O Modelo Social da Deficiência: entre o Político e o Jurídico
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O Modelo Social da Deficiência - Denisson Gonçalvez Chaves
mundo.
1. UMA BREVE HISTÓRIA SOCIAL DA DEFICIÊNCIA
Inicialmente, pretende-se realizar uma análise histórica e não historicista da deficiência. O objeto deste capítulo centra-se na epistemologia da deficiência no ocidente e toma-se como material de estudo não os fatos ou eventos sociais em si, ou, pelo menos, não somente estes, mas sim uma investigação das principais ideias que influenciam até hoje o modo como o homem contemporâneo qualifica a pessoa com deficiência.
Justifica-se esta postura de investigação partindo das ideias aos comportamentos sociais, porque se entende que as disseminações de culturas intelectuais segregadoras foram determinantes para construção de práticas sociais discriminatórias, a exemplo do descaso da filosofia platônica com corpo ou a ideia de corpo-máquina de Descartes, resultando na percepção mecanicista do ser humano.
Assim, primeiro refletir-se-á sobre alguns filósofos que pensaram o corpo e buscar-se-á perceber quais influências sobressaíram sobre o aspecto da deficiência.
1.1 O CORPO COMO REPRESENTAÇÃO: DA FILOSOFIA À POLÍTICA
O corpo como representação simbólica do homem ou como local de experiência do ser, é uma reflexão filosófica atual, ou pelo menos, historiograficamente moderna. Ocorre que desde as sociedades primitivas, isto é, as sociedades anteriores à escrita, o corpo sempre teve lugar importante na relação do sujeito com o mundo; obviamente essas relações tiveram seus significados modificados ao longo do tempo, todavia, persiste mesmo na contemporaneidade, um substrato pejorativo e fatalista sobre o corpo, espólio da história das sociedades ocidentais que prezavam por processos de estigmatização dos sujeitos, onde a representação do corpo era feita por meio de uma leitura moral (bom e mau) e estética (feio e belo) (PALACIOS, 2008; FOUCAULT, 1977; DINIZ, 2007; ANDRADA; 2013).
Não é escopo deste trabalho discorrer de modo prolixo sobre a história do corpo nas sociedades ocidentais, visto que tal abordagem cai facilmente no equívoco de perceber a história como algo evolutivo e linear. É comum do homem considerar que o hoje é sempre o melhor dos tempos, que o passado é obsoleto, arcaico e atrasado e o futuro um paraíso consequencial das razões presentes. Todavia, os eventos históricos e as críticas sérias da ciência, estão aí para mostrarem o contrário, que algumas doenças sociais só mudam de nomenclatura, mas atacam os mesmos corpos (ou as mesmas vítimas). Desse modo, pretende-se inicialmente dissertar sobre a relação entre as ideias e os fatos sociais, e, para tanto, toma-se em conta a relação que determinados argumentos ou teorias filosóficas tiveram para que certos comportamentos sociais sobre o corpo pudessem ser estabelecidos no seio social até o ponto de serem considerados dogmas.¹
Assim, neste primeiro momento objetiva-se antes de tudo demonstrar que algumas teorias filosóficas foram cruciais para determinarem o comportamento e a forma como as pessoas interpretavam e reconheciam o corpo em certo tempo e localidade. Isto porque a Filosofia e as Ciências Políticas são áreas do conhecimento pertinentes à seleção dos questionamentos tidos como importantes para determinada época – trata-se de uma questão epistemológica no sentido lato do termo; assim, é preciso pensar uma filosofia do corpo
e até mesmo uma sociologia do corpo
, isto porque as perguntas não nascem do acaso ou bel prazer dos filósofos, crer nisso é no mínimo uma ingenuidade perigosa, pois condenaria o conhecimento ao solipsismo. Os problemas do pensar e do agir são construídos e com isso se defende que a questão do corpo sempre esteve como matéria central das discussões filosóficas e políticas porque o corpo é sempre aquela parte do ser que estar visível; e por ser visível tende a ser transitório (CANGUILHEM, 1990, p. 40). Nesse sentido, entende-se ser da máxima relevância saber quais as formas clássicas de pensar sobre o corpo
e como essas formas de pensar interferiram no modo como os indivíduos reconhecem as pessoas com deficiência, ou seja, as pessoas com corpos limitados.
Destarte, compreende-se aqui a deficiência como uma forma de experimentar o corpo com limitações e restrições. É importante deixar claro: parte-se de uma visão geral sobre o corpo por que esta é fundamental para entender a deficiência; mesmo as doenças mentais, ditas patologias da alma
ainda assim sofreram e sofrem influência do modo como o homem percebe o corpo nas suas relações de poder. Tais considerações não nascem do nada, existe sempre uma força geradora de pensamentos que amparam preconceitos e interpretações excludentes. Trata-se do poder discursivo, do poder dos argumentos que funcionam como justificadores da práxis social. Não é possível cogitar a deficiência sem antes compreender o corpo como representação simbólica do ser no mundo, prescindir de tal reflexão é considerar o corpo como mero objeto sem história e sem sujeito.
1.2 OS NEGADORES DO CORPO: PLATÃO E DESCARTES
Pode-se afirmar que Platão foi um dos primeiros a pensar o corpo como questão filosófica. Ao lado de seu mestre Sócrates e tomando os ensinamentos deste, considerou o corpo como um tema de relevância para o homem pensar sua existência como ser solipsista e como agente político. Em sua teoria dualista entre corpo e alma, o filósofo já postulava a superioridade da alma em relação ao corpo (PLATÃO, 2004). A alma, desse modo, seria uma ideia perfeita anterior à encarnação
.² O corpo, por sua vez, seria o túmulo da alma; tratando-se, assim, de duas existências distintas.³ O corpo como realidade aparente, transitória e passível da dor e das paixões humanas, sendo, portanto, suscetível à falha e ao erro; e a alma, por sua vez, perfeita, imutável e eterna. Percebe-se que a ideia do perene e eterno
é muito forte em Platão, que remete à imortalidade da alma, fazendo alusão à natureza dos deuses, enquanto o corpo é momentâneo.
No discurso platônico o corpo é reconhecido como uma realidade humana por excelência, porque é multiforme, sensível ao tempo e à dor e marcado pela instabilidade, atributos típicos da existência do homem no mundo. A alma, por outro lado, não é contrária ao corpo, mas superior a ele, isto porque a alma pensa melhor quando não tem nada (...) a perturbá-la; (...) e concentrada em si mesma, dispensa a companhia do corpo
(Fédon). Para Platão: o corpo é a queda da alma⁴. Interessante que para o filósofo grego, mesmo as patologias cognitivas (loucura e outras doenças mentais) não são atribuídas à alma, mas à relação, ou melhor, à contaminação da alma pelas paixões e limitações do corpo, como a luxúria, a insensatez e a ignorância.
Indaga-se: qual a importância do pensamento de Platão sobre o corpo e a alma para uma reflexão crítica sobre a deficiência?
Ocorre que o dualismo platônico foi uma das primeiras teorias a retratar o corpo, visto sua tese da dualidade, ressoando, até os dias atuais, suas consequências mais salutares são: a) o corpo como uma dimensão da existência humana; b) a carga semântica negativa sobre o corpo como receptáculo da dor e da queda do homem.⁵ O primeiro ponto significa dizer que o corpo é um elemento imprescindível do homem. Não se pode abster-se do corpo; mesmo em sua mutabilidade ele é real e o homem deve saber como tratá-lo, cuidá-lo e reconhecê-lo. No que diz respeito à negatividade do corpo como obstáculo da alma, esta mentalidade vai repercutir até o racionalismo cartesiano e a primazia da razão sobre qualquer outra realidade (ANDRADA, 2013). Assim, se o corpo é a obstrução da alma, o que pensar dos corpos deficientes? Para uma reflexão profícua sobre esta questão é importante relembrar a doutrina do orfismo, uma das bases do pensamento socrático platônico:
O Orfismo nasceu provavelmente no século VI A.C., baseado no mito de Orfeu. Sua doutrina elaborou a concepção da origem divina da alma. Era uma concepção marcadamente dualista. O corpo era o cárcere da alma e só a morte a libertava. Por isso propunha a abstenção como norma, desde a alimentar até a sexual, para fins de purificação. Falava sobre reencarnação e natureza da alma, e possuía três ideias-chave: a alma está presa ao corpo para pagar uma culpa originária; as reencarnações servem para sanar essa culpa; a conduta de vida, através de iniciações e ritos, purifica a alma. Assim, o sofrimento não era mais do que uma longa educação da alma
. O sofrimento era purificação. E no mundo inteligível, tanto as punições pelas culpas quanto os prêmios pelos méritos seriam passíveis a qualquer alma, sem distinção (COSTA, 2016, p. 1-2).
A doutrina do orfismo adotada por Platão influenciou de modo preponderante o pensamento ocidental, pois a ideia da pessoa deficiente como aquela acometida do destino trágico, e diz-se trágico relacionado à carga semântica grega, isto é: destino fatal inescapável⁶, é justificada por tal mentalidade. Assim, nesse contexto a pessoa com deficiência é aquela que carrega consigo a culpa originária, culpa esta que é anterior (pecados dos pais ou maldição de família) ou contemporânea (pecado próprio ou carma) a existência do indivíduo. Chaga de sua alma impura. É fatal, arrebatadora e não se pode escapar. Desse modo, o sofrimento sentido pela pessoa com deficiência nada mais é que um processo de educação e purificação da alma
– uma verdadeira catarse: o corpo deficiente era a sentença condenatória e o sofrimento a pena perpétua para alma impura.
É interessante lembrar também que Platão, ao discorrer sobre as possibilidades do retorno da alma ao mundo sensível, não abandonou sua lógica separatista dos puros e impuros. Assim, para o filósofo, aqueles que tiveram uma vida virtuosa e prudente, ao morrerem, isto é, ao libertarem-se do cárcere corpóreo, terão acesso as coisas do mundo inteligível
, à sabedoria maior existente na realidade da Alma; por sua vez, os insensatos estarão condenados a reencarnar em corpos menos honrados. A alegoria platônica, sem dúvida, serviu como fundamento para justificação da discriminação dos deficientes, isto é, daqueles que são punidos pelos deuses por suas vidas passadas menos honradas e cuja punição é consequência. Platão, nesse sentido, não só justificou o sofrimento, como atribuiu a ele um significado moralmente negativo – sentença metafísica destinada àqueles de natureza ruim (SILVA, 1987, p. 45).
Séculos depois, a filosofia platônica teve um adepto especial: Descartes. O pai do racionalismo e um dos fundadores dos princípios básicos da ciência e Filosofia moderna partiu dos mesmos pressupostos de Platão, isto é, da separação entre Alma e Corpo e da inferioridade do corpo com relação à Alma. A relevância de Descartes para toda sua posterioridade é interessante para pensar que o ponto de partida dos questionamentos epistemológicos de pensar a ciência e a filosofia da modernidade tiveram como parâmetros os estudos cartesianos, ou seja, inferências que se despreocupavam com o corpo. Até mesmo a medicina via o corpo como máquina, instrumento da Alma e da razão. É por este motivo que o filósofo francês afirma: Ora, o primeiro e principal requisito que previamente se exige para o conhecimento da imortalidade da alma é que dela nos formemos um conceito, o mais claro possível e que seja completamente distinto de todo conceito do corpo
(DESCARTES, 2004, p. 37).
Como anteriormente mencionado, Descartes não toma de Platão tão somente a separação entre corpo e alma, mas também a negação do corpo. Porém, o filósofo francês não vê a decadência do corpo por ser prisão da alma, mas por aproximar o homem do sofrimento e das paixões. O corpo é sensível ao mundo, é a parte primeira da existência a entrar em contato com as ressonâncias da realidade, é através do corpo que se sente dor e sofrimento. Nesse sentido, negar o corpo é também negar a parte obscura da realidade humana: o sofrimento das sensações (dor, morte, perecimento e acidentes).⁷ Mas, tais características também denotam a ideia de movimento e do transitório, nesse ponto o corpo é fraco porque se permite mudar ou ser transformado a qualquer tempo:
Pois, embora todos os seus acidentes se modifiquem – ela entende umas coisas, quer outras, sente outras etc. –, nem por isso a própria mente torna-se outra. Ao passo que o corpo humano se torna outro, em virtude apenas de que se modifique a figura de qualquer uma de suas partes. Disto se segue que tal corpo morre muito facilmente, enquanto a mente ou a alma do homem (o que não distingo) é imortal por sua natureza (DESCARTES, 2004, p. 39).
A mortalidade e decadência ligadas à noção de corpo são preconcepções que imbuíram este de uma inferioridade natural
. De Platão a Descartes, salvo algumas poucas exceções, o corpo é percebido como parte menos digna do ser humano, seja por não ser perene, seja porque o homem via no corpo suas próprias chagas e limitações. Não se pode negar que a supremacia do espírito e da Alma se tratava deveras de um idealismo da razão. É por este motivo que em críticas posteriores serão denominados de negadores do corpo
, uma vez que repudiavam sua consideração. Como resultado do processo de negação do corpo, este foi interpretado apenas como conceito, dentro de abstrações linguísticas que fugiam a qualquer tipo de fenomenologia. Houve uma aculturação ou separação do corpo da história e da política. Nesse ponto, destaca Novaes:
Se lembrarmos da tradição do humanismo ocidental, somos obrigados a pensar o corpo como o elemento menos nobre de uma série de pares: corpo-alma, corpo-espírito, corpo-mente, corpo-razão. Nesses pares, ele ocupava o lugar da natureza em oposição ao da cultura; o local do primitivo em oposição ao do civilizado; o lado animal e instintivo em oposição ao racional ou humano. Para que tais dicotomias funcionassem
era preciso tomar seus polos como exteriores um ao outro, como independentes e incontaminados. O corpo, nesta lógica tradicional, não poderia ser pensado como instância da cultura ou como esfera da política (NOVAES, 2012, p. 7).
Esse esquecimento do corpo significa dizer que ele é algo não político
. Estar no centro dos debates políticos, isto é, na discussão acerca dos interesses que podem ser qualificados como de interesse geral ou da coletividade é fundamental para o amadurecimento e para construção de práticas sobre o objeto das questões politizadas (BARTON, 1998). Toma-se como exemplo as questões como família, sobre o estrangeiro, a propriedade privada, dentre outros. O corpo não fazia parte desse rol de coisas dignas de serem consideradas políticas e, por não ser questão de debate, foi submisso ao poder das coisas do espírito
(FOUCAULT, 2008). A despolitização do corpo se deve em grande parte a essa primeira concepção dos negadores do corpo
, que com o argumento da inferioridade em relação à Alma sempre esteve relegada a discussões periféricas, nada comparadas as construções abstratas como Estado, Democracia, Religião. Como lembra sabiamente Pierre Bourdieu a ausência é uma das piores formas de opressão
(BOURDIEU, 2008, p. 212).
1.3 NIETZSCHE: REASSUMINDO O CORPO COMO LINGUAGEM
Os negadores do corpo
encontraram uma forte oposição em Nietzsche, que foi um dos primeiros a contrariar o pensamento de Descartes, fundamentado no dualismo grego de corpo e alma. Sua crítica primeiramente parte de uma análise filológica sobre o corpo, onde o autor faz apontamentos à postura do racionalismo cartesiano, considerado por ele ingênuo
. E as altercações não se dirigem somente a Descartes, mas a toda uma gama de teóricos modernos, especificamente no que diz respeito àqueles que trataram a semiologia dos termos sobre o corpo pelo mesmo ponto de partida de Platão: a negação do corpo. Para Nietzsche, as definições são as verdadeiras prisões do sentido; limitações semânticas. É nesse sentido que afirma em Genealogia da Moral (1998, p. 13): todos os conceitos, nos quais coligem semioticamente um processo inteiro, esquivam-se defini-lo: definível é somente aquilo que não tem história
.
Nietzsche chama a atenção para a ditadura das definições sobre o corpo. Ele não busca uma conceituação, mas questiona o processo de escolha dentre as definições disponíveis
, pensando o porquê de determinadas definições serem preteridas em relações a outras. O filósofo alemão convida a uma autorreflexão das escolhas simbólicas dos termos em sua guerra teórica contra aqueles que denomina de idólatras dos conceitos
. É importante compreender que a crítica de Nietzsche não é somente semiológica, é antes de tudo uma alteração no modo de compreender o mundo governado por fundamentações metafísicas. A doutrina cartesiana se baseava em um pressuposto metafísico, isto é para além do real. Sua ontologia estava na abstratividade do espírito puro
, por isso o filósofo qualifica este procedimento de des-historicizador (NIETZSCHE, 1998).
Assim, uma das consequências que Nietzsche apontou como decorrentes do esquecimento do corpo é que comportamentos cotidianos do tratamento do corpo como alimentação, ambiente de vivência, clima e bem-estar físico, são colocados em segundo plano, assim como o próprio trabalho ou as condições de trabalho. O mais importante era buscar o aprimoramento da alma e do espírito. Não é de se surpreender que os trabalhos manuais, para os dicotômicos do corpo-alma – isto em Sócrates, Platão e Descartes – são antes de tudo uma condenação à labuta. Uma segunda consideração de Nietzsche é a ideia de multiplicidade e fluxo contínuo do corpo. Este é sempre contínuo como a vida o é, destarte, o corpo surge como uma representação do homem no mundo: múltiplo, diverso e volátil, sujeito às alterações da natureza e da sociedade. Percebe-se que o autor alemão afirma que o corpo é um eixo de ligação do homem com o mundo, questão que os idealistas metafísicos lutaram tanto tempo para separar. Pensar o corpo é pensar o mundo porque se trata de pensar as coisas como matéria e realidade, não como abstrações ideais.
1.4 MICHEL FOUCAULT: A POLITIZAÇÃO E DISCIPLINA DO CORPO
A crítica de Nietzsche foi salutar para uma quebra de paradigmas sustentados pela sociedade burguesa do século XVIII e meados do século XIX, em especial, a equivocada noção da intrínseca inferioridade do corpo em relação ao espírito.
Pode-se afirmar que duas premissas foram lançadas com as reflexões do alemão sobre a temática do corpo:
a) o corpo, assim como todas as coisas que pertencem à realidade humana, é uma forma de expressão linguística. Tal conhecimento é importante no momento em que se contrapõe a tese do corpo como algum dado natural e imutável. Visto que Nietzsche defende que o corpo é construído pela linguagem e o que se conhece sobre o corpo não é sobre ele em si, mas sobre a definição que a ele se atribui em diferentes locais e espaços;
b) o corpo sempre fora visto como local de experiência do poder, exercido pelas mais distintas instituições: família, igreja, Estado, religião, medicina e outras ciências. Desse modo, as conjeturas dos saberes modernos, como a filosofia, sociologia, medicina, política, religião etc, apropriaram-se de modo monopolístico da competência de definir o que é o corpo, exercendo sobre ele total controle epistêmico.
Essas premissas foram salutares para os estudos do filósofo e historiador francês Michel Foucault, que também abordou a temática sobre o corpo em seus escritos. Porém, existe um ineditismo nos estudos de Foucault: trata-se da abordagem do poder sobre o corpo (ou corpos), que acabou resultando em sua construção terminológica do biopoder. Foucault toma para si as premissas de Nietzsche e critica os negadores do corpo e seu dualismo psicofísico, adotando a abordagem monista entre corpo/consciência (RODRIGUES, 2003, p. 110). Assim, para ele, corpo e sujeito estão na mesma esfera de conhecimento, não sendo possível dissociá-los. Este pressuposto é importante porque quando Foucault trabalha a questão do poder e dos saberes ele conclui que não há como escapar ao poder, tendo em vista que ele produz aquilo que se conhece (FOUCAULT, 2008).
No que diz respeito ao corpo e à deficiência, três pontos são importantes nas obras de Foucault: o discurso; os saberes; e o poder disciplinar. São temas que se relacionam e questionam o processo de controle sobre os indivíduos, através do exercício do poder. Não somente, ou especificamente, o poder físico ou a força, mas o poder epistêmico
, ou seja, o domínio sobre a capacidade de construir justificativas para relações sociais controladoras que servem a interesses de grupos sociais diversos.
Quando Foucault trabalha a temática da deficiência mental (História da Loucura, 1961, e O nascimento da clínica, 1963), deixa claro que a identificação da deficiência mental é realizada através de um procedimento precipuamente discursivo; o louco é aquele que tem um discurso dissonante: o incompreensível às pessoas consideradas normais. Logo, o ponto fundamental no estudo da deficiência não está em categorizar e/ou classificar os deficientes dos não deficientes, mas saber qual a medida da definição da deficiência, como essa medida foi posta, por quem foi posta e por que se mantém.
Nesse sentido, o autor francês defende que existe um exercício do poder que se manifesta na produção, justificação e manutenção do discurso. Trata-se da ordem do discurso
⁸ que relaciona uma arqueologia do saber
para uma genealogia do poder
. Nas palavras do próprio filósofo francês:
Eis a hipótese que gostaria de apresentar esta noite, para fixar o lugar – ou talvez o teatro muito provisório – do trabalho que faço: suponho que em toda sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos, que têm por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade (FOUCAULT, 1998, p.