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O Perverso Nosso de Cada Dia: A Banalização do Assédio Moral no Serviço Público
O Perverso Nosso de Cada Dia: A Banalização do Assédio Moral no Serviço Público
O Perverso Nosso de Cada Dia: A Banalização do Assédio Moral no Serviço Público
E-book391 páginas6 horas

O Perverso Nosso de Cada Dia: A Banalização do Assédio Moral no Serviço Público

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Sobre este e-book

A estabilidade funcional, ao mesmo tempo, garante e aprisiona o servidor. O assédio moral mostra-se particularmente destrutivo, pela dificuldade em abdicar do cargo público e da consequente incolumidade a crises econômicas. A estrutura burocratizada e hierárquica constitui ambiente propício ao psicoterror, dificultando o acesso da vítima a instâncias superiores. A adoção de modelos de gestão focados em resultados, próprios da iniciativa privada, tem deteriorado os ambientes de trabalho, agravando conflitos que degeneram facilmente em assédio. Igualmente, a administração tem incentivado e promovido gestores que conseguem resultados, independentemente de seus custos humanos, transformando o assédio em ferramenta de gestão.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento29 de ago. de 2022
ISBN9786525016917
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    O Perverso Nosso de Cada Dia - Hilda Baião Ramírez Deleito

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    COMITÊ CIENTÍFICO DA COLEÇÃO DIREITO E DEMOCRACIA

    A Maria Vitória, José Gabriel, Raquel Maria e Joseph.

    AGRADECIMENTOS

    A Roberto Norris, Leonardo Rabelo de Matos e Mery Azevedo, pelo continuado apoio.

    APRESENTAÇÃO

    Este livro consiste na adaptação de uma tese de doutorado, para a melhor compreensão inclusive do público sem formação em Direito e Sociologia do Direito. Os capítulos sobre os doutrinadores europeus e brasileiros foram mantidos, embora, porventura, despertem menor interesse nos leigos. A compreensão da matéria tratada no livro independe da leitura desses capítulos. Em resumo, trata-se de um convite à compreensão dos mecanismos de banalização do assédio moral nas relações de trabalho.

    Sumário

    1

    PROPEDÊUTICA DA PESQUISA 13

    1.1 A tomada de consciência do assédio moral 13

    1.2 Mobbing enquanto defesa (a contribuição de Konrad Lorenz) 33

    1.3 A luta pela sobrevivência 56

    2

    O ASSÉDIO MORAL NA DOUTRINA 71

    2.1 A influência de Hirigoyen e Leymann 71

    2.2 A reação 87

    2.3 A recepção da teoria no Brasil 103

    3

    O HOMO FABER ENQUANTO OBJETO DE CONSUMO NA SOCIEDADE PÓS-MODERNA 121

    3.1 A construção da identidade pelo trabalho 121

    3.2 O homo faber e sua degradação a objeto de consumo 138

    3.3 Produção e descarte de lixo humano 153

    4

    O PERVERSO NOSSO DE CADA DIA 169

    4.1 Novas formas de trabalho e sofrimento laboral 169

    4.2 A institucionalização do assédio moral 182

    4.3 Peculiaridades do serviço público 199

    4.4 A administração pública direta e o assédio moral 221

    CONCLUSÃO 239

    REFERÊNCIAS 249

    1

    PROPEDÊUTICA DA PESQUISA

    1.1 A tomada de consciência do assédio moral

    O presente livro foi apresentado originalmente como tese de doutoramento. Representa o resultado final de reflexões amadurecidas ao longo dos anos e de constatações da realidade do serviço público. A despeito de todas as campanhas de conscientização, o assédio moral tornou-se endêmico no serviço público e em alguns setores da iniciativa privada. Acreditamos que essa persistência deve-se a práticas predatórias de gestão de pessoas importadas das empresas.

    Na ocasião da defesa da tese, já existia a clareza quanto ao sucateamento do serviço público, extirpando garantias históricas do funcionalismo e eliminando a distância em relação à situação precarizada dos empregados no setor privado. A Reforma da Previdência já havia sido aprovada, legitimada por manifestações populares sui generis, exigindo a perda dos próprios direitos sociais. Igualmente, restava evidente que a burocracia estatal, bode expiatório para o desemprego e subemprego, seria atingida por mais reformas, até que sua situação reproduzisse a incerteza e angústia vividas diariamente pelos empregados e pequenos empreendedores. Nesse ínterim, contudo, o pânico gerado pela pandemia do Covid-19 e as severas medidas restritivas da atividade econômica agravaram o desemprego e determinaram um aumento de gastos públicos com programas assistenciais no contexto de queda livre da arrecadação. Nesse contexto, os servidores públicos, não só estáveis, como imunes aos efeitos das crises econômicas, vêm sofrendo verdadeiros ataques de ódio, enquanto o neoliberal ministro da Economia ironiza as geladeiras cheias do funcionalismo (sem qualquer desmentido oficial).

    A naturalização do discurso do ódio contra os estáveis não existe no vácuo. A banalização do assédio moral situa-se no contexto de crise no mundo do trabalho. A globalização exige agilidade e eficiência, enquanto trabalhadores necessitam de um mínimo de previsibilidade e segurança em suas vidas. O embate entre essas forças antagônicas constituiu o pano de fundo dos estudos pioneiros sobre assédio moral na Europa.

    Em 1998, a psicóloga francesa Marie-France Hirigoyen publicou seu primeiro livro sobre assédio moral, que determinou a tomada de consciência quanto à amplitude e à gravidade do problema. O livro mencionava o assédio moral laborativo, embora seu foco fosse o terror psicológico na vida doméstica, revelando a violência presente em situações familiares corriqueiras e recorrentes. Havia pesquisas anteriores, incluindo a de Heinz Leymann com trabalhadores suecos, iniciada na década de 1980; porém, nenhuma delas alcançou a repercussão da tese de Hirigoyen. Deve-se a Hirigoyen, portanto, a conscientização quanto à amplitude e gravidade do problema.

    No Brasil, a pesquisa de Hirigoyen vem sendo replicada de maneira acrítica, insistindo-se na tese de que a violência psicológica seria uma perversão praticada por personalidades narcisistas, vítimas de traumas passados e incapazes de conviver com a diferença ou estabelecer relações baseadas no respeito mútuo.

    Hirigoyen apresenta os assediadores como vítimas de traumas pretéritos que precisam transferir a dor e as humilhações que já sofreram. Afirma que não fazem de propósito, e que existe um componente de prazer no assédio que não se confunde com eventuais vantagens profissionais. O paradigma do perverso é a personagem mítica de Narciso, que, sendo incapaz de um verdadeiro relacionamento, só consegue estabelecê-lo por um mecanismo perverso, de malignidade destrutiva. Sustenta que os perversos são movidos apenas pelo prazer vital com o sofrimento do outro e suas dúvidas, assim como têm o maior prazer em sujeitar e humilhar o outro (HIRIGOYEN, 2008, p. 143).

    Incapazes de estabelecer conexões normais baseadas na empatia, os perversos narcisistas estariam condenados a estabelecer relacionamentos alicerçados em relações de força, desconfiança e manipulação. Seria impossível para eles reconhecer as diferenças dos outros, incapazes de apreciar e respeitar a diversidade, prisioneiros dos próprios preconceitos e do próprio passado de violência. Precisariam, portanto, dominar ou destruir todos os que poderiam ser um entrave a seu poder. Aprisionados eles mesmos em memórias de violência e manipulação, os perversos estariam projetando toda a violência interna em alguém que poderia desmascará-los ou mostrar suas fraquezas (HIRIGOYEN, 2006, p. 278). Os perversos seriam, antes de tudo, vítimas de um enorme sofrimento interno, e não existiria dolo na sua conduta. Segundo Hirigoyen, os assediadores não fazem de propósito (HIRIGOYEN, 2006, p. 278).

    Segundo Hirigoyen, a vítima seria todo aquele que se destaca do grupo, pela diversidade, competência ou dedicação. Em casos menos frequentes, poderia ser o superior hierárquico recém-chegado (HIRIGOYEN, 2008, p. 74), cujo estilo e métodos sejam reprovados pelo grupo.

    Para Hirigoyen, o perfil do assediador seria mais determinante na configuração do assédio do que qualquer qualidade pessoal ou profissional da vítima. A autora, ainda, reconhece que qualquer pessoa pode ser levada a adotar atitudes perversas (HIRIGOYEN, 2008, p. 139). Segundo ela, o comportamento do perverso narcisístico se distingue pela ausência de remorso ou arrependimento pelos seus atos (HIRIGOYEN, 2008, p. 139).

    Hirigoyen destaca que, originalmente, o conceito de perversão foi usado na psicanálise para descrever os desvios sexuais, e apenas posteriormente foi utilizado para caracterizar desvios de caráter e de comportamento (HIRIGOYEN, 2008, p. 141). O assediador seria sempre um perverso narcisista, um psicótico sem sintomas, que encontra seu equilíbrio descarregando em outros a própria dor e as contradições internas que se recusam a perceber. Segundo Hirigoyen, eles não fazem de propósito o mal que fazem, eles fazem mal porque não sabem agir de outro modo para existir. Teriam sido eles próprios feridos em sua infância e, portanto, estariam transferindo a própria dor (HIRIGOYEN, 2008, p. 141). O assédio moral, portanto, não se confunde com a mera degradação do ambiente de trabalho, muito embora tal degradação seja propícia ao assédio.

    A ênfase no perfil do assediador é o ponto central da análise de Hirigoyen, e a grande repercussão dos seus estudos obscureceu os méritos da pesquisa anterior de Leymann. Esse autor percebeu que determinados ambientes são propícios ao assédio moral, ambientes desorganizados em que as regras nunca são claras e a comunicação, insuficiente. Leymann descreveu o fenômeno da violência velada antes da publicação das obras mais conhecidas de Hirigoyen (LEYMANN, 1990, p. 119), enumerando sistematicamente as formas pelas quais se procedia à destruição psicológica das vítimas. Ao contrário de Hirigoyen, Leymann não se ocupa das motivações das agressões, parecendo indicar que são problemas administrativos internos. De qualquer sorte, a origem dos episódios não constitui o objeto principal da pesquisa. Leymann propõe quadros descritivos das várias manifestações de assédio moral, balizando o fenômeno dentro de parâmetros científicos. Seu foco recai sobre as consequências humanas e econômicas do assédio moral. Segundo Leymann, quando a vítima é submetida a sistemática estigmatização e sucessivas injustiças, o desfecho inevitável é a exclusão não só do emprego, como do seu ramo de trabalho (LEYMANN, 1990, p. 119). Leymann constatou que as vítimas se afastaram em licenças médicas prolongadas, e, no seu retorno, continuaram a sofrer uma sequência de estigmatizações e readaptações em funções degradantes. Por fim, desacreditadas e destruídas psicologicamente, tornaram-se persona non grata na empresa, demitidos sem referências. Em casos extremos, ficaram de todo alijados do mercado de trabalho, rotulados como improdutivos, problemáticos, perturbados mentalmente: verdadeiros párias (LEYMANN, 1990, p. 119).

    Evidentemente, não há como subestimar a ruptura representada pela tomada de consciência do assédio moral. O sofrimento no trabalho sempre foi naturalizado, como decorrência lógica do estado de necessidade que afastava as pessoas das aspirações mais nobres do espírito. A própria palavra trabalho tem como origem etimológica o latim tripalium, um instrumento de tortura com três estacas de madeira.¹ Na tradição judaico-cristã, o trabalho corresponde a uma maldição pela desobediência aos mandamentos divinos (Cf. Gênesis, 3, 17–19). A antiguidade clássica também estigmatizou o trabalho como ocupação de escravos, sujeitos ao estado de necessidade, degradante da intelectualidade e indigna de homens livres e cidadãos. Durante a antiguidade, e muito depois, o próprio exercício da cidadania pressupõe um ócio voluntário, o distanciamento ideal das preocupações materiais. Ao contrário, o trabalho era menosprezado como uma degradação incompatível com a liberdade ou a dignidade. Quem precisa trabalhar para atender suas necessidades sobrevive ao nível de um animal, apenas atende às exigências do estômago. Um escravo estaria mais próximo de uma besta domesticada, como um boi ou um cavalo, do que propriamente de uma pessoa, com a qual compartilha apenas a forma humana, mas nunca o seu espírito.

    A emancipação do trabalho de sua carga pejorativa foi observada por Hannah Arendt. A autora (2007, p. 90) distingue entre labor e trabalho, retomando a dicotomia grega entre o artífice e aqueles que como escravos e animais domésticos, atendem com o corpo às necessidades da vida. Segundo Hannah Arendt, o desprezo pelo labor, originalmente, resulta da acirrada luta do homem contra a necessidade e de uma impaciência em relação a qualquer esforço que não deixasse uma obra (ARENDT, 2007, p. 90).

    Durante a antiguidade, o labor foi menosprezado como esforço inútil, realizado por escravos, cujo sofrimento é inerente à vida em condições análogas à dos animais. Assim como os animais, esses escravos eram disciplinados fisicamente, punidos com violência física, para que se acomodassem em seu lugar e assumissem uma natureza dócil e submissa.

    No entanto, o mesmo processo de valorização do trabalho, pelo qual o homem será honrado pelas suas realizações pessoais, condiciona a sua dignidade à sua inserção econômica. Se antes o valor da pessoa dependia de sua inserção familiar e estamentária, a modernidade atrelou seu valor às suas realizações individuais. O homo faber será julgado e mensurado pelo que foi capaz de construir, pela sua obra. No momento em que cessa de produzir, perde a sua identidade humana e sua dignidade. A liberdade trazida pela modernidade, como percebeu Arendt, tem como subproduto o desamparo absoluto do ser humano. Enquanto a Revolução Francesa proclamava o direito fundamental à dignidade, a prática demonstrava que a dignidade dependia da tutela dos Estados nacionais. E o interesse dos Estados em exercer a sua tutela se subordinava, cada vez mais, à utilidade econômica.

    De fato, sempre existiu um abismo entre a noção de direitos inerentes à humanidade e a prática, que condiciona o valor humano à sua utilidade socioeconômica. Um abismo entre o idealismo da fraternidade, apesar das diferenças, e a realidade em que se valoriza o sucesso individual. O assédio moral apenas pode existir em uma sociedade que venera o sucesso, tanto individual como o corporativo, e não reconhece qualquer limite ético ou moral. O assédio pressupõe um ambiente de individualismo extremo, e uma competição selvagem pelo êxito, mesmo quando esse êxito se resume à manutenção de um emprego formal. Em outras palavras, o assédio insere-se no contexto social de cinismo, utilitarismo e amoralidade. O agressor não percebe qualquer problema em extravasar suas frustrações e tensões sobre algum fracassado, ou garantir o seu cargo exagerando e explorando as falhas de algum colega. E a própria vítima aceita o tratamento que recebe, internaliza culpas e inadequações, reais ou imaginárias.

    Carrascos e vítimas se alternam, conforme as relações de poder em determinada organização. Zygmunt Bauman apresenta o filme A lista de Schindler como a apoteose da glorificação da sobrevivência a qualquer preço, pela maneira como a plateia é estimulada a se alegrar pela libertação de uns poucos prisioneiros judeus, privilegiados pela proximidade com o industrial Schindler. Não existe nenhuma compaixão com os milhões de vítimas do holocausto. Existe somente o triunfo ou o fracasso. Ao contrário do senso comum judaico-cristão, que acredita na purificação pelo sofrimento suportado com paciência, aqui não há esperança. Na sociedade moderna, é natural reproduzir comportamentos abusivos: ser humilhado por chefias arrogantes e redirecionar a raiva sobre cônjuges ou animais domésticos.

    O mobbing prospera justamente por causa da naturalização da violência nas relações de trabalho: chefes sobre subordinados, ocupantes de cargos políticos sobre servidores concursados, engenheiros sobre operários, operários sobre equipes de conservação e limpeza etc.

    Não se pode compreender essa naturalização do egoísmo e da amoralidade sem fazer menção à filosofia utilitária de Jeremy Bentham. Segundo o filósofo inglês, a própria ideia de direitos naturais seria um absurdo total (SANDEL, 2017, p. 48). De maneira coerente à sua rejeição ao traço comum da humanidade, consubstanciada nos direitos fundamentais, Bentham formulou o utilitarismo, cuja ideia central pode ser formulada de maneira simples: o objetivo dos seres humanos é maximizar a felicidade, assegurando a hegemonia do prazer sobre a dor (SANDEL, 2017, p. 48). Essa máxima individualista ao extremo seria aplicável não só aos cidadãos, como também aos Estados, alçados à condição de facilitadores da felicidade da comunidade. A própria noção de comunidade é despojada do sentido de coletividade, para significar apenas um somatório de indivíduos, um corpo fictício (SANDEL, 2017, p. 48).

    Dentro do princípio da utilidade, Bentham formulou propostas ousadas (para a sua época), como a prisão Panopticon, um presídio dotado de uma torre central, que permite a observação constante dos detentos. Essa prisão deveria ser sustentável, com recursos oriundos do trabalho dos próprios apenados, que deveriam trabalhar 16 horas por dia. Além da exploração do trabalho escravo dos encarcerados, Bentham propôs igualmente um asilo sustentado com o labor dos próprios pobres. Qualquer cidadão que encontrasse um pedinte poderia conduzi-lo coercitivamente a um abrigo, onde o desventurado indigente deveria, como os presos, arcar com o ônus do próprio sustento, inclusive um seguro de vida. Para que os cidadãos de bem se dessem ao trabalho de sequestrar os mendigos, Bentham propôs até mesmo a recompensa de 20 xelins por cabeça (SANDEL, 2017, p. 50).

    Não existe espaço para a moralidade ou a solidariedade nas construções de Bentham. As propostas de Bentham, ousadas para sua época, soam agradavelmente modernas e até visionárias na sua crueza e simplicidade. Todos os

    meios são lícitos para se aliviar a carga tributária, afinal, impostos seriam recursos extorquidos dos cidadãos, e as políticas públicas sociais supostamente agravariam os problemas que deveriam solucionar (REED, 2018, p. 109).

    A terceirização das prisões, por exemplo, já foi concretizada, sem qualquer resistência. Contanto que se reduzam os custos da manutenção dos complexos prisionais, não há qualquer objeção a se explorar a força produtiva de pessoas confinadas, fazendo-as pagarem pela sua hospedagem forçada. A semelhança dessa exploração com a escravidão não parece ocorrer a uma sociedade indiferente a questões morais.

    Dentro de uma lógica utilitarista, o Estado tampouco assume responsabilidade alguma quanto aos seus cidadãos, exceto na situação de facilitador das relações de consumo. A sequência natural do utilitarismo é que o Estado não deve intervir nas relações privadas, porque o custo dessa intervenção seria demasiado pesado para os cidadãos contribuintes. Segundo o economista Milton Friedman, devemos resistir à tentação de acreditar que o Estado poderia remediar situações injustas, e aprender a conviver com elas, já que nos beneficiamos muito da injustiça que deploramos (FRIEDMAN apud SANDEL, 2017, p. 204).

    A noção de utilitarismo e a neutralidade do Estado são concepções libertárias por excelência. No entanto, existe um preço para a liberdade, e esse preço é o desamparo. Uma vez quebrados os grilhões da tradição, da honra e do cavalheirismo, não resta nenhuma rede de proteção. Os indivíduos são livres para realizar todo o seu potencial, mas não podem esperar qualquer apoio ou solidariedade. Esse é, para Sandel, o grande atrativo da concepção liberal e também a sua debilidade:

    O ponto fraco da concepção liberal de liberdade tem a ver exatamente com o que a torna atraente. Se nos considerarmos livres e independentes, sem as amarras morais de valores que não escolhemos, não terão sentido para nós muitas obrigações morais e políticas que normalmente aceitamos e até mesmo valorizamos. Incluem-se aí as obrigações de solidariedade e lealdade, de memória histórica e crença religiosa – reivindicações morais oriundas das comunidades e tradições que constroem nossa identidade. A não ser que nos vejamos como pessoas com um legado, sujeitas a ditames morais que não escolhemos (SANDEL, 2017, p. 272).

    Lorenz descreve a geração posterior à Primeira Grande Guerra como a primeira geração a viver plenamente a ruptura com a tradição e a rejeitar conscientemente a opressão gerada pelas regras estáticas e rígidas de convívio social. Sandel situa a proposta liberal como uma resposta ao ônus de viver em uma sociedade baseada na força da tradição e nos valores coletivos:

    Os ônus da vida em comunidade podem ser opressivos. A proposta liberal surgiu como um antídoto às teorias políticas que consignavam os indivíduos a determinados destinos definidos por sua casta ou classe, cargo ou graduação, costumes, tradição ou condição herdada... Diferentemente dos deveres naturais, as obrigações de solidariedade são particulares e não universais; elas envolvem responsabilidades morais que devemos ter não apenas com os seres racionais, mas com aqueles com quem compartilhamos uma determinada história (SANDEL, 2017, p. 277).

    Sandel acredita, portanto, que podemos ser simultaneamente livres e comprometidos com valores morais impostos pela tradição. A experiência demonstrou, contudo, que não existe meia liberdade. O homo faber, o novo homem da modernidade, está fadado a ser julgado pelas suas realizações pessoais e justiciado pelos seus fracassos.

    Alain Supiot explica a modernidade como a redução do ser humano a uma realidade biológica, fato que atribui a uma ciência fetichizada (SUPIOT, 2007, p. 38). Supiot entende que o afastamento da crença religiosa do homem como imagem de Deus necessariamente relega a dignidade humana a uma questão particular e não mais a um princípio universal (SUPIOT, 2007, p. 19). O autor sustenta que a fraternidade derivaria da concepção do humano enquanto imagem do Deus Pai, razão pela qual seríamos todos irmãos, submetidos, como tais, a um dever de socorro e de assistência mútua (SUPIOT, 2007, p. 19). A perda da fé, que Supiot situa no século XX, decompõe o homem a um ser biológico, que deve lutar pela própria sobrevivência como um animal na selva (SUPIOT, 2007, p. 39). O nazismo seria a consequência lógica dessa secularização humana e sua redução a uma realidade meramente biológica. A ideologia nazista teria aceitado o darwinismo social como a essência da vida: a luta de todos contra todos e a dominação de um sobre o outro (SUPIOT, 2007, p. 39). Os mais fortes e espertos estariam destinados a prevalecer sobre os mais fracos (SUPIOT, 2007, p. 39). Segundo Supiot, Hitler apenas teria levado às últimas consequências lugares-comuns da modernidade, a redução da condição humana a uma realidade de poder e dominação (SUPIOT, 2007, p. 41).

    A nostalgia de Supiot por um passado idealizado de fraternidade não encontra amparo fático. A crença religiosa nunca constituiu óbice à escravidão ou à servidão. Do mesmo modo, a crença laica na fraternidade humana se reduziu a um exercício retórico. No século XVIII, poucos ousariam acompanhar a lógica cínica de Bentham quanto aos Direitos Humanos. Ainda hoje, muitos seguem o pragmatismo dos Pais Fundadores da Independência Americana: concordar com a liberdade e a igualdade, na teoria, sem abdicar do conforto da condição de ricos proprietários. Como observou Supiot, trata-se de um lugar-comum da modernidade a degradação da condição humana a uma realidade biológica, compartilhada com os animais na selva. E, consequentemente, o genocídio nazista apenas levou às últimas consequências o raciocínio estritamente utilitarista.

    O utilitarismo não comporta objeções morais. A prática de uma liberdade temperada pela moral, defendida por Sandel, ainda não se concretizou. A solidariedade e a assistência mútuas são igualmente rejeitadas como valores ultrapassados. O próprio sentido de pertencimento a um determinado grupo adquiriu uma conotação negativa. A defesa de interesses comuns a uma determinada categoria profissional sofre um viés pejorativo, rotulado como corporativismo ou defesa do privilégio. No caso do serviço público, esse viés preconceituoso torna-se ainda mais evidente. O servidor público será sempre um indivíduo anônimo, perdido no organograma da repartição. Não pode esperar lealdade ou amparo de seus colegas.

    Pelo exposto, pode-se afirmar que a sociedade moderna rejeitou os limites éticos, morais ou corporativos, para abraçar um individualismo utilitarista. É permeável, portanto, a todo o tipo de abusos e vem produzindo ambientes de trabalho muito degradados.

    Os estudos sobre assédio moral problematizaram a violência verbal e psicológica nos ambientes de trabalho. Concluíram que não se podem naturalizar o desrespeito e as humilhações, que os trabalhadores não precisam se tornar vítimas de seus empregos, não precisam sacrificar sua saúde mental e física à sua subsistência. Entretanto, essa consciência não obstou que trabalhadores continuassem submetendo-se a condições psicologicamente insalubres, em razão da crescente escassez do emprego.

    Em tempos de globalização da economia, modificações na estrutura empresarial são constantes. A agilidade da empresa em reestruturar-se demanda empregados não só versáteis, como descartáveis. Para que as empresas sejam competitivas, faz-se necessário que os trabalhadores desapareçam ao término de sua utilidade, sem intervenções do sindicato e sem indenizações compensatórias.

    Bauman descreve a situação como tempos de modernidade fluida, em que todos os relacionamentos adquirem a qualidade de líquidos e gases. Ao contrário da modernidade sólida, característica dos primórdios da industrialização, correspondente aos grandes conglomerados, o capitalismo globalizado se define pela constante mudança de forma. Essa contínua e irrecuperável mudança de posição constitui o fluxo, propriedade característica dos fluidos (BAUMAN, 2001, p. 9). A mesma fluidez das instalações produtivas pode ser observada nas equipes de trabalho, cujos padrões de dependência e interação foram quebrados. Em perpétua mutação, migrando de um emprego a outro, ou de uma lotação a outra (no caso do serviço público), os indivíduos se encontram atomizados, isolados, indefesos. Em tempos de modernidade sólida, o próprio grupo se encarregaria de isolar o agressor e coibir o comportamento antissocial; na modernidade líquida, não existem mecanismos para lidar com a agressão perversa. Existe uma luta feroz pela sobrevivência em um mercado de trabalho volátil e altamente competitivo.

    Como a dispensa sem justa causa no Brasil é onerosa, porém não enfrenta entraves sindicais ou legais, o interesse institucional no assédio moral limita-se à maximização do rendimento, no curto espaço de tempo entre o ápice da produtividade e a mais completa exaustão física e psicológica. Ao término do seu tempo útil, evidentemente o trabalhador será substituído por outro, mais jovem e saudável. No que concerne às relações de trabalho, o Estado, como defendido por Bentham, cumpre a função de facilitador das relações de mercado.

    O assédio moral na administração pública, ao contrário, é instrumental para se implantar o modelo de gestão próprio da iniciativa privada. O servidor público, como o trabalhador médio europeu, detém garantias que tornam a sua exoneração difícil, demorada e onerosa. Para que tais garantias sejam contornadas, o assédio moral mostra-se instrumental. Abandonado às suas inclinações, o servidor manterá a mentalidade do escravo: produzir o mínimo possível para evitar o castigo. É preciso motivá-lo por vantagens (gratificações), ou submetê-lo a situações vexatórias de maneira velada, até que se adapte às exigências de produtividade e versatilidade do novo serviço público ou peça a sua própria exoneração.

    Para a configuração do assédio, a motivação sempre se mostrou mais importante do que as atitudes em si. Por assédio no local de trabalho, Hirigoyen entende toda e qualquer conduta abusiva (palavras, atos, gestos e escritos) que possam trazer dano à personalidade, à dignidade ou à integridade

    física ou psíquica da pessoa, que coloquem em perigo seu emprego ou degradem o ambiente de trabalho (HIRIGOYEN, 2006, p. 69). Leymann, por seu turno, define o assédio, ou psicoterror, como toda comunicação hostil e antiética dirigida sistematicamente contra um indivíduo (LEYMANN, 1996, p. 120). A duração e a premeditação excluem, segundo Leymann, os conflitos temporários (LEYMANN, 1996, p. 120) ou involuntários.

    Desconhecimento ou ignorância são usualmente apresentados como causas do mobbing no ambiente de trabalho. O agressor é rotulado como perverso narcisista, que precisa ser orientado para desconstruir seus condicionamentos passados e aprender a respeitar a diferença. Esse rótulo que separa os

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