Assim Falou Fernando Conceição
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Assim Falou Fernando Conceição - Fernando Conceição
Dedicado a Mel Jesus Conceição.
Sumário
Prefácio
PARTE 1 - Diatribes
O destino de cada qual
O grande estimulante da vida
Vade retro, Satana!
Viva os canalhas gente boa e legalzinha!
Sem vocação para santo
Exu na cabeça
A solidão do intelectual negro
Thomas Skidmore: a culpa é dele
Casamento é problema e religião, idem
Minha mulher quer ser minha amante
Hipocrisia gay na branquela Rede Globo
Meninas sequestradas não leem Stuart Hall nem dançam no Ilê
Resposta do ordinary people
ao politicamente correto
Faixa de Gaza ao nosso redor
Dos homens bons...
Tiro ou queda de avião?
Shakespeare enxovalhado
Tempestade de bom tamanho, apesar de equívocos bobos
Ser macho e ser fêmea nos dias correntes
Hoje minha mãe morreu
A questão é só de dar, a questão é só de dor
‘Uma mulher não deve vacilar’
Biscoitos finos, arte e combate
O que há de patético nessa casta artística
Fronteiras Braskem do pensamento antiético e cultural
Vai passar?
Jorge Amado jamais mereceu um Nobel
Eu, viado
Covid-19 e o cartel das farmacêuticas globais
Quem não tem competência se declara vítima
PARTE 2 - Política: cena nacional
Bolsonaro, o imbecil-mor da República
Moderação derrotaria Bolsonaro em 22
Deixem Lula beijar na boca
Plano de retrocesso institucional passa por assassínio moral de Sérgio Moro
Voto em Marina é conquista civilizatória que o Brasil está a merecer
Marielle: morta por Organizações Criminosas, assaltantes da República
Esquerda iPhone, be aware!
Fora Temer, prisão de Aécio: agora o PIG é ótimo
Antonio Cândido, violência e luta armada: uma involuntária polêmica
Patinhas às voltas com Angola
Paulo Francis e os vagabundos que nos governam
A justiça que vem do sul e surpreende o país
Todos têm direito a ir pra balada em Berlin!
Marina Silva, o PT tem medo do voto dos negros sem cangalha
Bolsonaro é racista?
Reflexões sobre um nada chamado Brasil
Quem tem medo do Lula?
Nem gigante nem anão
E por falar em marolinha...
Petrobras retém e sonega obras patrocinadas antes do impeachment de Dilma
PARTE 3 - Relações raciais em movimento
Engenharia de flexibilização nos contatos é a chave sociológica do racismo uso-brasileiro
George Floyd e o Brazil
Brancos pobres, coitados
Faltam-nos cujones para fazer um filme sem macaquices sobre o escravismo no Brasil
Racistas estão no lucro com babaquices do movimento negro de hoje em dia
Os brancos têm algo a nos ensinar
Esquerdismo, doença infantil da negritude
Joaquim Barbosa: um barnabé revoluciona a República
Em defesa de Zumbi
Portugal, Sodré, cultura
Baianas, inveja e ressentimento de classe
Brazil´s murder capital, Salvador é cidade-túmulo
Kabengele cita Milton Santos sobre negro não ter telefone
e provoca FC: ‘Vai pendurar a chuteira?’
Brasil, paraíso para sulistas dos U.S. derrotados na guerra de Lincoln
Crônica do 20 de Novembro enlutado
PARTE 4 - Papel jornal
Alternativo, bem-humorado e gostoso
A grande mídia contra as ações afirmativas
A bela e a fera
Jornalismo na Bahia, um epitáfio
Moribundo, o ex-maior jornal da Bahia
Ameaçar Veja é prática de velhacos
Eu quero que tenha o impeachment de Dilma
12 Anos de Escravidão e o opinionismo na Folha
PARTE 5 - Política: cena local
Cultura esmolé
Wagner, analfabeto cultural, faz da Secult o cocô do cavalo do bandido
Governo da Bahia paga €18 milhões a empresa que funciona em salão de beleza da sogra
Empresa portuguesa que vendeu ferries não tinha caixa nem para uma passagem Salvador-Lisboa
Quase dissolvida, quitanda
de Portugal só faturou com ferries do governo baiano
Morre o carlismo
Chacina no governo petista: saudades da polícia da ditadura carlista
Artilheiros
da PM petista denunciados; e a comissão técnica e o governador?
Pornografia do genocídio negro é assunto para a Academia e para a Polícia de hoje
Para não dizer que não falei de Geddel
Por que analistas políticos bajulam os poderosos?
Justiça e Procuradoria em São Paulo são o azar de Maluf e, na Bahia, a sorte de dr. Mário
Rosquinha de milho!
Juíza rejeita censura de prefeiturável e manda retirar apenas o Chame o ladrão!
Um (quase) governador cagão para um (quase) povo idem
Bahia tem cocada, tem acarajé...
O fantasma de ACM
ACM Neto e Santa Casa vão ao circo. Negociar terrenos
Acredite: ACM Neto e Yacht Club servem almoço grátis
Aprendam com ACM Neto, meninas!
Por um gay para prefeito de Salvador
Por IPTU menor, com empurrãozinho da OAB, ricos derrubam qualquer prefeito
Amarildo
do Calabar e a falência do Pacto pela Vida
PARTE 6 - Embates
Juiz absolve réus de assédio moral na Universidade e diz que F.C. não sabe perder, é péssimo competidor
Ivo viu a uva na UFBA
Justiça inicia debate sobre a res publica
na Universidade brasileira
Prenda esse marginal
, exigiu Nelson Pelegrino, do PT, à delegada
De quando eu era favelado, criminoso, e não mais petista
Era uma vez um racista, diz ex-mangangona da Secult
Cultura quis censurar romance por conta de personagem ficcional com caráter duvidoso
Falsa polêmica foge do tema central do romance, foi o declarado à Folha
Nojo
, diz sentir ex-editor do Correio co-criador do Jornalismo do Futuro
Universidade exposta tal casa de mãe joana em negócio Facom-Rede Bahia
Rede Bahia pagou $ 68.000 a professores do Jornalismo do Futuro
; diretora da Facom respondeu por improbidade
Assédio e estertores do lulopetismo na Universidade da Bahia
Polícia Federal vai à Facom-UFBA apurar ataques orientados
Depois de 1.697 dias de tortura moral, UFBA absolve este professor
Diretora de faculdade na Bahia responde processo por abuso de autoridade sem precedentes
Por que disputo ser Reitor da UFBA
PARTE 7 - Pé na estrada
Minha vida de cachorro. Em Nova York
Visita por onde a escravidão negra na Europa teve início
Moçambique: tragédias, pilhagens e hipocrisia (inclusive do Brasil)
Où etês-vous, mon ami Augusto Mango?
Experiência do paladar na Afrika austral
Lições africanas de hoje
Felicidade, Venezuela!
Madiba Nelson Mandela: inigualável
A culpa é dos brancos
Tristes nórdicos (ou quase isso)
Modi ki bu tchoma, Cabo Verde?
Crônicas iranianas
Lembranças do país de Hamlet
China sem coronavírus
Na Alemanha da mulher mais poderosa do mundo
Quilombolas e indígenas recebem a Academia
PARTE 8 - Poiesis
Dois mundos
Um poema de amor
Poema de Mel, II
Floricultura popular
Esquecimento
Notas
Prefácio
Aqui, estamos tratando de pessoas. Pessoas, massa e intelectual; o homem, pensador. Vozes de pessoas em uma só boca, através da controvérsia; o caos, por assim dizer. Num espaço de debate de ideias virtual, guiei-me à viagem pelos textos do blog "fernandoconceição Literatura, jornalismo, bier e poeira", para encontrar – mas vejam só! – os mais ácidos. Missão que me deu muita honra, mas deu trabalho para deixar algum de fora.
As provocações trazidas pelo professor Fernando, meu mestre, não representam uma simples metáfora dessa palavra. Suas mal traçadas linhas de escrevinhador
não combinam com a simplicidade de uma qualidade como questionador
, por exemplo, pois essa palavra não expressa a explosão – discordante ou não – que sua escrita provoca. Não são poucas as vezes que temos que ler na companhia dum copo d’água. Certos pontos de vista queimam!
Aqui, nós apresentamos uma seleção de textos ácidos
, na maioria das vezes, demonstrando um pensamento independente, que se vê, saiu direto da cabeça do homem e foi postado ali naquele sítio; outros momentos, parece até louco, quando não aparece doce, em seus poemas, sonhos e desabafos.
Assim falou Fernando Conceição traz impressões de um mundo caótico refletido naqueles olhos, nos olhos do homem. Um compilado de textos em diversos gêneros, sobre temáticas diversas, passeando pela vida privada, mas, em sua maioria, o posicionamento político se sobressai. (Não vamos repetir aqui o clichê a política está em tudo que se faz e é uma parte importante da constituição do ser humano
.)
Para alguns, como o homem, o escrevinhador, o poder da política e as formas sutis de exercer poder sobre o outro é o que lhe interessa. Podemos caracterizar a escrita do homem como um espaço de exposição, discussão e a garantia de seus direitos, enquanto cidadão de um Estado Democrático de Direito.
Os textos ao mesmo tempo em que informam e denunciam crimes, também vão delineando um cenário político de Salvador e do Brasil. Trata-se de críticas, de uma construção de oposição que dialoga com os acontecimentos de bastidores da política baiana e nacional.
Nessas mal traçadas
, como diz o homem, não vou adiantar o que está por vir, colocando títulos neste prefácio. Desejo-te uma jornada que te conduza pelos inúmeros becos e vielas, nem sempre agradáveis, para te contar e te mostrar histórias de um ponto de vista único, que pensa fora da caixinha.
Rebeca Silva Teles, do programa de Pós-Graduação em Literatura e Cultura do Instituto de Letras da UFBA.
PARTE 1
Diatribes
O destino de cada qual
A psicanálise não existia naquele tempo. Se existisse o final da história seria outro. Adocicado, como nesses tempos frouxos – e de frouxos – contemporâneos.
Um vizinho pergunta-me, na dúvida, quem escreveu Édipo Rei. Sófo-cles, informo. Alguns quatro séculos antes de Cristo – acrescento. Para enfatizar que o nascimento da tragédia, enquanto drama vulgar, é anterior ao cristianismo.
A psicanálise – que tenta nos tornar pessoas melhores
– é que busca edulcorar a pílula. Embuste, como as seitas.
Não sou eu que devo me tornar uma pessoa melhor
. As outras pessoas, se quiserem, que se tornem. Prefiro químicos, cerveja preferencialmente. Como diria minha amiga Mary McCarthy (1912-1989), bebo para tornar as pessoas melhores.
Sófocles usa a arte dramática para afirmar o fatalismo da existência. Ao nascer, ninguém mais escapa do destino. Que nasce com o nascente.
Não há fuga possível. Ninguém sabe do seu. Uma indústria de adivinhos fatura alto sobre tal mistério. Que mistério? Os deuses são deuses porque não se pensam
(Ricardo Reis).
O grande mistério é superar o tédio, preencher o vazio entre o nascimento e a extinção. Brigar ou fingir que se briga pelo que se deve, não levar tudo na ponta da faca, rir de si mesmo, não temer desafios nem solidões ou caras feias.
Para o vizinho, Édipo enciumado teria intencionalmente matado o pai devido à atração sexual pela mãe. Se assim fosse seria ótimo, porque ato de vontade. Mas a coisa é muito pior. É aí que entra Freud (1856-1939) e suas psicanálise e neurose.
Assisti recentemente (abril de 2015) a uma releitura da peça, em montagem criativa, minimalista e muito bem feita pela Companhia do Chapi-tô, de Lisboa. Excelente trabalho de corpo, luz e sonoplastia. O resultado é interessante, para usar uma linguagem neutra. Apenas três atores, dois gajos e uma rapariga, tratam o texto pelo viés cômico, nuançando-lhe o foco trágico.
No original, todos conhecemos a história. Quando Jocasta dá a luz, seu marido Laio, rei de Tebas, uma das cidades-Estado gregas, chama um adivinho (no Candomblé jogaria búzios). Que faz uma terrível profecia. Aquela criança ao crescer mataria o pai e desposaria a mãe, com quem teria filhos.
O rei, depois de amarrar os pés da criança (daí édipo, pés grandes em grego), manda um criado matá-la numa montanha.
Ao chegar à fronteira de Corinto (outra cidade-Estado) o criado encontra um pastor da cidade vizinha, que o convence a doar-lhe. Por não poder ter filhos, o casal que reina em Corinto recebe, felizardo, o bebê. Que cresce, feliz e bem-amado, como filho legítimo desse rei.
Eis que, já adulto, consulta um oráculo e fica sabendo que seu destino é matar o pai e casar com a mãe. Resolve, então, deixar Corinto e perambular pelo mundo a fim de evitar a profecia.
Numa estrada, dá de frente com uma caravana de cavaleiros e tem início uma refrega para ver quem dava passagem a quem. No confronto, Édipo mata o ancião que comandava a caravana adversária. Este era Laio, antigo rei de Tebas.
Tebas está sob ameaça de uma esfinge. Édipo segue em sua direção e sabe que se decifrar o segredo da esfinge será premiado. Então ele a derrota. Por recompensa, o povo o aclama novo rei. E ele casa-se com a rainha viúva, Jocasta.
Tempos de bonança e paz advêm, até que a fome e a miséria começam a desolar a cidade-Estado. Consultado o oráculo, o irmão da rainha é informado de que a maldição de Tebas advinha do fato de existir na cidade um parricida incestuoso.
Édipo, que é um rei justo, pessoalmente ordena e pessoalmente se empenha na caçada ao pária. Promete ao povo que não ficará pedra sobre pedra e que não sossegará enquanto não extirpar, não banir aquele mal do convívio dos tebanos. Ai de quem transgredir a sua ordem!
O diretor e crítico de teatro Flávio Rangel (1934-1988) escreveu certa vez que Sófocles discute nesse texto os limites que o homem deve impor à busca da verdade das coisas.
A chave do seu entendimento está no último diálogo entre Édipo e Jo-casta, sua mãe e mãe de seus filhos. Momentos antes já chegara a notícia da morte natural
do rei de Corinto.
Ao ver se revelar todo o drama, Jocasta quer persuadir Édipo a abandonar aquela busca desenfreada, prevendo o pior que se avizinha.
Para que insistir tanto em descobrir a verdade? – ela lhe indaga, sôfrega. É bem mais fácil a vida para quem dessas coisas não cogita
– cito de cor as palavras dela.
Ou seja, a verdade verdadeira pode cegar os viventes. É o que acontece a Édipo. Antes da psicanálise que, mentirosamente, a quer sempre agradabilíssima.
2/10/2015
O grande estimulante da vida
Acredito, como Nietzsche (1844-1900), que a arte exista para que a realidade não nos destrua.
Nunca antes havia sido tomado por tanto arrebatamento, tanto torpor, quanto naquela manhã de primavera enquanto, triste, acabrunhado e duro, fui paralisado diante de um quadro.
É um Caravaggio (1571-1610). Pertencente ao acervo de exposições permanentes do Metropolitan Museum of Art, de Nova York – cujo maior mecenas é a família controladora do jornal The New York Times.
À época em que morei na cidade (1998-1999), na rua 82 Leste com a Segunda Avenida, portanto próximo ao museu, costumava bater ponto ali. Dias e dias, às terças ou quartas, quando a entrada (acredite!) é de graça – o freguês deixa na bilheteria quanto quer, se quiser.
Melancólico e vazio, percorria salas e corredores do museu, sentava num banquinho aqui e ali, seguia adiante até que – bum! Diante do chia-roscoro de Caravaggio minha alma – se é que possuo alma – como se foi transportada para fora das misérias do mundo. E suas mesquinharias, ciúmes, dívidas, invejas e contas a pagar (sem drama, reconheço, estou agora sendo bem hamletiano).
Pela primeira vez chorei, sem mais e profundamente, sem entender por que, perante um quadro. Não era o tema da obra, eu que não sou cristão nem católico nem nada.
Aquele olhar de medo de Pedro, o dedo da denunciante apontado para ele, o movimento do centurião prestes a também crucificá-lo, tudo aquilo me comovia. A covardia, a vileza humanas sintetizadas numa pintura renascentista. No início daquela tarde, saí do museu um homem melhor do que o que havia ali entrado de manhã.
A isso chamam de experiência estética. É de Friedrich Nietzsche: A arte e nada mais que a arte! Ela é a grande possibilitadora da vida, a grande aliciadora da vida, o grande estimulante da vida
.
26/11/2013
Vade retro, Satana!
Pelas estatísticas do IBGE, devo viver ainda mais vinte anos.
Muito chão pela frente.
Vinte anos, parceiro(a), é a idade média de 80% dos jovens assassinados no Brasil, entre os cerca de 60 mil assassinatos/ano. Como enfatiza o poeta Hamilton Borges Walê, militante da campanha Reaja ou Será Morta(o)
.
Se fosse mulher, na Bahia, onde mulher vive quase 10 anos mais (IBGE), teria maior vantagem.
Como homem, negro, oriundo de favela, há tempos estou na conta dos sobreviventes.
Favelados e negros são, os homens, as categorias mais vulneráveis a mortes por causas externas
.
Leia-se vítimas de homicídios, da violência policial, choques, traumatismos, suicídios, AVCs.
Já dobrei o Cabo-da-Boa-Esperança.
No momento em que escrevo essas mal traçadas estou inteirinho da silva. Ainda.
Superadas ameaças. Prisões nos estertores da ditadura. Ataques morais. Pressões. Ciúmes irracionais. Chantagens de toda natura.
De poderosos empresários e ex-prefeitos, como Mário Kertèsz, a gentes medíocres entranhadas em estruturas institucionais totêmicas, como USP e onde hoje presto serviço.
Firme, forte, seguindo em frente.
Salvo por uma lombalgia que quase me aleija há duas semanas.
E um ultrassom que mostra um grãozinho de areia nos rins: nada que um chá de Quebra-pedra não dê jeito.
O urologista fez-me ontem exame de toque, descartando más notícias.
Tudo o mais que vier desde a partir de ant’ontem agora é lucro. A questão é só de dar/ A questão é só de dor
(Vinicius de Moraes, "Pra que chorar").
Acabo de educadamente recusar a oferta de presidir no Estado um partido político que fará cem anos daqui a dois. Apesar da sedução quase convincente do emissário, tenho planos mais arejados.
Nas duas décadas que restam-me neste curiosíssimo planeta, não sendo um Roberto Marinho que desse ponto em diante montou o império Rede Globo;
Tampouco sendo um José Saramago, estreante a essa idade na literatura reconhecida que lhe traria um Nobel e uma Pilar del Rio...
... restam-me projetos muito mais modestos, apesar de ambiciosos.
Pela ordem: disputar e vencer em 2022 a Reitoria da Universidade Federal da Bahia. Faria bem a meu ego leonino. Tornar-me o primeiro negro reitor qualificado dessa – vade retro Satana! – vetusta instituição acadêmica.
Oportunizar à filha responsável por minha atual sanidade a chance de experimentar outras relações culturais.
Pretendo que esse ser de 7 anos acompanhe-me em período de pós-doutorado previsto para Nova York, Estados Unidos, assim que a imunização contra a pandemia da Covid-19 permitir.
Não tenho tempo a perder, martela na cachola o rock da Legião Urbana.
Beber bons vinhos, ler bons livros, curtir viagens e mais viagens. Rir pra caralho: de mim mesmo, dos erros e enganos da vida. Manter a serenidade mas continuar arrombando portas a pontapés.
O virílico Exu que vige aqui dentro impede-me prosseguir com digressões da libido, o safado!
8/12/2020
Viva os canalhas gente boa e legalzinha!
Na maior parte da vez nós, primatas (fêmeas e machos), somos canalhas covardes e dissimulados. Ainda mais se convivemos em entranhas podres como ONGs e círculos acadêmicos e restritivos, como os universitários. Nestes, desde 1991 decidi investir.
Adianto que menos por opção de vida que escassez mercadológica. Depois de ver colegas muito mais velhos na Redação de A Tarde¹ tratados como lixo e ali prisioneiros, posto que não se deram conta a tempo de sua descartabilidade pelo patrão.
Quando resolvi abandonar uma carreira de publicitário em marketing político, ganhando muito bem e cercado por hostess
pagas por terceiros, numa das então entre as 10 maiores agências publicitárias do Brasil, a Propeg. Os donos, o xará Fernando Barros e seu sócio Rodrigo Sá Menezes, acho que não entenderam nada da minha atitude à época.
Por tudo sempre tive em conta em minhas já fatigadas retinas (Drum-mond) a companhia de um Albert Camus n´O Estrangeiro, de um Jean -Paul Sartre d´A Idade da razão e, acima de tudo, o Fernando Pessoa do Poema em Linha Reta
.
Vicejam canalhas entre nós – tenham falo ou vagina entre as pernas –, as bem-intencionadas mentes iluminadas que tudo condenamos nos outros (O inferno são os outros
). Canalhas e covardes, repito, que primamos por nossas carreiras em primeiro lugar, evidentemente dissimulando nossa egolatria com retórica socialista. Alguém já disse em outras palavras: na conjuntura atual eles, os canalhas e covardes, os medíocres, venceram. Ser medíocre é triunfar, digo eu.
Acho, e peço desculpas por usar esse método comum de confirmação de nossas certezas: o achismo –, que é de um personagem de Tennessee Williams (1911-1983), em A Street car named desire (Um bonde chamado desejo), a frase dita em tom de constatação melancólica a uma altura da peça. Em minha vida de atribulações sempre tenho dependido da bondade de estranhos (aqui no sentido de desconhecidos).
Sim, sei da maldade da natureza humana, que não escolhe gênero nem cor nem cultura. Mas também da possibilidade de ações generosas, o que redime aquele princípio original tendente ao egoísmo – isto é, o ego maior somente ultrapassado pelo uso de artifícios químicos.
Discordo até de Santo Agostinho ou do Paulo das epístolas: nem o amor redime. O que redime é a humildade, mas quão duro é manter-se todo tempo em estado humilde, perante o sarcasmo permanente dos adversários.
A grandeza humana não é coletiva, mas se exprime em gestos individuais, particulares, silenciosos, sem alardes. É assim que jamais esquecerei daquela madrugada de março de 2009 em Strasbourg, região Alsácia, fronteira da França e Alemanha, quando um mendigo de rua me socorreu.
Era minha última de sete noites, antes de pegar o avião para a Bahia no aeroporto de Frankfurt, na cidade que hoje abriga uma das sedes do Parlamento Europeu. Obriguei-me, com pouco mais de 150 euros, à estadia num hotel que barganhei preço uma semana antes, com o fito de levantar dados em arquivos e entrevistar pessoas que conviveram com o geógrafo Milton Santos, do qual escrevo a biografia, que ali fez seu doutorado (1958-59). Eu era um pós-doutor na Freie Universität Berlin.
Já com a passagem de ônibus ao aeroporto comprada com antecedência, vaguei aquela tarde pelas ruas da cidade, aguardando a hora, dia seguinte às 5h da matina. No bolso, apenas moedas que dariam para um ou dois cafezinhos. Era o fim do inverno e o vento frio e cortante. Ao anoitecer, mochila às costas, procurei abrigo na estação central de trem de Strasbourg, belo centenário edifício remodelado.
Mudando de assentos, livro pregado nos olhos, alguns passageiros em trânsito puxavam conversa... Assim foi até que, depois das 23h, o movimento de trens e de pessoas foi se rareando. Então procurei um determinado banco, onde um trapo humano, com trapos sujos por vestes, barbudo e faces enrugadas, dormitava. Sua pele era alva. Fiquei a seu lado, quieto, na grande estação vazia. E acho que também dormitei.
Fomos despertados pelo sacudir do cassetete de um segurança fardado com quepe. Que nos disse que já era meia-noite e a estação iria ser fechada. Tínhamos que nos retirar. Nos arrastamos até a porta de saída e o frio lá fora havia aumentado.
O farrapo humano sugeriu que procurássemos outro abrigo, ele que conhecia as ruas do centro da cidade já quase sem vida. Então eu o segui pelas pontes que cortam o rio, ligando uma parte a outra, massacrados pelo ar gélido.
Depois de muito procurar o desconhecido sugeriu que nos aboletássemos no banco de uma parada de bonde (tram), deserta. Defronte havia um prédio. O mendigo, largando suas tralhas comigo, atravessou a pista escura e começou a apertar ao léu botões de interfone. Do lado de cá eu ouvia fiapos da voz francesa dele fingindo-se morador que perdera as chaves e pedia que abrisse a porta. Após três ou quatro tentativas fracassadas, ele regressou para o meu lado.
Já era mais tarde quando, de súbito, deu um pulo. Um morador chegava ao prédio e ele correu ao encontro. Era um jovem que parecia ter chegado da farra, com o qual o mendigo trocou palavras. Então o morador entrou e o estranho me fez sinal com uma das mãos, enquanto a outra segurava a porta. Eu peguei nossos trapos e entrei com ele no saguão do prédio, enquanto a segunda porta que dava acesso ao interior do edifício se trancava.
Poderíamos ter congelado lá fora aquela noite, não fosse esse ser humano jogado no chão desse prédio, enrolado em suas tralhas enquanto a manhã vem ao nosso encontro. Outros moradores esparsamente adentraram, em silêncio, com olhar curioso aos dois farrapos jogados ali um ao lado do outro, guardados do frio externo.
Era 4 e meia da manhã quando cuidadosamente levantei, peguei minha mochila, olhei o sujeito quase querendo-o beijar naquele rosto vincado de sofrimento.
O ônibus me levou a um dos mais movimentados aeroportos do planeta. De onde peguei meu voo para uma reunião com as gentes doutas, bacanas e legalzinhas da minha universidade.
8/06/2014
Sem vocação para santo
Por dever de ofício todos os dias tenho de debater com alunos temas da atualidade política.
Esta semana está em pauta, entre outros temas – soltura, em breve, do condenado Lula da Silva –, a canonização pelo Papa Francisco da baiana Irmã Dulce. Assista comentário em Ze de Noca
.²
Elogiei a freira por sua livre iniciativa. O importante é que ela investiu com denodo em sua vocação: praticar o assistencialismo. Com] isso, ganhou um lugar no céu.
Ou seja, as pessoas devem se esforçar. Acreditar em si mesmas, ser guiadas por sua vontade.
Vontade é potência, ensinou o filósofo. Infelizes os desafortunados de vontade, sempre pelos cantos se queixando disso e daquilo!
Irmã Dulce Pontes (1914-1992) é exemplo de fé no que se dedica. Apesar, acrescentei, de seus subterrâneos. Seus incontáveis malfeitos.
Uma aluna, das que mais provocam no presente semestre, aludiu:
–Quem, humano, não os têm?
Respirei. Aproximei-me. Olhei nos olhos dela e, segurando os meus demônios, disse:
– Tem razão. Você mesma sairia daqui agora correndo em disparada de perto de mim se soubesse das minhas baixezas.
Gargalhadas na sala. Mas eu falava sério. Como o Fernando Pessoa de Poema em Linha Reta
.
Cheguei até aqui, vivinho da silva, alternando boas obras e atos vis. Esmurrado na boca e devolvendo com socos e pontapés.
Meus alunos, quando não se levantam, irados, viram as costas e batem a porta da sala para nunca mais retornar à aula, se divertem.
Mesmo os (ou as, para ser politicamente correto) mais rabujent@s.
Admitem algum fundo de grandeza da minha parte quando afirmo:
– Antônio Carlos Magalhães, ex-mandatário absoluto da Bahia por três décadas, era mais merecedor de canonização que essa freira.
Parecem desconfiar ser eu, no fundo no fundo, um justo. Embora pecador.
15/10/2019
Exu na cabeça
Houve um tempo em que não havia qualquer distinção entre a vida ordinária, de escassez material, e a esfera do imaginário divino.
Este era sincrético. Mas as matrizes da cosmogonia indígeno-africanas galvanizavam o cotidiano das relações sociais, em geral centradas nas mulheres, como se na favela do Calabar houvesse um matriarcado...
No mundo de financialização absoluta no recôndito e no público do trato entre as pessoas e as coisas, agora aquelas divindades fugiram daqui.
Todo um panteão de divindades incorporava sem aviso nas pessoas conhecidas, seja na mesa do café, durante os afazeres domésticos ou durante as tarefas cotidianas.
Isso era mais comum quando das desavenças, dos desentendimentos dentro das casas das famílias e nas brigas de rua. O caboclo
ou o santo
baixava, em geral para dar conselhos e tentar apaziguar as coisas. Já tão difíceis para aquela gente.
Dona Maria de Breque
, por exemplo. Marido, à época, não tinha, como a nossa mãe também – esta enviuvou com sete pirralhos às costas. Não havia dia em que Maria de Breque
não manifestasse seu erê.
O erê dela era uma Crispina, brincalhona. De forma alguma metia medo nas crianças, amedrontadas com aquela profusão de entidades mágicas sempre dispostas a interferir, ou interceder, na vida dos comuns mortais.
Possuindo-os. Transformando suas feições, alterando o tom de sua voz, em advertências e rompantes geralmente – para nós, os pequeninos – ameaçadores. Crispina, como criança que é, fazia daquela senhora uma criancinha com estripulias.
Maria de Breque
(assim todos a conheciam, sem nunca saber-se a origem do apelido) morava defronte ao nosso casebre, daí ser íntima da vizinha viúva. E os seus filhos serem como filhos dessa – e vice-versa.
Seu lar era um cacete-armado sem portas ou janelas (apenas buracos), onde tentava abrigar sua ninhada de crianças de diferentes biótipos. Do preto mais retinto e cabelos carapinha, ao branco de cabelos alourados e lisos.
Sultão das Matas era useiro e vezeiro em nossa morada, baixando sobre a cabeça da dona da casa para indicar a resolução de qualquer problema mais difícil que aparecesse.
Adivinhava se íamos bem ou mal na escola. Surpreendentemente, repreendia-nos por algum ato reprovável que havíamos praticado e que pensávamos segredos só nossos. Depois, após um copo de água limpa, a mãe recobrava a linha do tempo.
Havia duas ou três, mas a Yalorixá (sacerdotisa) mais considerada atendia pelo nome de Mãe Ivone. Era branca, infértil por um mioma, e seu marido uma espécie de príncipe azeviche.
Saído de famosa família de linhagem Ketu que, a partir do bairro Nordeste de Amaralina, até hoje influencia e comanda terreiros. Ele exercia o ofício de principal Ogã da casa. Era quem dava as ordens e organizava o terreiro.
Frequentado por gente que vinha de longe, em automóveis de luxo que paravam em frente da comunidade. Principalmente em dias de festas e batuques para orixás. Mas não havia vias de acesso de veículos, no amontoado de barracos e valas a céu aberto.
Mãe Ivone, se lembro bem, tinha aquele serenidade, aquele olhar, aquela voz mansa das pessoas sábias que entendem a miséria da vida.
Gorda, mas não obesa, acolhedora, reinava com um séquito de filhas e filhos de santo
, que lhe baixavam o olhar, pedindo a bênção e beijando sua mão. Pouco se a via na rua.
Uma dessas filhas, à época com 14 anos, da viúva mencionada acima, foi a sua Dofona. Isso foi um anátema dentro de nossa casa, ao menos para este escrevinhador criança que nada entendia daquilo. Porque à Do-fona, até a dona do lar deveria prestar certa reverência.
Até hoje sem nada entender, cético por opção, ainda assim levo a sério o vaticínio que no decorrer dos anos gente do ramo, de Mãe Stella de Oxossi a Mãe Beata de Yemanjá, aos intelectuais Ivan Messias a Ana Célia Silva, fazem sobre quem manda
na minha cabeça e no meu proceder.
É Exu. O brincalhão. O fálico. Aquele que bagunça para lembrar aos humanos sua baixa estatura moral-carnal.
Mensageiro: o comunicador entre o mundo de cima, superior (o Orum) e esse mundo terreno. Fica óbvio que confunde.
O seu mister é incômodo. Até para quem é dele portador. A estreiteza da dicotomia judaico-cristã – que demoniza Exu – que o diga... Ele ri de tudo isso!
[20/08/2016][.data]
A solidão do intelectual negro
Em um churrasco fevereiro passado prometi a colegas presentes que escreveria um artigo descompromissado sobre essa temática.
Não conheço um intelectual negro ou negra que seja casado e esteja bem com uma intelectual negra ou negro.
Casado ou junto e convivendo produtivamente bem. Não precisa ser exatamente um casal de intelectuais negros, homem e mulher. Ainda que sujeito a todas as injunções e problemas comuns da convivência sob o mesmo teto.
Pode ser pretensos intelectuais. Digamos acadêmicos, com alguma inteligência um pouco acima da média ou do ordinary people, a camada subalternizada de onde todos os negros do Brasil viemos.
Mesmo no mundo das estrelas, do show business, dos esportistas e apresentadores de televisão, isso é raro. Na esfera política, alguém aponta um? Exceção não vale.
Conclusão? Os negros no Brasil não têm exemplos de intelectuais negros, homem ou mulher, que sejam modelos de casal harmonioso.
Por que isso? Minha tese é a de que, por circunstâncias históricas motivadas pela brutalidade do escravismo, os negros no Brasil cultivam em seu ego o instinto de autodestruição. Estão propensos a relações conflitivas, de desconfiança. De desassossego, de competição destrutiva entre si.
Em decorrência, o homem (ou a mulher) negro que ascende intelectualmente encontra mais conforto e uma melhor socioambiência ao lado de uma mulher branca (ou homem branco) com qualificação similar. Esses não se vêem, assim, necessariamente como adversários.
A recíproca é a mesma, tintim por tintim, com a mulher negra intelectual: o homem branco tende a lhe ser mais compreensível, mais adocicado. Mais companheiro
.
O que temos no Brasil como modelos de pensadores, ativistas, acadêmicos, empresários etc. negros, seja homem ou mulher, todos os que ascenderam a uma posição de melhor estabilidade socioeconômica levados pelo investimento na ciência e no conhecimento, quase sem exceção optaram por constituir família com brancos.
O intelectual negro, homem ou mulher, que não buscou ou não encontrou essa alternativa, comumente transita entre a solidão e a ansiedade.
Quer que cite-os? Não seria necessário. Basta um pequeno esforço de memória ou de olhar. Aliás, ativistas do Movimento Negro casados com branco(a)s em geral escondem o parceiro nas atividades públicas. Vai saber por que!
Na medida em que a solidez do conhecimento acadêmico ocorre em meia-idade, vemos esses seres em público afetivamente sozinhos. Nos cinemas. Nos teatros. Nos bares. Nos restaurantes. Nas festas. Estão sempre sós.
São pessoas bonitas, interessantes, algumas financeiramente bem resolvidas, que por trás da esfinge sorridente já devem ter se convencido, tristemente, do destino solitário. Os amigos ou os parentes estão aí ao seu socorro. Ou então um cãozinho ou gato de estimação.
Ao analisar dados censitários da década de 1980, a demógrafa Elza Berquó publicou um artigo