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Direitos Fundamentais em Xeque: perspectivas críticas da realidade brasileira
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E-book639 páginas7 horas

Direitos Fundamentais em Xeque: perspectivas críticas da realidade brasileira

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Sobre este e-book

Vivemos tempos difíceis, em uma sociedade complexa e permeada por problemas exponenciais agravados pelo advento da pandemia da Covid-19. No Brasil, observamos um aprofundamento das desigualdades econômicas, sociais, de gênero, de raça e de acesso aos bens socialmente produzidos. É uma época que exige coerência, determinação e luta para não permitir que o negacionismo, o obscurantismo e as ideias retrógradas avancem contra os direitos e as garantias tão duramente conquistados.
A partir de diferentes abordagens, o livro pretende contribuir com os debates, os estudos e as reflexões a respeito das dificuldades vivenciadas em um momento de excepcionalidade causado pela grave crise pandêmica e que demanda a reorganização das formas de vida e o enfrentamento das ameaças aos direitos humanos e fundamentais.
Nesse sentido, o objetivo da publicação é tratar do momento atual sobretudo sob o enfoque da precariedade na efetivação dos direitos humanos, abarcando a crise dos direitos à vida e à saúde e da democracia, a partir de 3 (três) eixos temáticos. O livro é composto por 16 (dezesseis) artigos e está organizado em 3 (três) partes. A primeira reúne textos que abordam as fragilidades do Estado no enfrentamento da Covid-19, levantando reflexões sobre o direito à saúde e a gestão governamental na pandemia. A segunda parte é composta por artigos que tratam da crise democrática no Brasil e dos direitos de cidadania. E a terceira apresenta os artigos relacionados à baixa efetividade dos direitos humanos em relação aos grupos vulneráveis.
Esta obra é fruto do esforço de 4 (quatro) Grupos de Pesquisa que se reuniram para refletir sobre os desafios da atualidade, são eles: GEP-DIFUSA (Grupo de Estudo e Pesquisa em Direitos Fundamentais Socioambientais), DIP (Grupo de Pesquisa em Direito Internacional Público, Direitos Humanos e Filosofia do Direito), GEPEPP (Grupo de Estudo e Pesquisa em Estado e Políticas Públicas) e Grupo de Pesquisa em Patentes e Transferência de Tecnologias.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento15 de set. de 2021
ISBN9786525208688
Direitos Fundamentais em Xeque: perspectivas críticas da realidade brasileira

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    Direitos Fundamentais em Xeque - Edwiges C. Carvalho Corrêa

    PARTE 1- Fragilidades do Estado no Enfrentamento da Covid-19

    Ao empregá-los [os recursos logísticos] em uma batalha, uma vitória que demora a se consumar embotará suas armas e consumirá seu ardor. Se expuserem o exército a uma campanha prolongada, os recursos do estado serão insuficientes.

    A ARTE DA GUERRA - SUN TZU

    Federalismo, Competência Concorrente e o Enfrentamento do Novo Coronavírus (covid-19): As respostas do STF na ADI Nº 6.341/DF, ADI Nº 6.343/DF E ADPF Nº 672/DF

    EDUARDO HENRIQUE LOLLI¹

    FABRÍCIO MOTTA²

    RESUMO: No Brasil, o federalismo assumiu diferentes formas ao longo de sua história, desde um modelo mais centralizador de competências no ente central (União) até a consagração de um modelo cooperativo a partir da Constituição da República de 1988. Com a ascensão do Presidente Jair Bolsonaro em 2019, o federalismo brasileiro ganha novamente contornos autoritários que tendem à centralização, inclusive no que tange à definição de atividades essenciais para fins de restrição das atividades econômicas e sociais para conter o avanço do novo coronavírus (COVID-19). Assim, surge como relevante problema objeto de investigação a crise federativa claramente revelada entre o Presidente da República, assumidamente contra as medidas de isolamento social e de restrição a atividades econômicas e sociais, de um lado, e prefeitos e governadores, que começaram a adotar referidas medidas, de outro. Com o objetivo de avaliar a resposta do Supremo Tribunal Federal (STF) a essa crise, procedeu-se à análise de suas decisões, proferidas em sede de medida cautelar e por ocasião do respectivo referendo, na ADI nº 6.341/DF, na ADI nº 6.343/DF e na ADPF nº 672/DF; a metodologia empregada, por conseguinte, consistiu em revisão bibliográfica e análise documental. Como principal resultado dessa análise, constatou-se que a resposta dada pelo STF no âmbito daquelas ações, embora tenham sido importantes para assegurar a autonomia de Estados-membros e Municípios para adotarem medidas de proteção à saúde pública, não estabeleceu critérios claros para resolução dos conflitos federativos no enfrentamento da pandemia, notadamente entre esses entes subnacionais.

    PALAVRAS-CHAVE: Federalismo. Competências administrativas. Novo coronavírus (COVID-19). Atividades essenciais.

    INTRODUÇÃO

    O FEDERALISMO BRASILEIRO assumiu variadas formas de acordo com os diversos momentos históricos e circunstâncias políticas que marcaram o país. Com a promulgação da Constituição da República de 1988 (CRFB), o federalismo – embora ainda concentrando inúmeras competências na União – assumiu também feição cooperativa, notadamente em razão do extenso leque de competências comuns (administrativas) e concorrentes (legislativas) entre os diferentes entes federados (arts. 23 e 24), além da competência dos Municípios (art. 30).³

    Em matéria de saúde pública, a estruturação cooperativa também fica evidente por força dos arts. 196 e seguintes da CRFB, que desenham um modelo de cooperação no qual os diferentes entes federados devem discutir e definir em conjunto, num espaço plural de diálogo e interlocução federativa, as atribuições que caberão a cada um na execução das políticas públicas de saúde, como revela a estrutura descentralizada do Sistema Único de Saúde (SUS), regulamentado na Lei nº 8.080/1990 e também em extensa normatização infralegal.

    Porém, a pandemia do novo coronavírus (COVID-19) tem colocado à prova o sistema federativo brasileiro, na medida em que tem demandado ações sinérgicas e coordenadas entre todos os entes federados, desde a União até os Municípios, com vistas à proteção da saúde pública e da amenização dos efeitos econômicos e sociais decorrentes da crise.

    Não obstante, é indene de dúvidas que desde o início da pandemia o Presidente da República Jair Bolsonaro adotou postura de confronto tanto com a Organização Mundial da Saúde (OMS) como em relação a governadores e prefeitos que aderiram às recomendações da OMS, em especial no tocante às medidas de isolamento social, uso de máscaras de proteção e restrição ao funcionamento das atividades econômicas e sociais. Assim, evidencia-se como problema objeto de investigação esse quadro de grave crise federativa e a necessidade urgente de sua superação por meio de uma resposta constitucionalmente adequada a esse conflito.

    Nesse contexto, o Supremo Tribunal Federal (STF) foi instado a se pronunciar em 3 (três) ações de controle concentrado de constitucionalidade, a saber, as Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADI’s) nºs 6.341/DF e 6.343/DF, bem como a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 672/DF, nas quais restou reconhecida, em síntese, a competência concorrente de Estados e Municípios para definirem medidas e políticas públicas de enfrentamento à pandemia, com base em dados científicos e de forma coordenada com os demais entes da federação.

    Assim, diferentemente da maioria dos trabalhos publicados sobre conflitos federativos no contexto da COVID-19, este artigo se propõe a analisar criticamente o conteúdo das decisões monocráticas e de referendo das medidas cautelares proferidas pelo STF nas mencionadas ações no primeiro semestre de 2020, e também, num segundo momento, o conteúdo dos acórdãos lavrados no final do segundo semestre de 2020 para as mesmas ações, com o objetivo de identificar quais os critérios que a Corte estabeleceu para resolução de conflitos federativos no enfrentamento da pandemia e se as respostas oferecidas foram suficientes para resolvê-los. A metodologia empregada, por conseguinte, consiste em revisão bibliográfica sobre o tema e análise documental do inteiro teor dessas decisões e acórdãos.

    No primeiro capítulo, faz-se breve escorço histórico sobre o federalismo no Brasil e os contornos atuais da repartição de competências federativas em matéria de saúde, em especial as competências comum e concorrente, previstas respectivamente nos arts. 23 e 24 da CRFB; no segundo, descrevem-se os principais fatores políticos e jurídicos que ensejaram a crise federativa; no terceiro, analisam-se os pronunciamentos do STF no âmbito das ações judiciais de controle abstrato de constitucionalidade supramencionadas – inicialmente daqueles publicados no primeiro semestre de 2020 e, em seguida, dos acórdãos publicados no segundo semestre de 2020 – e os critérios jurídicos citados pela Corte para superar mencionada crise.

    Por fim, importante destacar que, embora os conflitos federativos tenham recebido maior cobertura midiática no início da pandemia em 2020, a presente discussão permanece em 2021 ainda mais atual e pertinente, tendo em vista a imposição de novas medidas restritivas por diversos entes federados subnacionais, principalmente ante a circulação de novas cepas do vírus, mais contagiosas e letais; o cenário extremamente incipiente de imunização no país; a manutenção da postura do Presidente da República em negar a necessidade de medidas de isolamento social; e, por fim, a adoção, por vezes, de medidas díspares e contraditórias entre governadores e prefeitos sobre o funcionamento de serviços públicos e atividades privadas.

    1. FEDERALISMO COOPERATIVO E REPARTIÇÃO DE COMPETÊNCIAS CONSTITUCIONAIS

    O federalismo constitui forma de organização do Estado, que busca formatar um ponto de equilíbrio à dicotomia centralização versus descentralização do poder político (DALLARI, DOURADO e ELIAS, 2012), cujos extremos conduzem à configuração de Estados unitários, de um lado, e Estados confederados, de outro, nos quais vigoram, respectivamente, uma lógica piramidal na qual não há qualquer espaço de autonomia aos entes subnacionais (ou em que essa autonomia se apresenta extremamente diminuta); ou, no segundo caso, em que os entes confederados ainda mantém sua soberania e se reúnem mais como uma entidade de Direito Internacional⁴.

    Porém, não há um sentido unívoco para o federalismo⁵, visto que o só fato de determinado Estado proclamar formalmente aquela forma de organização não revela o sentido nem o alcance do modelo federal. Em outras palavras, sua configuração depende do tempo e do espaço no qual se encontra inserido e do desenho constitucional; embora o federalismo se entrelace aos símbolos de autonomia e liberdade aos entes subnacionais, isso por si só não esclarece que tipo de divisão interna deve existir e quem decide o que e como nesta divisão interna (BITENCOURT e RECK, 2012, p. 158).

    No Brasil, tendo em vista a tradição centralizadora herdada do modelo político português, desde sua primeira Constituição (a Imperial), de 1824, predominou uma experiência de concentração do poder no ente central; e, mesmo após a primeira Constituição republicana, de 1891, ter adotado expressamente o regime federalista, na prática este se revelava ainda mais formal que real. Constitui dado notório da história do Brasil que a adoção formal – frise-se o formal – da federação acompanhou o movimento da proclamação da República (ALMEIDA, 2011; BASTOS e MARTINS, 1992, p. 8).

    Após a proclamação da República (15/11/1889), não tardou muito para haver forte tendência centralizadora, notadamente nos períodos da Era Vargas (1930-1945) e do Governo Militar (1964-1985), os quais juntos totalizaram cerca de 35 (trinta e cinco) anos, que correspondem a aproximadamente um terço de todo o período republicano, durante o qual a previsão da forma federativa de Estado foi meramente nominal⁶ (ALMEIDA, 2011); e mesmo nos demais períodos republicanos em que não vigeu um regime autoritário, a autonomia de Estados e Municípios se revelou tímida (ABRUCIO, FRANZESE e SANO, 2013).

    Pode-se afirmar, assim, que no momento de crise do regime militar, em especial ao final da década de 1970, começa a se formar um espírito federalista composto pelo trinômio democratização, descentralização e busca pela universalização das políticas sociais, o qual estaria na alma da Constituição da República de 1988 (CRFB), aliado ao ingresso dos Municípios como ente federado por disposição constitucional expressa.

    Essa posição privilegiada recém-assumida pelo Município, como membro da federação, constituiu fato de extrema relevância no constitucionalismo brasileiro, e não só no Brasil: talvez em nenhum país da América a importância municipal tenha sido tão acentuada quanto no Brasil (BASTOS e MARTINS, 1992, p. 8).

    Assim, o federalismo brasileiro vem expressamente adotado como forma de Estado, conforme se infere do caput tanto do art. 1º como do art. 18 da CRFB, segundo os quais, em suma, a República Federativa do Brasil se constitui pela união indissolúvel da União, como ente central, e dos Estados, Distrito Federal e Municípios, como entes subnacionais, todos autônomos, nos termos constitucionalmente delimitados (SILVA, 2010).

    Importante registrar que, no modelo de federalismo brasileiro, a CRFB utilizou um critério bivalente de repartição de competências entre os entes subnacionais, devido à distribuição destas tanto no plano horizontal como no vertical. Assim, A experiência constitucional alemã procurou combinar as competências enumeradas e remanescentes, da técnica horizontal de repartição de competências, com competências concorrentes e comuns, próprias da distribuição vertical [...] (CAMBI, 2000, p. 248-249). Pode-se apresentar a seguinte visão panorâmica acerca desse plexo de competências na CRFB:

    O sistema de repartição de competências entre as entidades da Federação Brasileira é bastante complexo. A constituição de 1988 busca realizar o equilíbrio federativo por meio de uma repartição de competências que se fundamenta na técnica da enumeração dos poderes da União (arts. 21 e 22), com poderes remanescentes para os Estados (art. 25, § 1º) e poderes definidos indicativamente para os Municípios (arts. 29 e 30), mas combina, com essa reserva de campos específicos, áreas comuns em que se prevêem atuações paralelas da União, Estados, Distrito Federal e Municípios (art. 23), e setores concorrentes entre União e Estados e até aos Municípios a competência suplementar (arts. 24 e 30). (SILVA, 2010, p. 72)

    Importa considerar um pouco mais detidamente, para o específico recorte deste estudo, a denominada técnica vertical de repartição de competências, revelada pela competência material comum dos entes federados (art. 23) e competência legislativa concorrente, dividida entre União, Estados e Distrito Federal (art. 24).

    A primeira categoria é a de competência material (ou administrativa) comum a todos os entes federados (art. 23) – um dos principais traços do federalismo cooperativo adotado pela CRFB (ABRUCIO, FRANZESE e SANO, 2013) – a qual se distingue das competências legislativas (em especial daquelas de natureza concorrente, previstas no art. 24⁷), porquanto se traduz na prestação de serviços, atividades ou no exercício do poder de polícia pelos diferentes entes federados, e não na edição de leis em sentido estrito.

    Desse modo, em todas as hipóteses arroladas no art. 23 da CRFB o interesse superior da nação fortalece o Federalismo, permitindo a ação conjugada ou separada de cada um dos entes para consecução de um objetivo comum sobre matérias em que prevalece o aspecto social e cultural (BASTOS e MARTINS, 1992, p. 376).

    Sobre as competências materiais comuns, podem-se destacar, em síntese, como suas principais características (LOPES FILHO, 2012): a) compreendem atividades de cunho eminentemente administrativo; b) embora recomendável, não precisam ser executadas obrigatoriamente de maneira simultânea e coordenada pelos três níveis federativos⁸; c) são deveres que não podem ser renunciados por um ente federativo em favor de outro; d) essas competências não podem ser tomadas por um ente federativo em prejuízo dos demais.

    E a saúde consiste justamente numa das áreas em que a atuação administrativa comum dos entes federados se estabelece (art. 23, II). Ainda, cuidar da saúde pertence à vocação maior do Estado e constitui, no elenco das finalidades a que o Estado está destinado a dedicar-se, talvez, a mais relevante e que mereça atenção maior (BASTOS e MARTINS, 1992, p. 382-383). No âmbito da saúde, a disciplina jurídica em matéria de competências materiais comuns não se esgota na previsão do art. 23, II, da CRFB, mas se estende por diversos outros dispositivos constitucionais, como os arts. 196 a 200, os quais aludem, direta ou indiretamente, à atuação de todos os entes federados nessa matéria. Merece destaque previsão constitucional de que as ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, observada a descentralização, com direção única em cada esfera de governo (CRFB, art. 198, I); nesse sentido, a regulamentação do SUS prevista na Lei nº 8.080/1990 e em extensa normatização infralegal.

    De outro lado, a competência legislativa concorrente, prevista no art. 24 da CRFB, pode ser compreendida a partir de 2 (duas) premissas elementares, de acordo com José Afonso da Silva (2008): a) possibilidade de disposição sobre o mesmo assunto ou matéria por mais de uma entidade federativa, mediante lei em sentido estrito⁹; b) primazia da União no que tange à fixação de normas gerais (art. 24 e seus parágrafos). Ainda, podem-se mencionar também 2 (duas) técnicas para disciplinar a competência legislativa concorrente, consoante Tércio Sampaio Ferraz Junior (1995), parafraseando Manoel Gonçalves Ferreira Filho:

    a) não-cumulativa, cujo principal traço consiste na existência de limites legislativos prévios, de forma que a edição de normas gerais fica a cargo da União e a competência suplementar aos Estados e ao Distrito Federal (CRFB, art. 24, §§ 1º e 2º), hipótese na qual as legislações estaduais e distrital sobre as matérias enumeradas no art. 24 devem estar em sintonia com a legislação nacional¹⁰; e

    b) cumulativa, caracterizada pela inexistência daqueles limites legislativos prévios pela União (CRFB, art. 24, §§ 3 e 4º), o que assegura aos Estados e ao Distrito Federal a competência plena para cumularem a competência tanto para edição de normas gerais como de normas específicas que atendam a seus interesses nas matérias sujeitas a essa disciplina, até que norma geral da União disponha de forma diversa.

    Ainda, registre-se que, embora os Municípios não estejam expressamente inseridos no caput do art. 24 da CRFB, estes possuem competência constitucional explícita para legislar sobre assuntos de interesse local e também suplementar a legislação federal e a estadual no que couber, de acordo com os incisos I e II do art. 30.

    Diversa tem sido a produção doutrinária acerca de critérios para resolução de conflitos federativos em sede de legislação concorrente. O mais conhecido é o critério da predominância do interesse, segundo o qual à União caberão aquelas matéria e questões de predominante interesse geral, nacional, ao passo que aos Estados tocarão as matérias e assuntos de interesse local (SILVA, 2008, p. 478). Embora tenha sua utilidade teórica, no Estado moderno, se torna cada vez mais problemático discernir o que é interesse geral ou nacional do que seja interesse regional ou local (SILVA, 2008, p. 478).

    Em matéria ambiental, outro critério que se defende é o princípio da precaução, que corresponde à essência do direito ambiental, tratando-se de um zelo contra os riscos (CORDEIRO e FEITOZA, 2016, p. 120), com o objetivo de elidir a probabilidade de um evento danoso até que se tenha uma margem de segurança de que o perigo está afastado, de modo a se antecipar ao perigo incerto. A ideia básica é a de impedir atividade que acarreta potenciais riscos graves ao meio ambiente, ainda que num contexto de incerteza científica.

    O plenário do STF, ainda que em obter dictum, já aplicou esse princípio para resolução de conflitos federativos, ao declarar a inconstitucionalidade de leis ou atos normativos estaduais que flexibilizem o nível de proteção ao meio ambiente conferido por norma federal, em matérias como áreas de preservação ambiental e licenciamento ambiental (ADI nº 4.988/TO, Relator Min. Alexandre de Moraes, STF, 2018; ADI nº 6.288/CE, Relatora Min. Rosa Weber, STF, 2020).

    Assim, entende-se que a adoção do Federalismo como forma jurídica da organização política não exime o Direito de ter de decidir o tempo todo por suas opções e justificá-las racional e comunicativamente, ao contrário do que pretende fazer crer boa parte da doutrina e jurisprudência brasileira, muito mais preocupada em defender uma posição ingênua de que a solução para problemas relacionados com repartição de competência, aplicação da subsidiariedade, preponderâncias de interesses, dentre outros, podem ser extraídos de mera interpretação do texto constitucional (BITENCOURT e RECK, 2012, p. 173).

    Portanto, em razão do longo histórico pendular de nosso federalismo (ora mais centralizado, ora mais descentralizado), e da ausência de critérios apriorísticos definidos no texto constitucional para definir quem é competente para fazer exatamente o quê, é que surge com especial relevância o dever de motivação, em especial do STF, acerca dos critérios que o levam a decidir num ou noutro sentido em matéria de conflitos federativos no país.

    2. O NOVO CORONAVÍRUS (COVID-19) E A CRISE FEDERATIVA

    No contexto do alerta da OMS de que a COVID-19 constituía Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional e, posteriormente (em 11/03/2020), reconhecido como pandemia de modo oficial, diversas medidas foram adotadas por praticamente todos os países. No Brasil, as primeiras respostas jurídico-políticas à pandemia da COVID-19 ocorrem com a publicação dos seguintes atos administrativos e legislativos:

    a) Portaria nº 188, de 03/02/2020, da lavra do então Ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta, que declara Emergência em Saúde Pública de importância Nacional (ESPIN) em decorrência da Infecção Humana pelo novo Coronavírus (2019-nCoV);

    b) Lei nº 13.979, de 06/02/2020, que dispõe sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019, resultado da aprovação do projeto de lei (PL) nº 23/2020 de autoria do Presidente da República¹¹;

    c) Portaria nº 356, de 11/03/2020, ainda subscrita pelo então Ministro Luiz Henrique Mandetta, a qual dispõe sobre a regulamentação e operacionalização do disposto na Lei nº 13.979/2020;

    d) o Decreto Legislativo nº 06, de 20/03/2020, que reconhece, para os fins do art. 65 da Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000 (Lei de Responsabilidade Fiscal – LRF), a ocorrência do estado de calamidade pública, nos termos da solicitação do Presidente da República encaminhada por meio da Mensagem nº 93, de 18/03/2020.

    A partir de então, uma extensa legislação começa a ser produzida, não só em âmbito federal, mas também nos Estados, no Distrito Federal e nos Municípios, com medidas para prevenção e combate à COVID-19.

    A Lei nº 13.979/2020 previa, na redação original de seu art. 3º, que para enfrentamento da ESPIN da COVID-19 poderiam ser adotadas, entre outras, as seguintes medidas: a) isolamento¹²; b) quarentena¹³; c) determinação de realização compulsória de exames médicos, testes laboratoriais, coleta de amostras clínicas, vacinação e outras medidas profiláticas ou tratamentos médicos específicos; d) estudo ou investigação epidemiológica; e) exumação, necropsia, cremação e manejo de cadáver; f) restrição excepcional e temporária de entrada e saída do País, conforme recomendação técnica e fundamentada da Anvisa, por rodovias, portos ou aeroportos¹⁴; g) requisição de bens e serviços de pessoas naturais e jurídicas, hipótese em que será garantido o pagamento posterior de indenização justa; h) autorização excepcional e temporária para a importação de produtos sujeitos à vigilância sanitária sem registro na Anvisa, desde que observadas as condições legalmente previstas¹⁵. Posteriormente, incluiu-se também o uso obrigatório de máscaras de proteção individual (inciso III-A do art. 3º; inserido pela Lei nº 14.019/2020).

    Tendo em vista a restrição a direitos fundamentais que essas medidas implicam, o § 1º do art. 3º da Lei nº 13.979/2020 prevê que só poderão ser determinadas com base em evidências científicas e em análises sobre as informações estratégicas em saúde e deverão ser limitadas no tempo e no espaço ao mínimo indispensável à promoção e à preservação da saúde pública.

    Contudo, o que se vivenciou na prática é que a União – a quem caberia precipuamente a tarefa de coordenar meios e ações de enfrentamento da pandemia – manteve-se inerte ou com atuação insuficiente, devido principalmente à hesitação do Presidente da República em determinar medidas recomendadas pela OMS como isolamento social amplo, quarentena, uso de máscaras de proteção individual e restrição temporária ao funcionamento de atividades econômicas.

    Sandra Caponi (2020) destaca 3 (três) grandes linhas de atuação da Presidência que, embora já antecedessem à pandemia, agravaram-se no contexto da crise sanitária provocada pela COVID-19, a saber, o negacionismo científico, o menosprezo aos direitos humanos e estratégias biopolíticas vinculadas à razão neoliberal.

    Aliado a isso, mesmo antes da pandemia, já estava em curso um federalismo bolsonarista que, em oposição ao modelo de federalismo cooperativo previsto na CRFB, assenta-se no tripé constituído por uma divisão rígida de funções entre os níveis de governo; concentração autocrática, na União, de decisões que afetam entes subnacionais; e, por fim, confronto intergovernamental e luta constante contra adversários reais ou imaginados, marcado por intensa polarização político-ideológica (ABRUCIO et al., 2020). Essa concepção distorcida de federalismo se intensifica sobremaneira durante a atual crise sanitária¹⁶.

    A ausência de uma atuação forte da União, como exige o federalismo cooperativo em matéria de saúde, notadamente em tempos de pandemia, acabou gerando uma série de medidas isoladas por diversos prefeitos e governadores na tentativa de achatar a curva de número de infectados em seus respectivos territórios. A esse cenário de protagonismo dos entes subnacionais, o Presidente da República responde com a publicação da Medida Provisória (MP) nº 926, de 20/03/2020, que faz diversas alterações¹⁷ no art. 3º da Lei nº 13.979/2020, principalmente a:

    a) modificação do inciso VI do art. 3º, de modo a exigir, também para restrições à locomoção interestadual e intermunicipal, recomendação técnica e fundamentada da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), exigência aplicável também a Estados e Municípios se determinassem essas restrições;

    b) inclusão dos §§ 8º e 9º, segundo os quais as medidas restritivas excepcionais previstas naquele artigo – e já mencionadas anteriormente – deverão resguardar o abastecimento de produtos e o exercício e o funcionamento de serviços públicos e atividades essenciais, previstos em decreto do Presidente da República.

    No mesmo dia, publicou-se o Decreto nº 10.282/2020, cuja pretensão era de se aplicar às pessoas jurídicas de direito público interno, federal, estadual, distrital e municipal, e aos entes privados e às pessoas naturais (art. 2º). Ainda, seu art. 3º, § 1º, previu extenso rol de 35 (trinta e cinco) incisos que arrolam serviços públicos e atividades essenciais, sobre os quais, em tese, não poderia recair eventual paralização. Esse rol ainda foi rapidamente ampliado (e parcialmente também alterado) ao longo de 2020, por força dos Decretos nºs 10.292, 10.329, 10.342, 10.344, de modo que, até a publicação desse último decreto (nº 10.344, em 11/05/2020), já havia a previsão de 57 (cinquenta e sete) serviços e atividades essenciais, inclusive salões de beleza e barbearias, academias de esporte de todas as modalidades (art. 3º, LVI e LVII).

    Tratou-se de nova tentativa de centralizar os poderes nas mãos do Presidente da República, com o intuito de impor sua visão de mundo neoliberal no combate à pandemia, em contraposição aos decretos de governadores e prefeitos, que em geral traziam rol de serviços públicos e atividades essenciais menor e outras disposições de caráter mais restritivo¹⁸ às atividades econômicas em relação ao decreto federal.

    Desse modo, o conflito federativo no enfrentamento da pandemia da COVID-19 assume gravidade ímpar, tendo em vista a manifesta discrepância entre as ações dos governos subnacionais e a do governo central e o contexto de enfrentamento mútuo, em especial por iniciativa do Presidente da República.

    3. O STF E AS AÇÕES DE CONTROLE CONCENTRADO DE CONSTITUCIONALIADE SOBRE CONFLITO FEDERATIVO NA PANDEMIA DA COVID-19: BREVE PANORAMA

    Tendo em vista o acirramento dessa crise federativa logo nos primeiros meses da COVID-19 no Brasil, partidos políticos e o Conselho Federal da OAB (CFOAB) ajuizaram, em datas relativamente próximas no mês de março de 2020, ações de controle concentrado de constitucionalidade para discutir as competências constitucionais dos entes federados no enfrentamento da pandemia, notadamente visando que as medidas restritivas adotadas por Estados e Municípios tivessem sua legitimidade reconhecida em face da resistência centralizadora federal, a saber, a ADI nº 6.341/DF, ADI nº 6.343/DF e ADPF nº 672/DF.

    A seguir, procede-se à breve análise dessas ações de forma conjunta, primeiramente das decisões monocráticas proferidas pelos respectivos relatores e súmulas de julgamento de referendo da cautelar; e, após, dos respectivos acórdãos posteriormente publicados, especificamente com o objetivo de identificar quais critérios o STF prevê para resolução de eventuais conflitos entre entes federados nessa crise federativa, bem como se as lacunas presentes nas decisões monocráticas antes referidas foram supridas.

    3.1. ADI Nº 6.341/DF, ADI Nº 6.343/DF E ADPF Nº 672/DF: ANÁLISE A DAS DECISÕES MONOCRÁTICAS E DAS SÚMULAS DE JULGAMENTO QUE APRECIARAM AS MEDIDAS CAUTELARES

    Em 23/03/2020 o Partido Democrático Trabalhista (PDT) ajuizou a ADI nº 6.341/DF, na qual questionou as alterações promovidas pela MP nº 926/2020 na Lei n.º 13.979/2020; e, por arrastamento, do Decreto nº 10.282/2020, que a regulamentou.

    O Ministro Marco Aurélio, relator do caso, no dia seguinte (24/03/2020), deferiu parcialmente a medida cautelar para para tornar explícita, no campo pedagógico e na dicção do Supremo, a competência concorrente, nos termos do art. 23, II, da CRFB, de modo a reconhecer a possibilidade de adoção das medidas previstas no art. 3º da Lei nº 13.979/2020 por governadores e prefeitos no enfrentamento da pandemia.

    Na assentada de 15/04/2020, o plenário do STF referendou mencionada cautelar, nos seguintes termos, conforme a respectiva ata de julgamento publicada em 07/05/2020 no Diário da Justiça Eletrônico (DJe) nº 111:

    O Tribunal, por maioria, referendou a medida cautelar deferida pelo Ministro Marco Aurélio (Relator), acrescida de interpretação conforme à Constituição ao § 9º do art. 3º da Lei nº 13.979, a fim de explicitar que, preservada a atribuição de cada esfera de governo, nos termos do inciso I do art. 198 da Constituição, o Presidente da República poderá dispor, mediante decreto, sobre os serviços públicos e atividades essenciais, vencidos, neste ponto, o Ministro Relator e o Ministro Dias Toffoli (Presidente), e, em parte, quanto à interpretação conforme à letra b do inciso VI do art. 3º, os Ministros Alexandre de Moraes e Luiz Fux. (ADI nº 6.341/DF, Relator Min. Marco Aurélio, STF, 2020). (Grifou-se).

    Se, de um lado, referida decisão teve o mérito de neutralizar o chamado federalismo bolsonarista que se apresentava e ganhava corpo, por outro se revelou insuficiente para esclarecer os termos nos quais deveria ser exercida essa competência concorrente pelos entes subnacionais, a começar pela fórmula mágica no campo pedagógico e na dicção do Supremo constante da cautelar, como se fosse possível depreender do texto constitucional e da própria jurisprudência do STF critérios claros e pré-existentes em matéria de competência concorrente antes da pandemia e que deveriam ser aplicados nos conflitos federativos dela oriundos. Afinal, qual a dicção do STF em matéria de competência concorrente?

    Ressalte-se que ‘[...] tanto a doutrina como a jurisprudência insistem em extrair uma leitura a priori da Constituição. É como se a Constituição contivesse desde já sempre uma concepção pronta e acabada de Federalismo, a qual doutrinadores e demais aplicadores da lei apenas conheceriam’ (BITENCOURT e RECK, 2012, p. 166).

    A mesma crítica poderia ser endereçada à jurisprudência do STF em matéria de federalismo, notadamente de competência concorrente, visto que da análise dos diversos precedentes que se debruçaram sobre essa complexa temática as decisões variam muito caso a caso, sem que se possa estabelecer um critério a priori.

    Interessante notar também que, até a prolação de referida decisão, nem a doutrina nem a jurisprudência do STF utilizaram a expressão competência concorrente para se referir especificamente às competências comuns previstas no art. 23 da CRFB, apenas para as do art. 24 da CRFB, malgrado a defesa e a proteção da saúde estejam compreendidas em ambas as esferas de competência, porém sujeitas a regramentos constitucionais distintos. O que a decisão referida quis dizer então é que a concorrência agora teria sido transposta do campo da lei (art. 24) para o dos decretos normativos da pandemia (art. 23), de modo a aplicar a jurisprudência (confusa) do STF construída sobre o art. 24 para o âmbito do art. 23 da CRFB? Bem se percebe que esse singelo pronunciamento (cautelar) deixou margem a uma série de celeumas jurídicas.

    Em 24/03/2020, o Partido Rede Sustentabilidade (Rede) ajuizou a ADI nº 6.343/DF, na qual questionava alterações promovidas pela MP nº 926/2020 e também pela MP nº 927/2020 na Lei nº 13.979/2020¹⁹. O Ministro Marco Aurélio, relator do caso, no dia seguinte (25/03/2020), indeferiu a medida cautelar, o que trouxe ainda mais névoas sobre a interpretação a ser conferida à competência dos entes subnacionais, visto que no dia anterior deferira parcialmente a cautelar na ADI nº 6.341/DF para lhes assegurar a competência concorrente no campo pedagógico e na dicção do Supremo.

    Na assentada de 06/05/2020, o plenário do STF concedeu parcialmente a cautelar, nos seguintes termos, conforme a respectiva ata de julgamento publicada em 03/06/2020 no Diário da Justiça Eletrônico (DJe) nº 137:

    O Tribunal, por maioria, concedeu parcialmente a cautelar para i) suspender parcialmente, sem redução de texto, o disposto no art. 3º, VI, b, e §§ 6º e 7º, II, a fim de excluir estados e municípios da necessidade de autorização ou observância ao ente federal; e ii) conferir interpretação conforme aos referidos dispositivos no sentido de que as medidas neles previstas devem ser precedidas de recomendação técnica e fundamentada, devendo ainda ser resguardada a locomoção dos produtos e serviços essenciais definidos por decreto da respectiva autoridade federativa, sempre respeitadas as definições no âmbito da competência constitucional de cada ente federativo, nos termos do voto do Ministro Alexandre de Moraes, Redator para o acórdão, vencidos o Ministro Marco Aurélio (Relator), que trazia a referendo o indeferimento da medida liminar, e, em parte, os Ministros Edson Fachin e Rosa Weber, que deferiam parcialmente a medida cautelar para conferir interpretação conforme ao inciso II do § 7º do art. 3º da Lei nº 13.979/2020. (ADI nº 6.343/DF, Relator Min. Marco Aurélio, STF, 03 jun. 2020)

    Cabe destacar, ainda, que na ADI nº 6.343/DF a decisão monocrática que primeiro indeferiu a respectiva medida cautelar pleiteada assentou pertinência do § 1º do art. 3º da Lei nº 13.979/2020, a fim de que [...] haja a tomada de providências a partir de dados científicos, e não conforme critério que se eleja para a situação. Sem olvidar a importância da ciência, essencial no combate à pandemia, acredita-se que neste ponto faltou esclarecer que eventual providência mais restritiva por parte de Estados e Municípios poderia ser adotada legitimamente, num contexto de incerteza científica como a vivenciada em decorrência do surto de COVID-19, com base nos princípios da precaução²⁰; contudo, na súmula de julgamento do referendo da cautelar, nenhuma consideração foi tecida a esse respeito.

    Ainda em março, quando persistia a omissão da União, em especial do Presidente da República e do Ministro da Economia, na prevenção e no combate à pandemia, inclusive para minimização dos deletérios efeitos econômicos e sociais decorrentes da profunda crise, o CFOAB ajuizou, em 31/03/2020, a APDF nº 672/DF, visando que o Presidente se abstivesse de praticar atos contrários às políticas de isolamento social adotadas pelos Estados e Municípios, e também para determinar a implementação imediata de medidas econômicas de apoio aos setores mais atingidos pela crise²¹.

    Embora indeferida a medida cautelar no tocante a determinar providências concretas ao Presidente da República e a sua equipe econômica, em razão do princípio da Separação dos Poderes, a medida cautelar foi deferida parcialmente em 08/04/2020, no tocante à questão federativa, nos seguintes termos:

    [...].

    [...] DETERMINAR a efetiva observância dos artigos 23, II e IX; 24, XII; 30, II e 198, todos da Constituição Federal na aplicação da Lei 13.979/20 e dispositivos conexos, RECONHENDO E ASSEGURANDO O EXERCÍCIO DA COMPETÊNCIA CONCORRENTE DOS GOVERNOS ESTADUAIS E DISTRITAL E SUPLEMENTAR DOS GOVERNOS MUNICIPAIS, cada qual no exercício de suas atribuições e no âmbito de seus respectivos territórios, para a adoção ou manutenção de medidas restritivas legalmente permitidas durante a pandemia, tais como, a imposição de distanciamento/isolamento social, quarentena, suspensão de atividades de ensino, restrições de comércio, atividades culturais e à circulação de pessoas, entre outras; INDEPENDENTEMENTE DE SUPERVENIENCIA DE ATO FEDERAL EM SENTIDO CONTRÁRIO, sem prejuízo da COMPETÊNCIA GERAL DA UNIÃO para estabelecer medidas restritivas em todo o território nacional, caso entenda necessário.

    Obviamente, a validade formal e material de cada ato normativo específico estadual, distrital ou municipal poderá ser analisada individualmente. (ADPF nº 672/DF, Relator Min. Alexandre de Moraes, STF, 15 abr. 2020)

    A decisão ressaltou, ainda, a necessidade de cooperação entre os 3 (três) Poderes, no âmbito de todos os entes federativos, como essencial e imprescindível em defesa do interesse público pelas diversas lideranças políticas, visto que o momento atual de grave crise na saúde pública exige das autoridades brasileiras, em todos os níveis de governo, a efetivação concreta da proteção à saúde pública, com a adoção de todas as medidas possíveis e tecnicamente sustentáveis para o apoio e manutenção das atividades do Sistema Único de Saúde.

    Não obstante a determinação contida nessas decisões no sentido de estar assegurada a competência concorrente para os entes subnacionais, a necessidade de observância de critérios científicos por estes e o apelo por cooperação entre os diferentes Poderes e as diversas instâncias federativas, na prática essas decisões acabaram servindo para legitimar as ações de enfrentamento à pandemia adotadas por governadores e prefeitos, sobretudo pelos primeiros, que passaram a liderar o movimento de prevenção e combate à COVID-19 em vez do Presidente da República e do Ministério da Saúde. Porém, ainda não estavam nem um pouco claros os critérios que seriam utilizados para dirimir eventuais conflitos de competência federativa, notadamente entre Estados e Municípios, que passaram a protagonizar as medidas de enfrentamento à pandemia, quanto à denominada competência concorrente.

    Importante registrar que, durante a maior parte do ano de 2020, praticamente o que foi publicado das mencionadas ações (ADI nº 6.341/DF, ADI nº 6.343/DF e ADPF nº 672/DF) foram apenas as decisões dos relatores que apreciaram os pedidos de medidas cautelares supra referidas e as súmulas de julgamento quanto ao respectivo referendo, entre o final de março e o início de junho de 2020, mas o inteiro teor dos respectivos acórdãos e votos dos ministros quanto ao referendo só foram publicados entre o final de outubro e o início de novembro de 2020, de modo que pelo menos até ali não era possível identificar com clareza, no campo pedagógico e na dicção do Supremo, os critérios que seriam utilizados para resolução de conflitos de competência entre os entes federados²².

    Essa ausência de critérios seguros foi rápida e inequivocamente percebida pelos estudiosos do Direito Público. Rafael da Cás Maffini (2020), em artigo publicado no início da pandemia no Brasil, propôs os seguintes critérios sucessivos: a) maior embasamento em evidências científicas e em análises sobre as informações estratégicas em saúde (Lei nº 13.979/2020, art. 3º, § 1º); b) maior compatibilidade das medidas impostas com as realidades regionais ou locais; c) maior restrição em prol da proteção à saúde e da proteção da coletividade (Lei nº 13.979/2020, art. 1º, § 1º)

    Embora referido modelo apresente suas dificuldades de aplicação, notadamente quanto ao embasamento em evidências científicas e à compatibilidade das restrições com as realidade regionais ou locais, tendo em vista a dificuldade das respectivas aferições, entende-se que seu principal mérito consiste justamente em arrolar o último critério, o da maior restrição em prol da proteção à saúde pública, justamente porque tende a ser o critério de desempate ante a maior subjetividade na apreciação dos 2 (dois) primeiros, e que também guarda sintonia com os princípios da prevenção e da precaução, já referidos.

    Porém, ao menos nas decisões monocráticas e nas súmulas de julgamento em sede de referendo das medidas cautelares, a única questão definida foi assegurar aos Estados e Municípios competência concorrente para editar normas de enfrentamento à pandemia, mas sem o estabelecimento de critérios claros para resolução de eventuais conflitos entre eles.

    3.2. ADI Nº 6.341/DF, ADI Nº 6.343/DF E ADPF Nº 672/DF: ANÁLISE CRÍTICA DOS RESPECTIVOS ACÓRDÃOS PUBLICADOS NO FINAL DO SEGUNDO SEMESTRE DE 2020

    Tendo em vista a existência das mencionadas lacunas, convém analisar se, ao menos por ocasião da publicação dos acórdãos de referendo daquelas medidas cautelares no segundo semestre de 202023, são explicitados critérios específicos para orientar a resolução de eventuais conflitos federativos entre Estados e Municípios no caso de normas conflitantes; e, adiante-se, a conclusão afigura-se negativa.

    Do acórdão da ADI nº 6.341/DF, publicado em 13/11/2020, percebe-se que o relator, Ministro Marco Aurélio, tece poucas considerações, e estas são de natureza adjacente e mais relacionadas ao acerto de sua decisão anterior proferida em 24/03/2020 e, inclusive, sobre a concordância do partido autor (PDT) com a medida cautelar implementada, como se toda a discussão se exaurisse naquele singelo pronunciamento de tornar explícita, no campo pedagógico e na dicção do Supremo, a competência concorrente; seu voto, portanto, limitou-se a transcrever a mencionada decisão.

    O Ministro Edson Fachin introduz a linha de interpretação do § 9º do art. 3º da Lei nº 13.979/2020 conforme à CRFB, no que acaba sendo acompanhado pela maioria dos ministros, o que lhe rendeu, portanto, a condição de redator do acórdão. Pede-se vênia para transcrever parcialmente a ementa, que no geral bem resume seu voto:

    [...].

    3. O pior erro na formulação das políticas públicas é a omissão, sobretudo para as ações essenciais exigidas pelo art. 23 da Constituição Federal. É grave que, sob o manto da competência exclusiva ou privativa, premiem-se as inações do governo federal, impedindo que Estados e Municípios, no âmbito de suas respectivas competências, implementem as políticas públicas essenciais. O Estado garantidor dos direitos fundamentais não é apenas a União, mas também os Estados e os Municípios.

    4. A diretriz constitucional da hierarquização, constante do caput do art. 198 não significou hierarquização entre os entes federados, mas comando único, dentro de cada um deles.

    5. É preciso ler as normas que integram a Lei 13.979, de 2020, como decorrendo da competência própria da União para legislar sobre vigilância epidemiológica, nos termos da Lei Geral do SUS, Lei 8.080, de 1990. O exercício da competência da União em nenhum momento diminuiu a competência própria dos demais entes da federação na realização de serviços da saúde, nem poderia, afinal, a diretriz constitucional é a de municipalizar esses serviços.

    6. O direito à saúde é garantido por meio da obrigação dos Estados Partes de adotar medidas necessárias para prevenir e tratar as doenças epidêmicas e os entes públicos devem aderir às diretrizes da Organização Mundial da Saúde, não apenas por serem elas obrigatórias nos termos do Artigo 22 da Constituição da Organização Mundial da Saúde (Decreto 26.042, de 17 de dezembro de 1948), mas sobretudo porque contam com a expertise necessária para

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