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Meu corpo ainda quente
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E-book96 páginas1 hora

Meu corpo ainda quente

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Sobre este e-book

Quando você descobriu pela primeira vez que seu corpo não era seu? Em Vermelha, uma fictícia cidade de desova da ditadura militar inspirada na Diadema dos anos 80, mulher nenhuma tem o próprio corpo. É lá que Jô vive e cresce e precisa escolher entre aprender a viver em um corpo emprestado ou sair em uma jornada para tomar o próprio corpo para si. Uma escolha que a levará para dentro da geografia de seu corpo de mulher, esse lugar assombrado, pós-apocalíptico, onde ela terá que negociar com a loucura e com a morte se quiser voltar à vida. "Meu corpo ainda quente" é um romance e também um conto de fadas distópico, mas, antes de tudo, um manifesto poético-feminista.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento12 de mar. de 2021
ISBN9786586135268
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    Meu corpo ainda quente - Sheyla Smanioto

    Falsa folha de rostoFolha de rosto

    Sumário

    Capa

    Folha de rosto

    Chá de quintal

    Corpo desaparecido no meio da rua

    Os nomes que os homens dão pro meu prazer

    Debaixo de outro Corpo

    Cartas de amor pra homens violentos

    Coração partido em um

    Mulher do fim

    A menina que foi morar em um canto do próprio Corpo

    Mais uma carta de amor

    Mulheres possuídas

    Dedicatória

    Créditos

    Chá de quintal

    Minha Mãe não acredita na morte. Eu também não acreditava.

    Melhor nem falar sobre os corpos de Vermelha na frente dela, aqui só morre mesmo quem não presta, ela ia dizer. Também não adiantava perguntar por que ninguém esconde essa gente toda embaixo da terra, junto com as raízes das plantas e com os livros?, porque a gente não fez nada de errado, a Mãe ia dizer, o rosto duro de pedra, aqui em Vermelha só tem medo quem não presta.

    Só quem não presta, então eu corria atrás do meu Corpo, um bicho selvagem e louco, ele corria e eu corria atrás, em volta e em cima das coisas, crianças espantando o pó, fazendo o vento, rindo feito cachorros, um tentando morar no outro, eu e meu Corpo e minha Mãe gritando pra eu parar com isso, ou você vai cair, cair? Eu sinto o frio na barriga, será que é isso? Eu estou caindo? Do meu próprio Corpo?

    Só morre quem não presta, então eu continuo correndo dos gritos e da Mãe vindo atrás, os cachorros da rua latindo, ela me pega no meio da corrida eu sou um saco de roupas em queda livre, ela me chacoalha eu sou coberta e pó, as mãos dela geladas de detergente e raiva, você fica por aí como se esse bicho fosse seu, depois não vem com choro pro meu lado, eu olho chacoalhada pra Mãe, "esse Corpo

    não é meu?"

    Eu olho pras mãos que andava carregando por aí, Mãe?, mãos que cuidei como se fossem minhas, no mundo inteiro é assim, filha, mulher nenhuma tem o próprio Corpo.

    Quando era mais nova eu perguntei pra ela, Mãe, minha Alma é filha da sua?, eu entregava os pregadores de roupa, ela estendia, é, mas isso foi sorte. Às vezes, o Corpo tem uma Mãe e a Alma, outra. A Mãe me contou naquele dia que os corpos são bichos dessa Terra, eles é que sabem viver aqui, eles sabem tudo e ficam tentando contar segredo pra gente nos sonhos. Os bichos vivem aqui já tem tempo, ela me contou, uma geração continuando a outra, aprendendo: os bichos nunca acabam, filha, você já reparou? Você mata um e vem outro viver no lugar. Viver, pro Corpo, é repetir. Então chega a gente pra repetir no Corpo e às vezes ele não quer as mesmas coisas e às vezes a gente é quem não quer, como naquela história de amor, a da mulher que a Alma é apaixonada por outra Alma há mil anos, sabe, filha? Só que o Corpo que ela habita ama outro Corpo desde mais ainda do que dois mil anos, as Almas ficam juntas, Mãe?, não, então os bichos?, não, a mulher fica sozinha, então não é uma história de amor, é a maior história de amor de todas, filha, a história de amor entre um Corpo e sua Alma.

    Agora eu levo essas mãos pra dormir com medo de a Mãe estar certa e o Corpo ter outro dono, ser perigoso, e com medo também de a Mãe estar errada e eu abandonar sozinhos o Corpo, a Alma, a história de amor. A Mãe sente o cheiro da minha dúvida, senta ao meu lado na cama, ela trouxe chá, filha, Mãe, e a história de amor, Mãe? Como é que eu vou…?, filha, tem histórias pra dormir e tem histórias pra acordar e depois você vai sentir que está morta quando vierem pegar seu Corpo de volta, mas ninguém morre sem motivo, filha, em Vermelha só morre quem não presta, tem certeza, Mãe? Só quem não presta?, claro, filha, eu nunca ia mentir pra você.

    Cada palavra agora bate no fundo do peito gira feito moeda faz barulho então eu preciso de alguns dias pra tomar coragem e perguntar, a voz bamba, Mãe, pra onde a gente vai quando tomam nosso Corpo?, colhíamos o quintal pra fazer chá, pro canto, que canto?, do bicho. Quando pegam nosso Corpo, parece que é a loucura ou a morte. Não é a morte. Aqui em Vermelha só morre quem não presta, então é a loucura?, não, você está achando que é filha de qualquer uma? Você é minha filha e quando chegar a hora eu vou te ensinar onde fica o canto. Como ir pra lá, sem hesitar. Como não se afogar. Primeiro é difícil, depois a gente aprende, aos poucos a gente aprende a repousar a Alma feito poeira no armário, no calor de uma xícara de chá, olhe a minha Alma agora mesmo fervendo com a água, olhe lá.

    A Mãe não tinha como saber o que ia acontecer, tinha?

    Um dia a gente foi na casa da Hilda buscar não sei o quê, na volta a Mãe abriu a porta de casa falando do pé de limão carregado, parou de falar, fatiada, azeda, me botou atrás dela e foi caminhando até o Corpo sentado, não sei se ele estava vivo quando chegamos. A Mãe acho que também não tinha certeza. O Corpo era um homem esperando a Mãe servir, as pernas enfiadas na terra, o jeito de alguém pra quem a gente deve dinheiro. No lugar de sua mão esquerda

    não havia um gancho e sim

    uma garrafa de cerveja. Não conheço esse homem, mas ele deve ser de Vermelha.

    A Mãe entra, vai pra pia, ela demora pra fazer o café nesse dia. Eu fico grudada nela feito outro pano de prato dobrado em sua cintura. A Mãe pensando com as mãos, com a caneca e com a água, com o pó de café e com o açúcar, termina de fazer o café e finalmente está pronta.

    Esse é o seu pai, João, ela me diz pela primeira vez.

    O segundo nome a Mãe já tinha me dado bem antes, ela achava que assim escondia o meu Corpo, que era só me chamar de João e pronto. Em casa eu era

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