente Pierre Bourdieu a ausência é uma das piores formas de opressão (BOURDIEU, 2008, p. 212).

    1.3 NIETZSCHE: REASSUMINDO O CORPO COMO LINGUAGEM

    Os negadores do corpo encontraram uma forte oposição em Nietzsche, que foi um dos primeiros a contrariar o pensamento de Descartes, fundamentado no dualismo grego de corpo e alma. Sua crítica primeiramente parte de uma análise filológica sobre o corpo, onde o autor faz apontamentos à postura do racionalismo cartesiano, considerado por ele ingênuo. E as altercações não se dirigem somente a Descartes, mas a toda uma gama de teóricos modernos, especificamente no que diz respeito àqueles que trataram a semiologia dos termos sobre o corpo pelo mesmo ponto de partida de Platão: a negação do corpo. Para Nietzsche, as definições são as verdadeiras prisões do sentido; limitações semânticas. É nesse sentido que afirma em Genealogia da Moral (1998, p. 13): todos os conceitos, nos quais coligem semioticamente um processo inteiro, esquivam-se defini-lo: definível é somente aquilo que não tem história.

    Nietzsche chama a atenção para a ditadura das definições sobre o corpo. Ele não busca uma conceituação, mas questiona o processo de escolha dentre as definições disponíveis, pensando o porquê de determinadas definições serem preteridas em relações a outras. O filósofo alemão convida a uma autorreflexão das escolhas simbólicas dos termos em sua guerra teórica contra aqueles que denomina de idólatras dos conceitos. É importante compreender que a crítica de Nietzsche não é somente semiológica, é antes de tudo uma alteração no modo de compreender o mundo governado por fundamentações metafísicas. A doutrina cartesiana se baseava em um pressuposto metafísico, isto é para além do real. Sua ontologia estava na abstratividade do espírito puro, por isso o filósofo qualifica este procedimento de des-historicizador (NIETZSCHE, 1998).

    Assim, uma das consequências que Nietzsche apontou como decorrentes do esquecimento do corpo é que comportamentos cotidianos do tratamento do corpo como alimentação, ambiente de vivência, clima e bem-estar físico, são colocados em segundo plano, assim como o próprio trabalho ou as condições de trabalho. O mais importante era buscar o aprimoramento da alma e do espírito. Não é de se surpreender que os trabalhos manuais, para os dicotômicos do corpo-alma – isto em Sócrates, Platão e Descartes – são antes de tudo uma condenação à labuta. Uma segunda consideração de Nietzsche é a ideia de multiplicidade e fluxo contínuo do corpo. Este é sempre contínuo como a vida o é, destarte, o corpo surge como uma representação do homem no mundo: múltiplo, diverso e volátil, sujeito às alterações da natureza e da sociedade. Percebe-se que o autor alemão afirma que o corpo é um eixo de ligação do homem com o mundo, questão que os idealistas metafísicos lutaram tanto tempo para separar. Pensar o corpo é pensar o mundo porque se trata de pensar as coisas como matéria e realidade, não como abstrações ideais.

    1.4 MICHEL FOUCAULT: A POLITIZAÇÃO E DISCIPLINA DO CORPO

    A crítica de Nietzsche foi salutar para uma quebra de paradigmas sustentados pela sociedade burguesa do século XVIII e meados do século XIX, em especial, a equivocada noção da intrínseca inferioridade do corpo em relação ao espírito.

    Pode-se afirmar que duas premissas foram lançadas com as reflexões do alemão sobre a temática do corpo:

    a) o corpo, assim como todas as coisas que pertencem à realidade humana, é uma forma de expressão linguística. Tal conhecimento é importante no momento em que se contrapõe a tese do corpo como algum dado natural e imutável. Visto que Nietzsche defende que o corpo é construído pela linguagem e o que se conhece sobre o corpo não é sobre ele em si, mas sobre a definição que a ele se atribui em diferentes locais e espaços;

    b) o corpo sempre fora visto como local de experiência do poder, exercido pelas mais distintas instituições: família, igreja, Estado, religião, medicina e outras ciências. Desse modo, as conjeturas dos saberes modernos, como a filosofia, sociologia, medicina, política, religião etc, apropriaram-se de modo monopolístico da competência de definir o que é o corpo, exercendo sobre ele total controle epistêmico.

    Essas premissas foram salutares para os estudos do filósofo e historiador francês Michel Foucault, que também abordou a temática sobre o corpo em seus escritos. Porém, existe um ineditismo nos estudos de Foucault: trata-se da abordagem do poder sobre o corpo (ou corpos), que acabou resultando em sua construção terminológica do biopoder. Foucault toma para si as premissas de Nietzsche e critica os negadores do corpo e seu dualismo psicofísico, adotando a abordagem monista entre corpo/consciência (RODRIGUES, 2003, p. 110). Assim, para ele, corpo e sujeito estão na mesma esfera de conhecimento, não sendo possível dissociá-los. Este pressuposto é importante porque quando Foucault trabalha a questão do poder e dos saberes ele conclui que não há como escapar ao poder, tendo em vista que ele produz aquilo que se conhece (FOUCAULT, 2008).

    No que diz respeito ao corpo e à deficiência, três pontos são importantes nas obras de Foucault: o discurso; os saberes; e o poder disciplinar. São temas que se relacionam e questionam o processo de controle sobre os indivíduos, através do exercício do poder. Não somente, ou especificamente, o poder físico ou a força, mas o poder epistêmico, ou seja, o domínio sobre a capacidade de construir justificativas para relações sociais controladoras que servem a interesses de grupos sociais diversos.

    Quando Foucault trabalha a temática da deficiência mental (História da Loucura, 1961, e O nascimento da clínica, 1963), deixa claro que a identificação da deficiência mental é realizada através de um procedimento precipuamente discursivo; o louco é aquele que tem um discurso dissonante: o incompreensível às pessoas consideradas normais. Logo, o ponto fundamental no estudo da deficiência não está em categorizar e/ou classificar os deficientes dos não deficientes, mas saber qual a medida da definição da deficiência, como essa medida foi posta, por quem foi posta e por que se mantém.

    Nesse sentido, o autor francês defende que existe um exercício do poder que se manifesta na produção, justificação e manutenção do discurso. Trata-se da ordem do discurso ⁸ que relaciona uma arqueologia do saber para uma genealogia do poder. Nas palavras do próprio filósofo francês:

    Eis a hipótese que gostaria de apresentar esta noite, para fixar o lugar – ou talvez o teatro muito provisório – do trabalho que faço: suponho que em toda sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos, que têm por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade (FOUCAULT, 1998, p.

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