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Leonardo da Vinci e o feminino
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E-book486 páginas3 horas

Leonardo da Vinci e o feminino

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Sobre este e-book

UM NOVO OLHAR SOBRE A VIDA E OBRA DO GRANDE GÊNIO 500 ANOS APÓS A SUA MORTE.

Com suas inspirações, perspectivas visionárias, máquinas de sonho e estudos de anatomia, Leonardo da Vinci é tido como o precursor dos tempos modernos. Menos conhecido, no entanto, é seu retrato revolucionário da mulher moderna séculos antes de movimentos feministas como Me Too, Time's Up e muitos outros.
Antes de Da Vinci, os retratos das mulheres eram sem vida, impessoais e as mostravam principalmente de perfil. Leonardo quebrou esses limites: fez várias de suas cobaias, incluindo Mona Lisa, olharem para o espectador, dando-lhes poder e autoridade, duas coisas que certamente não faziam parte do universo feminino da época.
Nesta biografia, a historiadora de arte e jornalista Kia Vahland relata toda a vida de Leonardo e mostra como ele conseguiu se tornar o grande artista da sua época: aliando-se às mulheres. O livro inclui esboços e pinturas que evidenciam a nova abordagem de Leonardo e também mostra como Raphael, Giorgione e o jovem Ticiano foram influenciados pelas mulheres de Da Vinci.
Este novo olhar sobre a vida de Leonardo da Vinci explica como o artista quebrou convicções e, desse modo, desenvolveu uma nova visão da natureza e da arte, das mulheres e dos homens, da ciência, da religião e da política. E, com isso, mudou para sempre a maneira como o feminino é representado.




IdiomaPortuguês
Data de lançamento13 de abr. de 2021
ISBN9786555611007
Leonardo da Vinci e o feminino

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    Leonardo da Vinci e o feminino - Kia Vahland

    I. Infância

    Corre tudo bem. O bebê está bem alimentado, dormiu bem e é amado. Fica nu à vontade numa confortável almofada de veludo, enquanto a mãe lhe cobre as costas com mãos tão seguras e tão firmes, que as pontas dos dedos deixam uma marca na sua pele gorda de criança ⁷ (figura no 1). Nada lhe pode acontecer. Mesmo nada. Com a perna esquerda dá pontapés no ar, como se quisesse medir a sua força contra um oponente imaginário. Mas não há mais ninguém, só ele e ela, no palácio escuro que às vezes parece uma caverna, com as janelas que terminam em arco e que deixam ver uma paisagem montanhosa sobre um fundo azulado quase cintilante. Uma luz quente banha-lhe o corpo rotundo de bebê, iluminando-lhe o tronco onde se notam os músculos e a cabeça quase sem cabelo. Mais iluminadas ficam a face clara da mãe e a curva entre os seus seios. Ela é linda, de feições discretas e ainda juvenis, boca pequena, pálpebras semicerradas sob as sobrancelhas altas e claras. Pôs-se bonita. Há de ter passado horas a entrançar a cabeleira, evitando que algum cabelo lhe tombe para a testa, fazendo-o descair pelos lados, emoldurando-lhe o rosto de anjo num véu dourado e fino. Um quartzo transparente e que parece tremeluzir prende-lhe o robe e impede que ele se abra, cruzando-lhe o peito numa superfície bordada, por cima dos seios pequenos que ainda devem ter leite para o bebê.

    Ao contrário da criança, a mãe está agora completamente vestida. Debaixo da capa tem um vestido vermelho de gola alta, com uma echarpe de seda colorida a cair-lhe do ombro para o regaço. As várias peças de roupa parecem mais antigas, como se a pessoa que as veste, no final do século

    XV

    , estivesse ansiosa por regressar à Antiguidade. Mas não é coisa que interesse ao filho. Ela é a mãe dele e é com ele que está. E ele gosta de brincar com a mãe, gosta da brincadeira que ela lhe propõe. A mãe pega no pé de um cravo com a mão esquerda, pondo-o no campo de visão do filho. O bebê estende as duas mãos, tenta concentrar-se, tenta agarrar a flor vermelha sem, no entanto, lhe tocar de imediato.

    É como se pensasse maduramente antes de agir. Como se estivesse disposto a examinar a flor e o seu destino para dele se apropriar. Tem uma expressão muito séria para a sua idade. Mas, também, como poderia ser de outro modo? O seu nome é Jesus Cristo e não viverá mais do que a mãe, morrendo diante dela pela Humanidade em menos de 33 anos, crucificado com pregos quase tão compridos como o pé do cravo. A flor, de um vermelho da cor do sangue, fala do amor de Deus, seu pai, que levará à paixão do filho, que é o único filho de Maria. E ela, a jovem mãe, não mostra medo no seu retrato, apesar de tudo. Aprecia a proximidade do filho tão enérgico, a sua própria beleza, o silêncio do palácio. Esse momento é dela e do seu bebê.

    Embora não completamente. Por mais que Leonardo da Vinci procure concentrar-se nos protagonistas do quadro de pequenas dimensões que está pintado em Florença, pensa ainda mais nas pessoas que vão observar o quadro, tanto na sua época como mais tarde. E uma das primeiras será Juliano de Médici, o impetuoso irmão mais novo de Lourenço de Médici. Os símbolos do brasão da família são esferas, e as pequenas esferas de vidro discretas que pendem da almofada do menino podem ser tomadas como uma alusão. Por sua vez, os arcos das modernas janelas que aparecem no quadro assemelham-se às do palácio dos Médici onde vive Juliano. O símbolo da pureza de Maria é visível embaixo, à direita: um vaso de flores pintado que o biógrafo de Leonardo, o pintor e autor Giorgio Vasari, considerou, no século

    XVI

    , especialmente entusiasmante. Vasari relata que o quadro esteve na posse do papa Clemente Vil, filho ilegítimo de Juliano de Médici. O pai encomendou-o diretamente ao artista. O ouro, as finas camadas de tinta, a meticulosidade: o fato de se tratar de uma encomenda dos Médici pode explicar o esforço de Leonardo que aqui se revela.

    Este quadro da Virgem Maria é um dos primeiros quadros conhecidos de Leonardo da Vinci. Quando ele fica pronto, em 1475, o pintor é um jovem de cabelos compridos encaracolados que já é membro de pleno direito da guilda dos pintores de Florença. Mas Leonardo ainda vive e trabalha com o seu professor, seja pela fidelidade que lhe vota, seja por não haver empregos suficientes numa cidade tão preenchida de arte e de artistas.

    O mestre de Leonardo, Andrea del Verrocchio, dirige uma oficina que tem prosperado na Via Ghibellina, a poucos passos do Palazzo Vecchio, o palácio municipal. É uma zona ocupada por artesãos e pequenos comerciantes, que propõem os seus serviços nas ruas da cidade. Os artistas trabalham em geral num espaço grande sem janelas, virado à rua e de porta aberta, o que convida os transeuntes a deterem-se e a espreitarem. Para cozinharem e para dormirem, as famílias dos artistas e os aprendizes instalam-se em divisões interiores ou no andar por cima.

    Andrea provém de uma família de operários da cerâmica e o mundo da arte, para ele, significou uma ascensão social. Antes de se dedicar à escultura e só depois à pintura, aprendeu a arte da ourivesaria. Foi como demonstração de gratidão perante um velho mestre dessa especialidade que tomou o apelido de Verrocchio. Agora, o seu ateliê é uma roda-viva de pessoas ricas e poderosas. Andrea, Leonardo e os seus outros colaboradores podem fazer tudo: esculpem, cinzelam, moldam o bronze, forjam armas, pintam, fornecem as joias para as festas, cenários para teatros e fazem renovações de interiores de palácios da aristocracia. Para as encomendas mais importantes, Andrea coopera com mestres que lhe estão ligados, entre os quais o jovem Sandro Botticelli, que em breve será célebre.

    Os Médici e os outros senhores locais são clientes assíduos da oficina. Das montagens tradicionais com joias enfeitadas com motivos de família a baús de casamento, passando por pedras tumulares, tudo se consegue obter na Via Ghibellina e uma bolsa bem recheada de ouro ajuda a tornar a vida e a morte igualmente elegantes. Só da pintura de afrescos é que Andrea não se ocupa, deixando-a para os seus rivais, os irmãos Pollaiuolo, mais dotados nesse domínio do que o escultor.

    Os quadros da Virgem Maria sobre madeira de choupo fazem parte do repertório padrão de Andrea del Verrocchio. Mas nenhum é tão sofisticado como A Madona do Cravo, de autoria do jovem Leonardo. Esse quadro baseia-se, provavelmente, no mesmo modelo de moça de Verrocchio ou, pelo menos, no ideal de beleza feminina, de uma mulher jovem de rosto inteiro com o cabelo cuidadosamente entrançado. Leonardo, como todos os discípulos de Andrea, tem copiado os desenhos de cabeças femininas do seu mestre ao longo dos anos, utilizando lápis ou pluma sobre papel ou estiletes metálicos sobre madeira mais barata (ver também ilustração no 35).

    Contudo, apesar de toda a feminilidade bem proporcionada e harmoniosa, a Madona de Leonardo é diferente. Reprime as emoções, está visivelmente pensativa e sabe na perfeição o que quer, quando estende o cravo ao menino. O retrato não é um simples instantâneo do momento. Ilustra um movimento na relação com outros, uma interação entre dois seres ligados pela intimidade, mas que, apesar disso, têm sentimentos inteiramente autônomos.

    Há partes da pintura em que o autor usa tinta de óleo que, ao contrário da clássica tinta de têmpera à base de ovo, demora mais tempo para secar. É o que lhe permite aplicar outra tinta sobre a que está ainda úmida, deixando que as tonalidades se misturem. O pequeno quadro é mais uma experiência do que uma obra terminada porque, embora a tinta de óleo já seja usada em Florença, a sua tecnologia não está tão desenvolvida como na Flandres.

    Leonardo sente-se maravilhado com o modo natural como as tintas com óleo se ligam entre si. Entre outras coisas, desenvolve uma arte de transição suave entre o claro e o escuro nesta imagem da Virgem. Só que ainda não sabe muito bem que quantidade de óleo deve usar na mistura das cores. E o seu mestre Verrocchio não o pode ajudar, porque começou agora a pintar e prefere usar a tinta florentina de têmpera. Portanto. Leonardo faz a mistura com as proporções erradas e a Madona ganhará, em breve, rugas profundas que fazem com que a imagem, à superfície, continue a parecer rugosa, ainda hoje.¹⁰

    Com este suave jogo de sombras, Leonardo situa mãe e filho no momento presente do palazzo e envolve-os numa impressão de distanciamento que frequentemente os rodeia em representações mais antigas. Os dois estão num espaço que os parece proteger e que, sendo sombrio, não é uma prisão, abrindo-se para uma vasta paisagem divina onde sobressai o cume de uma montanha, como raras vezes se encontra na Toscana e que faz mais parte da capacidade de imaginação do artista. Distância e proximidade induzem luz e sombra, vida e morte. Leonardo é ainda um jovem que pouco conhece da vida. Mas já tem uma ideia de como ela é, no seu conjunto, ao vê-la refletir-se nos rostos das pessoas mais vulgares.

    *****

    Um bom pintor tem duas coisas importantes que deve pintar, anota Leonardo, mais tarde, que são as pessoas e o propósito das suas almas.¹¹ E essas pessoas não são apenas personagens masculinas. São, pelo contrário, as mães que, nos anos 70 e 80 do século

    XV

    , lhe servem para ele representar as suas convicções fundamentais: os impulsos e as emoções da psique e do intelecto expressam-se nos movimentos do corpo. Com alguns movimentos do lápis, o desenhista pode deixar na página uma jovem em andamento, com a sua trança de rabo de cavalo a oscilar enquanto caminha. Tem de equilibrar na parte superior do corpo o peso do seu filho robusto que, no caminho à frente deles, já descobriu qualquer coisa de interesse, querendo agora olhar para baixo, com gestos que acompanham o sentido descendente da visão. A mulher não quer reprimir a curiosidade do pequeno, mas tem de pensar no seu próprio objetivo e de lidar com a força da gravidade da maneira mais suave possível.¹² A criança quer e deve mover-se porque, mesmo sendo pequena, já começa a pensar pela sua própria cabeça (ilustração no 1).

    Ilustração no 1:

    Leonardo da Vinci, estudo de mulher jovem com criança, Museu Britânico, Londres

    No Renascimento, e mesmo durante algum tempo depois, tornou-se hábito enrolar os bebés com faixas que lhes prendem os braços e as pernas, impossibilitando-lhes os movimentos. Leonardo não está de acordo, como se nota. E aconselha os pintores a olharem com desvelo para o modo desajeitado como as crianças se mexem: As crianças pequenas estão à vontade e são desajeitadas quando estão sentadas, mas em pé mostram-se tímidas e receosas.¹³ Fascinam-no as crianças que emergem livremente dos braços seguros das mães à descoberta do mundo.

    E o mundo, como se vê noutro desenho, é como um gato doméstico que, não sendo perigoso, é difícil de conquistar (ilustração no 2).¹⁴ O menino procura agarrá-lo, mas o animal não quer brincar e esquiva-se à sua curiosidade intrusiva. A mãe, sorridente, está sentada segurando os dois, no seu colo amplo e preenchido por sombras. Não intervém. Deve ser o filho a ter as suas próprias experiências e a compreender que o mundo nem sempre funciona como nós esperamos que funcione. Com uma expressão doce, o menino parece perceber que deve ser tão paciente com o gato teimoso como a mãe o é com ele.

    Ilustração no 2: Leonardo da Vinci, estudo de Madona com gato, Museu Britânico, Londres

    Só quem conhece o amor pode amar. Mas no Renascimento não existe esse entendimento. Que as mulheres possam amar é uma questão que até suscitará um debate animado no século

    XVI

    . A tendência é esta: é melhor que isso não aconteça. Elas só podem recusar com frieza ou aceitar com humildade, e o sentimento, em toda a sua amplitude, está reservado ao homem. No entanto, além de algumas autoras muito eloquentes que erguem a sua voz no Alto Renascimento, há também humanistas masculinos que contrariam essa tendência e que pensam que as mulheres são capazes de amar.¹⁵

    Na pintura há, pelo menos, um sentimento feminino que é inquestionável: o amor maternal, que é destacado, em quase todas as casas, pelos retratos da Virgem Maria pendentes das suas paredes. O mais popular de todos os motivos tem um sentido pedagógico, além do sentido religioso. Os rapazes devem tomar como modelos os jovens Jesus e João, festejá-los e tentar ser iguais a eles. As moças devem aprender com a modéstia de Maria e ter como modelo o seu papel de mãe que, segundo o pensamento dominante do Renascimento, é o destino próprio de cada mulher. As noivas recebem bonecos com o aspecto de Jesus para se exercitarem a ser mães.¹⁶

    Em alguns quadros (que também se encontram no ambiente em que vive Leonardo), Maria oferece ao seu filho um seio nu.¹⁷ A amamentação consolida a maternidade, proclamam os pregadores e os humanistas. Diz-se que o pai define, com a sua semente, a forma e o espírito do seu descendente e que o contributo da mãe é dado pela alimentação, primeiro no ventre e, depois do nascimento, com o leite. É uma situação que nasce da acumulação do sangue menstrual no corpo durante a gravidez. Essa informação errada, que surgiu na Idade Média, ainda influenciou Leonardo durante algum tempo.

    Porém, a responsabilidade comum dos pais pela criança não passa, na maior parte dos casos, do domínio da teoria. Na prática, o papel da mãe quase nem conta e o contributo do pai, pelo contrário, vale tudo, numa sociedade em que a sequência sucessória não dá às mulheres quaisquer direitos sobre os próprios filhos. As bonitas palavras de um pregador do século

    XIII

    sobre os ternos sentimentos da mãe de Deus durante a amamentação e o seu maravilhamento ao alimentar o Filho caem em saco-roto.¹⁸

    Aliás, muitas das florentinas mais abastadas nem sequer amamentam. Os seus maridos fazem contratos com os maridos das amas, e são estas que se encarregam da tarefa. Os pais têm uma preocupação especial: a de que uma nova gravidez pode tornar impuro o leite das suas mulheres. E querem ser novamente pais, e em breve, porque a existência de vários descendentes aumenta a possibilidade de virem a ter herdeiros. Ter muitos filhos legítimos é importante para o estatuto social dos homens e uma relação mais íntima entre mãe e filho, nos primeiros anos de vida, é apenas uma questão secundária para alguns. Dos casais em que a mulher é ama de leite, espera-se que renunciem às relações sexuais e que informem, de imediato, se a mulher ficar grávida, para o contrato poder ficar sem efeito.¹⁹

    O costume, alheio aos bons conselhos, de entregar os bebês às amas de leite pouco depois do seu nascimento, é praticado, no século

    XV

    , não apenas pelas famílias abastadas, mas também por muitas outras, segundo os seus relatos e os relatos de notários, artistas, comerciantes e médicos. A questão parece ser apenas a da ama que se escolhe: se vai para a casa da família, como nas famílias ricas, ou se vive fora, se acabou de dar à luz (situação que é considerada vantajosa) ou se já foi mãe há mais tempo. A pressão econômica sobre os casais das amas de leite é tão grande que muitos confiam os seus próprios recém-nascidos a amas ainda mais pobres ou entregam-nos ao orfanato fundado em Florença em 1445. A mulher de um comerciante de Prato, que era intermediária de amas de leite, gabou-se da crueldade de ter obtido de uma mãe, logo na noite da morte do seu próprio bebê, a garantia de que aceitaria, para amamentar, um bebê alheio.²⁰

    Muitas crianças que estão a ser amamentadas morrem quando estão ao cuidado das suas amas de leite. Para o prevenirem, os pais fazem-nas acompanhar de cruzes, medalhas de santos ou dentes de lobo em prata que servem de amuleto. Mas nos casos em que a ama de leite mora longe, o pai e a mãe perdem rapidamente o contato e o controle. A situação é mais fácil para os aristocratas, cujos filhos são amamentados em casa. Muitos adquirem escravas para o serviço doméstico. São tártaras, búlgaras, russas, mongóis ou gregas, raptadas e postas à venda nas cidades costeiras por onde passa o tráfego marítimo. São frequentes as situações em que os proprietários abusam sexualmente das escravas, entregam os respetivos filhos a um orfanato e exigem-lhes que amamentem a sua prole legítima em casa. E se pouco conta a noção adquirida de que uma mulher pode definir as características da criança que amamenta com o seu leite, na prática nem é necessário que a ama de leite tenha de ser uma mulher livre ou cristã, sendo suficiente que tenha pele branca, como acontece com as escravas do Leste.²¹

    Que a amamentação pode ser outra coisa e, talvez, uma questão de amor para a mãe, sendo ainda importante para o desenvolvimento da criança, é o que já afirmam no Renascimento pensadores como Leon Battista Alberti e, mais tarde, Erasmo de Roterdã e Michel de Montaigne, que se apoiam em Plutarco e em outros autores da Antiguidade. Mas, em primeiro lugar, estão os artistas que mostram aos florentinos, nos retratos da Virgem, como pode ser tão íntimo o amor maternal. As suas belas imagens não representam a realidade, mas o desejo dos florentinos, não traduzido em palavras, dos cuidados maternos que vão para lá do poder absoluto do pai. A salvo da religião, trazem um conhecimento reprimido para a sala de estar e para o quarto e relatam o valor emocional das ligações sociais que não podem ser avaliadas em dinheiro.

    Não tarda que os próprios artistas sejam uma espécie de embaixadores da amamentação. Quando Giorgio Vasari escreve, no século

    XVI

    , as biografias dos grandes artistas do Renascimento, procura também encontrar na infância de cada uma explicação para o seu talento. O pai de Rafael, como pintor, não era especialmente virtuoso, determina o biógrafo. Essencial para o carácter do jovem não foi a capacidade do pai, mas os cuidados que lhe dispensaram pai e mãe. Inteligentemente, o pai de Rafael decidiu deixar a mãe amamentar o rapaz para que, na sua tenra idade, possa beneficiar da educação paterna na sua própria casa em vez de nas casas dos camponeses e das pessoas comuns, onde terão menos cuidados e poderão aprender maus modos.²² O coração de um bebê torna-se nobre por via do leite materno.

    A amamentação também é exaltada por Michelangelo Buonarroti, a quem uma ama de leite deu o peito na sua infância. O escultor cultiva um amor-ódio pelo pai biológico, que lhe quis arrancar à força a inspiração da sua carreira. Que, apesar de tudo, tenha singrado como artista é atribuído pelo próprio Michelangelo à boa influência da sua ama de leite, que era casada com um cortador de pedra da região. É à ama de leite e ao marido que agradece o seu talento de saber trabalhar o mármore, como salienta Vasari numa citação de Michelangelo: Foi também com o leite da minha ama que aprendi igualmente a utilizar o cinzel e o martelo, que me ajudaram a criar as minhas figuras.²³

    E Leonardo da Vinci? A ele fascina-o o desenvolvimento infantil. Sobretudo nos primeiros anos, mas depois também mais tarde, pinta e desenha intensamente a Virgem Maria (figura no 2).²⁴ Destaca-se no seu trabalho a maneira harmoniosa como mãe e filho estão unidos e como, em especial, o Menino Jesus age. Essa criança é uma ferramenta de poderes mais elevados, mas um ser humano menor, sendo a mãe um ser humano maior. E da sua própria infância também se ocupa o artista. Ao longo da vida vai-se recordando dos pormenores: da paisagem e dos seus montes, de um pássaro especial, das roupas de mulher. Parece, por vezes, que o artista está a contemplar com tristeza a sua arte como se o tema da Virgem Maria com a criança nele despertasse recordações de um paraíso prematuramente perdido.

    *****

    Quando Leonardo nasceu, ao final da tarde do dia 15 de abril de 1452, na aldeia de 400 habitantes chamada Vinci, a sua família ficou feliz. Mas também envergonhada. Porque pai e mãe não eram casados. A mãe, Caterina, deve ter sido uma órfã natural de Vinci, que ficou entregue a si própria com o irmão, mais novo do que ela, sem possuir um dote que, à semelhança de outras adolescentes, lhe fosse útil para o casamento. Descendia de uma família de pequenos agricultores, possuidores de alguma terra que ficou pertença do irmão, de dois anos, depois da morte dos pais e que acabou ao abandono. Além de um primo afastado e da mulher dele, Caterina não tinha mais família quando esteve com o pai de Leonardo, Piero da Vinci, com 15 anos de idade.²⁵ Piero, já na casa dos 20 anos, era o filho mais velho de uma respeitada família de notários que usava um leão alado como símbolo heráldico. Em Vinci, que a família tomou como nome, estavam no patamar dos quatro por cento mais ricos, possuindo vastas propriedades. Piero já trabalhava em Florença como notário, o que lhe valeu o título honorífico de Ser Piero. O sustento da família era assegurado pelo avô de Piero, Antônio, um aristocrata rural que gostava de desfrutar a tranquilidade campestre de Vinci e de jogar halma nas horas vagas.

    Como patriarca da família, era Antônio quem tomava as decisões importantes. E foi ele que se decidiu a apoiar o neto recém-nascido, batizado em Vinci no dia seguinte ao do nascimento. Dez homens e mulheres, pessoas de respeito na aldeia, assumiram o papel de padrinhos e madrinhas. Para Antônio, o filho primogênito de Piero não devia ficar ao cuidado da mãe, que era solteira e pobre, nem crescer num orfanato. Com a mulher, Lucia, decidiu ocupar-se pessoalmente do rapaz, que não seria um fruto de embaraço para o pai, Piero, que no mesmo ano se casou com a filha de um notário, Albiera, de 16 anos.

    Antônio também se ocupou de Caterina, arranjando-lhe um casamento com um jovem carvoeiro cuja família possuía terras e algumas casas perto de Vinci, em Campo Zeppi. As duas famílias mantêm contatos esporádicos ao longo de várias décadas. O padrasto de Leonardo, o carvoeiro, tornou-se mais tarde testemunha de Ser Piero na assinatura de vários contratos notariais e, em troca, o notário ocupou-se do contrato de casamento de uma filha do casal.

    Talvez esse tipo de relacionamento tenha evitado a Leonardo a habitual separação da mãe depois do nascimento. É possível que tenha sido Caterina a amamentar o próprio filho, como mãe e ama de leite. Piero não tinha motivo para afastar o fruto do seu devaneio da amamentação materna, como poderia ter feito com uma esposa apropriada. É possível que Leonardo, pelo menos até ao casamento da mãe no ano seguinte, fosse autorizado a estar com ela, que Caterina fosse esporadicamente a casa do avô ou que até mantivesse o bebê consigo. De qualquer modo, passados dois anos sobre o nascimento de Leonardo, já ela estava de novo grávida e, agora, com uma filha.

    Com cinco anos, pelo menos, o rapaz estava vivendo na casa rica dos avós paternos. É o que se infere da declaração fiscal do avô. Os registros fiscais relativos ao marido de Caterina revelam que nessa altura o casal possuía trigo e vinho, vivendo, no entanto, em circunstâncias modestas com os seus cinco filhos legítimos. Leonardo não deve ter deixado de ver a mãe na pequena aldeia que era Vinci, mas o contato não se manteve tão intimamente e o rapaz acabou por crescer longe da sua mãe verdadeira.²⁶

    A separação deve ter custado aos dois. Bastante mais tarde, já então na casa dos 40 anos e com ateliê próprio, Leonardo anota nos seus registros a súbita chegada de uma Caterina a sua casa. Nessa altura, a mãe acabara de enviuvar. Dois anos mais tarde Leonardo registra com circunspeção o custo da modesta sepultura desta Caterina: quilo e meio de cera de velas, uma campa com baldaquim e um sino, a cruz que há de ser erguida e os honorários do coveiro, do padre e do coro. Como tantas vezes acontece nas suas notas, Leonardo abstém-se aqui de fazer comentários pessoais. Por esse motivo não se pode saber se será verdadeiro o que se pode supor: que a sua mãe, Caterina, passou os últimos anos da sua vida junto do seu filho primogênito.²⁷ Talvez o pintor mantenha deste modo alguma comiseração e um sentido de família. Talvez queira, também, compensar o que uma vez perdeu: uma vida cotidiana vulgar de mãe e filho.

    *****

    Um filho ilegítimo é um estigma na Itália do Renascimento.²⁸ As famílias são as unidades mais ínfimas da sociedade e também as mais importantes, e são elas – e, no seu âmago, a figura paterna – que decidem sobre a educação e a ocupação profissional dos filhos e a escolha de um parceiro de vida. Quem não for filho legítimo, não chega a pertencer a esse universo. E tudo quanto uma criança dessas deseja é um ato de clemência. Há pais que tratam os filhos ilegítimos como criados, em especial quando as mães são escravas ou criadas. Outros, como Ser Piero, olham pelos seus filhos naturais (mas já não pelas filhas) porque os veem como uma reserva para o caso de não terem um filho do casamento que lhes sobreviva. Essa salvaguarda vale bem o custo de uma educação, até por ela ser em geral mais barata do que para os filhos legítimos.

    Quando crescem, os filhos naturais não podem fazer exigências às suas famílias. Embora um pai não possa, simplesmente, deserdar os seus descendentes legítimos, tem de incluir no testamento de forma bem explícita os filhos ilegítimos e, mesmo assim, ainda pode haver conflitos jurídicos, depois da sua morte, com outros elementos da família. Foi o que aconteceu na família Da Vinci: ao fim do terceiro e do quarto casamentos, o pai já tem 15 filhos e Leonardo já há muito que se tornou adulto. Ser Piero tem, entretanto, nove filhos varões como herdeiros legítimos, o seu primogênito nada recebe e ainda terá de estar, no fim sua vida, em tribunal para disputar com os seus meios-irmãos a herança do seu tio preferido, Francesco que, falecido sem filhos, deixou ao sobrinho mais velho todos os seus bens.²⁹

    Quem, em Florença e nos seus arredores, nasceu fora do casamento, tem de fazer sozinho pela vida e obter o reconhecimento social pelos seus próprios meios, o que servirá para afastar as atenções do seu mau estatuto social. É uma situação que não é incomum. Em Florença é habitual que as moças da burguesia e da aristocracia se casem ainda adolescentes, enquanto os homens só o fazem 10 ou 20 anos mais tarde. É tempo mais do que suficiente para que existam muitos nascimentos ilegítimos de mulheres das classes mais baixas.

    *****

    Leonardo passou relativamente bem a sua infância. Além dos avós, o rapaz está também ligado à sua primeira madrasta, Albiera.³⁰ No início, é filho único, acarinhado na grande casa rural da família, que tem uma horta e vista para o castelo de Vinci. O pai, Ser Piero, passa mais tempo em Florença, o seu negócio prospera, vai-se mudando para casas cada vez melhores situadas na cidade e já veste os casacos de cor vermelho-violeta da aristocracia. É possível que pouco veja o filho. Mas na casa vizinha do avô vive o irmão de Ser Piero, Francesco, que é só 15 anos mais velho do que Leonardo e que gosta de se ocupar do pequeno.

    Ou por viver no campo ou por ser uma criança que vive fora de um casamento, não sendo por isso demasiado protegido, Leonardo aproveita toda a liberdade em que vive, em Vinci. Desenha muito e sempre com a mão esquerda, pormenor com que ninguém se importa. E pode andar à vontade pelos campos, brincando com gatos e cães e talvez mesmo aprendendo a montar a cavalo. Tem todo o tempo do mundo para observar as nuvens, perseguir pássaros, apanhar lagartos e outros animais. Tudo lhe interessa. Maravilhado, absorve a vida rural, observa um lagar de azeite, estuda os cursos de água e vê as mulheres a construírem as suas cestas de vime, fazendo assim jus ao nome da aldeia: Vinci não vem da palavra latina para vencer, vincere, mas da antiga palavra italiana vinco, que significa vime.

    Talvez Leonardo, por ser filho único, tenha feito muita coisa sozinho. Mais tarde, advertirá nos seus escritos que o ser humano se deve entregar à natureza para melhor a aperfeiçoar. E é disso que se trata: compreender por que motivo as coisas são como são. Já adulto, andará sempre com um caderno à cintura para ir registrando as suas observações. Escreverá sobre o voo das aves e sobre a capacidade das máquinas para substituírem a força dos músculos. Detém-se na questão de saber por que motivo os cães cheiram as partes traseiras dos outros cães (porque conseguem, pelo cheiro, saber se o outro está suficientemente bem alimentado, diz Leonardo).³¹ Ou tenta interpretar as nuvens e compreender as leis da água. A natureza é a sua mestra, gosta ele de dizer, e é com os seus extraordinários poderes de observação que chega às conclusões que outros alcançam só com estudos demorados.

    Todavia pouco mais pode fazer. Quando criança vai à escola, escreve e faz contas e lê textos contemporâneos. O latim é que não aprende. Depois, saído da escola básica, o pai tira-o do ensino. A escolarização humanista mais avançada obriga a estudar durante mais tempo e conduz a uma carreira jurídica, para se ser notário, para o que é essencial uma origem no quadro da lei vigente.³² O filho tem de aprender para poder seguir uma profissão e começar rapidamente a ganhar a vida. Ser Piero recorre ao versátil Andrea del Verrocchio, que dirige um ateliê e de quem é um bom cliente. O artista considera o jovem, que nessa altura tem 14 anos, talentoso e acolhe-o. E é assim que, por volta de 1466, Leonardo começa a sua vida profissional no melhor ateliê da cidade.³³

    Embora isso também seja, abertamente, uma opção sua, Leonardo desenha muito e com satisfação. A falta de uma educação acadêmica incomoda-o durante algum tempo e, mais tarde, já artista e investigador, aprenderá latim sozinho, lendo e reunindo uma biblioteca considerável. Porém, não deixa de sentir que lhe falta qualquer coisa, como filho de segunda categoria do notário.

    Anos mais tarde, quando já havia conseguido alcançar alguma coisa na vida, desconfia de que os estudiosos arrogantes o desprezam por não ter saído da escola sabendo alguma língua antiga. E é por isso, também, que passa à ofensiva. Orgulha-se de, com os seus métodos, ser um inventor, como escreve, e alguém que só confia nos seus próprios olhos, nas experiências simples e na verdadeira mestra. Por sua vez, os literatos aparecem-lhe inchados e pomposos, desprezando o meu próprio trabalho. Mas há que censurá-los, porque nada inventam, fazendo-se eco das obras dos outros. E há que desprezar Os que só desejam riquezas e prazeres materiais e desconhecem o desejo do conhecimento enquanto alimento e verdadeira riqueza da alma. O seu segredo é portar-se como um homem pobre, que é o último a ir ao mercado e que leva o que os outros desprezaram. Nomeadamente aquilo que podem ver e em que podem pegar com as suas próprias mãos.³⁴

    Obstinado e com a certeza de vir a ter êxito, às vezes quase arrogante, trilha o seu próprio caminho. Se não fosse filho ilegítimo e fosse primogênito reconhecido como tal, talvez não o tivesse podido fazer. Sem a vergonha da sua origem não legitimada pelo casamento, é de crer que

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