As Máscaras de Artaud
De Renan Pavini
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As Máscaras de Artaud - Renan Pavini
As máscaras
de Artaud
Renan Pavini
Anexo: tradução inédita de
AS NOVAS REVELAÇÕES DO SER
de ANTONIN ARTAUD
2021
© 2021, Renan Pavini
2021, PUCPRESS
Este livro, na totalidade ou em parte, não pode ser reproduzido por qualquer meio sem autorização expressa por escrito da Editora.
Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR)
Reitor
Waldemiro Gremski
Vice-Reitor
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Pró-Reitora de Pesquisa, Pós-Graduação e Inovação
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PUCPRESS
Coordenação: Michele Marcos de Oliveira
Edição: Susan Cristine Trevisani dos Reis
Edição de arte: Rafael Matta Carnasciali
Preparação de texto: Juliana Almeida Colpani Ferezin
Revisão: Juliana Almeida Colpani Ferezin
Capa e projeto gráfico: Rafael Matta Carnasciali
Diagramação: Rafael Matta Carnasciali
Conselho Editorial
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Aléxei Volaco
Carlos Alberto Engelhorn
Cesar Candiotto
Cilene da Silva Gomes Ribeiro
Cloves Antonio de Amissis Amorim
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Dados da Catalogação na Publicação
Pontifícia Universidade Católica do Paraná
Sistema Integrado de Bibliotecas – SIBI/PUCPR
Biblioteca Central
Pamela Travassos de Freitas – CRB 9/1960
P338m
2021
Pavini, Renan.
As máscaras de Artaud / Renan Pavini. – Curitiba: PUCPRESS, 2021.
168 p. ; 21 cm.
Anexo: tradução inédita de As novas revelações do ser de Antonin Artaud
Inclui bibliografia
978-65-87802-62-6
978-65-87802-59-6 (e-book)
1. Metafísica. 2. Loucura. 3. Artaud, Antonin, 1896-1948. I. Título. II. Título.
21-080 CDD 20. ed. – 110
Só tenho uma ocupação: refazer-me.
Antonin Artaud
Não me pergunte quem sou e não me diga para
permanecer o mesmo.
Michel Foucault
Ao Vicente,
minha parte mais lúdica.
À amiga Marta Dantas e
aos amigos Marcos Nalli,
Cesar Candiotto e José Weber,
pelos constantes aprendizados.
Sumário
INTRODUÇÃO
Artaudgábalo
CAPÍTULO 1: O TEATRO DE HELIOGÁBALO
CAPÍTULO 2: ESCREVER PARA MORRER
CAPÍTULO 3: DA IMPOSSIBILIDADE DE PENSAMENTO PARA O PENSAMENTO IMPOSSÍVEL
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Anexo
REFERÊNCIAS
INTRODUÇÃO
É muito comum, em nosso cotidiano, utilizarmos a palavra máscara de forma depreciativa. Expressões como a máscara cai
ou tire a máscara
pressupõem, antes de tudo, uma ontologia do sujeito; um sujeito que, dotado de uma verdade sobre si mesmo, vive na aparência, na hipocrisia ou na mentira. Retirar a máscara seria, então, esse momento em que o sujeito se apresenta em sua essencialidade, em sua verdade, e, portanto, em sua constância, afastando-se de si a mentira de ser um Outro que não ele mesmo. Ora, certamente, quando estamos falando em as máscaras de Artaud, nosso entendimento afasta-se dessa utilização coloquial. Para esclarecer o que entendemos por máscara, seria necessário adequar a frase de Nietzsche (1992a, § 40) a nosso propósito: tudo o que é mais profundo ama a máscara
. Desloquemos essa frase do contexto que ela se inscreve em Além do bem e do mal, e a coloquemos ligada a outra frase, agora de Paul Valéry (1933, p. 50), o que há de mais profundo no homem é a pele
, e a interpretação que lhe confere Gilles Deleuze.
Ao retomar os estoicos, Deleuze escreve que o presente enquanto acontecimento é um efeito de superfície e de incorporais(1) e, em razão disso, o presente se furta de si mesmo no momento em que se afirma, ao mesmo tempo, como futuro e como passado. Os incorporais nada mais são do que acontecimentos decorrentes das relações entre os corpos, ou seja, é nas relações de superfície que os incorporais se manifestam. Assim, para Deleuze, os estoicos distinguiram, radicalmente, dois planos do ser: de um lado, o ser profundo e real que é a força e, do outro, o plano dos fatos, em que se produzem na superfície do ser, e instituem uma multiplicidade infinita de seres incorporais. Dirigindo-se à expressão de Valéry de que o mais profundo é a pele
, Deleuze (2007, p. 11) escreve que é margeando a superfície, que passamos dos corpos ao incorporal
.
Pressupondo essas relações entre superfície, profundidade, corpo e incorporais, é que podemos atribuir o sentido de máscara para Artaud. As máscaras, como veremos, não são uma camada supérflua em que o indivíduo utiliza para se esconder, mas a própria condição para expor, profundamente, qualquer impossibilidade da existência de um indivíduo constante. Isto é, a máscara é a própria condição do ser que se coloca como ser-devir, como ser em movimento. Nesse sentido, a máscara não é apenas uma indumentária que cobre o rosto, mas o que há de mais profundo no ser, já que não temos, em Artaud, esse indivíduo metafisicamente constituído a partir de uma identidade fixa e inalterável, esse ser a priori ao viver.
Podemos mesmo supor, tendo como pressuposto a íntima relação que estabelecemos aqui entre máscara e ser, que a loucura adquire, então, uma dimensão muito mais positiva do que quando a ligamos à categoria psiquiátrica de doença mental. Ser louco é estar em movimento com seu próprio ser, é colocar-se a si mesmo como alteridade, é transformar o Mesmo em Outro e, portanto, é estender a existência na criação. Pensemos em um exemplo representativo na história da literatura, como Dom Quixote. Não seria a loucura de Dom Quixote aquilo que há de mais superficial? O que seria de Alonso Quijano sem essa máscara da loucura, sem o que torna aquilo que ele é? Ou, ainda, seria Dom Quixote apenas uma farsa, uma máscara (em seu sentido depreciativo) de Quijano? Obviamente, qualquer leitor de Dom Quixote – seja ele especializado ou não – não tardaria a afirmar que sem a loucura, essa obra não se realizaria, ao ponto de o nome de Dom Quixote encontrar-se eternizado em nossa história, em detrimento de Quijano.
Artaud está intimamente ligado com a ideia de máscara, sem dúvida. Basta lembrarmo-nos de sua relação com os teatros tribais, em que a máscara adquire um valor ritualístico e mágico, em que o ator, ao vestir a máscara, não interpreta ou se utiliza de μίμησις, mas incorpora deuses, forças ou espíritos que sobem ao palco. Como adorador do teatro, Artaud transformou sua obra e transformou-se em obra. Como um ator, Artaud tornou-se esse ser-devir inapreensível e, ao mesmo tempo, inconfundível. Inapreensível, pois todo seu pensamento e sua vida cruzavam-se numa constante mudança e, inconfundível, porque talvez ele tenha sido aquele que mais radicalmente jogou-se para fora de si mesmo.
Se nos voltarmos, agora, para a obra de Artaud, veremos ainda que ela também guarda aproximações com Dom Quixote. No capítulo XXV de Dom Quixote de la Mancha, o herói caminha rumo a Serra Morena, em uma viagem cercada pela dúvida e pela incerteza de que se sua amada Dulcineia del Toboso lhe responderá ou não a carta que ele enviara por intermédio de Sancho Pança. Assim, o cavaleiro da triste figura solicita ao seu fiel escudeiro que leve uma carta a sua amada e, dependendo da resposta de Dulcineia, corre o risco de permanecer louco ou pôr fim a sua sandice: louco sou, e louco hei de ser até que me tornes com a resposta de uma carta que por ti quero enviar à minha Dulcineia del Toboso
(CERVANTES, 1978, p. 211). Chegando ao alto do monte onde Dom Quixote iria pagar penitência até a resposta de sua amada, surge um problema: onde escrever a carta? A única solução encontrada, na falta de papel, era escrever o texto da carta em um livrinho de bolso de Cardênio que os dois aventureiros portavam para, posteriormente, Sancho mandar reproduzi-la na aldeia mais próxima por um menino de escola ou mesmo um sacristão. Contudo, o fiel escudeiro levanta, dada a situação, outra importante questão: como copiar a assinatura do nobre cavaleiro? Caso a copiasse, Sancho poderia ser acusado de falsário. Diante dessa reflexão, Dom Quixote tranquiliza seu escudeiro com uma série de argumentos:
Dulcineia não sabe escrever nem ler, em toda sua vida nunca viu letra nem carta minha, porque os meus amores e os dela têm sido platônicos, sem se atreverem a mais que um olhar honesto; e ainda isso tão de longe em longe, que me atreverei a jurar-te verdade que em doze anos não a tenho visto quatro vezes; e até poderá ser que dessas quatro vezes nem uma só ela em tal reparasse (CERVANTES, 1978, p. 216).
E, por fim, Dom Quixote ainda argumenta que a própria Dulcineia, ou melhor, a camponesa Aldonça Nogales não sabe que ela própria é Dulcineia. Sobre esse intrigante episódio, Jacques Rancière (1995, p. 180) escreve:
Assim Dom Quixote suspende seu destino, o destino de sua loucura, a uma carta que não será lida, a uma carta dirigida a um destinatário que não se conhece como seu destinatário. Para coroar tudo, a carta não será sequer enviada, já que Dom Quixote por distração toma a meter o livro no bolso. [...] Com esse ato absolutamente falho, Dom Quixote assume até o fim seu dever que é o de ser louco; dever em relação a Dulcineia, em relação ao livro de cavalaria que ele imita e, em última instância, em relação ao próprio livro de que ele é personagem, ou seja, refém.
Ora, Dom Quixote é esse personagem que assume seu dever de ser louco. E o que significa isso? Significa que Dom Quixote se coloca como Outro que, para existir, precisa assumir sua loucura. Enviar a carta para Dulcineia que não sabe que é Dulcineia, fazer Sancho copiar uma assinatura que não é de Alonso Quijano, mas do louco Quixote, tudo isso só desencadearia o retorno à ordem normal das coisas, ou seja, toda a realidade criada por Dom Quixote, e sustentada por seus personagens (estes, mesmo sem saberem, mas que integram essa sua narrativa), desintegraria-se. E o que sobraria do romance? Absolutamente nada.
As problematizações levantadas por Rancière a partir de Dom Quixote podem nos dar pistas sobre Artaud. Dom Quixote, ao escrever a carta, não a escreveu para um destinatário, e sim pela necessidade de existir enquanto Dom Quixote de la Mancha e, por esse mesmo motivo, também não enviou a carta. Uma carta destinada a ninguém e, todavia, ainda assim ela assume um papel importante na loucura de Dom Quixote. Ela é necessária para provar sua loucura que é condição prévia de sua existência enquanto Dom Quixote. Ora, Artaud também assumiu desde o início sua loucura. Certamente ele é tão personagem quanto Dom Quixote. A diferença reside que enquanto Dom Quixote é um personagem de Cervantes, em Artaud temos ele próprio se desdobrando em si mesmo para se fazer Outro em seus escritos. Isso significa que sua loucura, no sentido em que até aqui lhe atribuímos, é antes de tudo a possibilidade de existência de seu ser enquanto Outro; e esse Outro é a condição de seu pensamento enquanto impossível.
Artaud sabia das consequências dessa vida que é obra de sua loucura e dessa obra que é vida em sua desrazão. André Breton (1959, p. 3), ao falar de Artaud para a revista La tour de feu, afirma que a poesia, a partir de um certo nível, zomba, absolutamente, da saúde mental do poeta
e que seu mais alto privilégio é estender seu império para muito além dos limites fixados da razão humana
. É assim que os mais belos cantos de Lautréamont, Hölderlin ou Nerval, estão sob o signo da loucura. Assim também encontramos em Artaud essa relação com a loucura, uma vez que toda sua poesia "passer de l´autre côté, como sugere Breton (1959, p. 3), isto é, estando num estado de uma irresistível impulsão,
perdeu de vista essas defesas e sanções [que uma sociedade impõe] que se incorre a transgredir", atingindo, ousamos dizer, uma radicalidade poética.
Certamente, quando nos propomos a falar sobre Artaud temos, previamente, que esclarecer um ponto: falar sobre o poeta não é tentar explicá-lo, mas antes, mostrar a impossibilidade de reduzi-lo a um olhar crítico. Nesse sentido, não é difícil compreender por que seus escritos abalaram a recepção crítica da França na época. Seus textos são fortemente marcados por polêmicas, tanto no que diz respeito à sua natureza específica, quanto à problemática da qual eles nos abrem. A respeito das Lettres écrits de Rodez, Sylvan Tanquerel (2003, p. 8) esclarece que
Começamos a ler Artaud de outra maneira, sobretudo suas últimas obras. Mas sua marginalidade permanece, o que as colocam, frequentemente, um pouco à distância, em recuo ou no fundo, seja por quem as consideram como definitivamente fora do campo da literatura e relevante às análises médicas (levanta-se a questão, então, da pertinência de suas publicações), seja por quem as tratam como uma espécie de texto-anterior, de canteiro das obras últimas, seja, ainda, por quem as integra ao corpus da produção dos anos 40 (obras, correspondências, artigos etc.), corpus que pode, desde então, ser objeto de leituras gerais, as mais frequentes temáticas. Se é verdade que essas Lettres trazem sua luz particular sobre a obra de Artaud, é pouco dizer que esta luz singular é opacificante sempre que tomadas por si mesmas.(2)
Vemos a problemática que se abre: como ler as obras de Artaud? A partir da crítica literária? Da análise médica? Como um texto menor? Precisar, dentre os textos de Artaud, a importância que cada um assume, o lugar que determinado escrito se encontra em relação ao todo de seu pensamento, se revelam seu gênio ou sua patologia, se podem ou não ser considerados literários, pouco falaria sobre Artaud, já que, nos parece, todas essas questões são exteriores ao próprio pensamento do poeta. Mas vamos assumir, no presente trabalho, que os livros, as cartas, os textos, os artigos, as peças, os panfletos, os manifestos de Artaud constituem, não uma obra acabada, delimitada e coerente em todos os pontos de sua extensão, e sim uma experiência que coloca seu sujeito em questão, uma experiência da escrita que se, por um lado, guarda pontos de conexão entre um texto e outro, por outro, leva Artaud a vestir máscaras.
Quando Blanchot (1968, p. 15), em L´espace littéraire, propõe que o escritor pertence à obra
e o que o escritor escreve não o pertence, carece de sua autoridade, Blanchot está a romper com a função tradicional de autoria, compreendendo uma relação muito mais complexa entre o sujeito que escreve e a obra que se realiza, uma relação que impõe o silêncio àquele que escreve para que a obra venha à luz: esse silêncio tem sua fonte no apagamento a que aquele que escreve é convidado
(BLANCHOT, 1968, p. 18).
Certamente, a obra de Artaud evoca esse silêncio, ou antes, esse vazio que o conduz a sempre preencher com algo que o ultrapassa e, ao mesmo tempo, o define. O ultrapassa, porque sua escrita nunca diz seu sujeito; o define, porque sua escrita sempre traz um novo sujeito. Por isso, os escritos de Artaud podem ser caracterizados por essas palavras, não para definir seu pensamento, mas antes, para deixá-lo em aberto: devir, morte, anonimato, ser Outro, vazio, silêncio, loucura. Seus escritos, que não pressupõem sujeito (uma identidade ou um sujeito linear e constante), levam Artaud a viver o teatro em sua própria carne, com a violência e o sofrimento que a criação impõe.
Em vista disso, optamos por trabalhar, principalmente, Héliogabale ou l’anarchiste couronné (1934); Les nouvelles révélations de l’Être (1937); Lettres écrits de Rodez (1943-1946); Correspondance avec Jacques Rivière (1923-1924). Esses textos não estão dispostos em ordem cronológica, já que nosso objetivo, ao elegê-los, não foi mostrar de como foi possível Artaud passar de um escrito ao outro, numa continuidade em que poderíamos daí extrair um progresso de seu pensamento. Ao contrário, buscamos, nesses textos, a singularidade de cada um, as máscaras que trazem e fazem de Artaud, Artauds.
Assim, em nosso primeiro capítulo, buscamos as relações entre linguagem e vida na obra Héliogabale. Este texto traz a tentativa, através da anarquia, de estabelecer uma linguagem originária em detrimento da história tradicional: uma linguagem mágica e concreta, próxima daquela proposta em Le théâtre et son double. Sob esse ângulo, Artaud incarna o príncipe sírio e Roma acaba por ser vista como a própria Paris que, durante doze anos, manteve-o internado. Heliogábalo, o duplo de Artaud, por meio de sua linguagem anárquica, sofre com a tentativa de impor uma transformação no interior de si mesmo e, ao mesmo tempo, de tentar ressignificar o mundo. Como Heliogábalo, que tentou trazer o estrangeiro para o Ocidente, rompendo com a dicotomia bárbaros
e civilizados
, Artaud tentou criar uma nova semiologia das coisas através de seus escritos.
Em nosso segundo capítulo, percorremos os anos de 1937 a 1946, marcados pelas publicações de Les nouvelles révélations de l´être e por suas cartas escritas enquanto esteve internado em Rodez. Primeiramente, trabalhamos a questão do anonimato, dos motivos místicos que levaram Artaud a deixar de assinar seu nome. Num segundo momento, analisamos algumas