Saudade
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Sobre este e-book
Saudade é um livro que trata dos mecanismos internos das relações afetivas familiares. Traumas passados de geração em geração, o sofrimento como uma imposição hereditária. Mathilde, personagem principal, viaja no tempo a fim de iluminar os recônditos de sua história, fazendo da escrita de seu diário um lugar de fala que de fato lhe pertença e lhe permita existir em plenitude.
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Saudade - Ursula Sila-Gasser
Saudade
Ursula Sila-Gasser
––––––––
Saudade
Edição em francês
© Carnets Nord, 2018
12, villa Cœur-de-Vey, 75014 Paris
www.carnetsnord.fr
ISBN : 978-2-35536-297-2
A Daniel
Aos meus filhos
Esse livro é uma obra de ficção. Qualquer semelhança dos lugares que descrevo com lugares existentes não é fruto do acaso; deve-se unicamente à minha indolência. Por outro lado, toda semelhança com pessoas vivas ou falecidas seria puro fruto da minha imaginação.
Entre todos os vocâbulos, nâo deve haver nenhum tâo comovente quanto a palavra portuguêsa saudade. Ela traduz a lâstima da ausência, a tristeza das separaçôes, tôda a escala da privaçâo de entes ou de objetas amados; é a palavra que se grava sobre os tûmulos, a mensagem que se envia aos parentes, aos amigos. É o sentimento que o exilado tem pela pâtria, o marinheiro pela familia, os namorados um pelo outro, apenas separam-se. Saudade sentimos da nossa casa, dos nossos livres, dos nossos amigos, da nossa infânda, dos dias idos.
Joaquim Nabuco[1]
––––––––
"Pois o que foi vivido
Será sonhado
E o que foi sonhado
Revivido"
François Cheng[2]
1
Na cozinha, 17 de junho
Vá em frente, comece dando um longo suspiro. Poderia lhe fazer bem. Depois, sente-se em sua linda cadeira verde pistache, embaixo de sua lâmpada Artemide, e balance um pouco a cabeça. Assim será feito. Não se esqueça de franzir a testa. Ainda não regou o manjericão esta manhã? Então, levante-se, encha o regador Alessi com água fresca e volte a se sentar quando a tarefa estiver terminada. Já entendi que o manjericão é mais importante do que eu e vai lhe fazer bem me mostrá-lo, de novo.
Meu manjericão está, uma vez mais, completamente seco. Deveria regá-lo, mas cuidarei disso mais tarde. Assim que tiver terminado o que tenho a lhe dizer hoje.
Agora, estique as pernas embaixo da mesa B&B Itália. Enfim, acredito que seja uma mesa B&B Itália. Você sabe que não entendo muito de design.
Qualquer que seja a marca da sua mesa, adote o ar indiferente do big boss ocupado. Mas sem exagero. Nada de gerente estressado, ou pior, extremamente ocupado, não. Aquele que fica tranquilo. Que sabe administrar. Esta é a imagem que você quer dar, então, vá em frente.
Não hesite em pegar toda aquela papelada em mãos e em aproximá-la do triturador de papel. Vai até o fim e acabar por fazer confete? Sem dúvida, seria mais simples.
Outra ideia seria pegar um lápis e fazer a lista das minhas contradições no cantinho de um papel qualquer.
Poderia haver um lado divertido nisso, não acha? De minha parte, adoro rabiscar nos menores cantos do papel e gosto de brincar com as palavras. As palavras de duplo sentido, por exemplo, são uma mina de ouro. Uma palavra tomada ao acaso: a palavra irmão. Um irmão nem sempre é um irmão de verdade. Mas qualquer um, o primeiro ou o último a chegar, pode ser um verdadeiro irmão.
De todo modo, não estou no seu lugar, longe disso, acho que você não tem tempo para esse tipo de jogo completamente idiota.
Outros, sem dúvida, irão se encarregar disso com prazer.
Sua esposa, por exemplo. Ela vai ter tempo não só para fazer a lista das minhas contradições, lembrando-se, por exemplo, que já declarei em várias ocasiões que você não é mais meu irmão, que anunciara que não vou mais lhe escrever, nunca mais, e que eu tinha até declarado que não irei mais existir de agora em diante para você mas também ficará satisfeita em me repetir alguns pontos que eu deveria ter compreendido há muito tempo, porque já me explicara.
Eu deveria, por exemplo, me dar conta de que você é um homem admirável, ainda que, sim, é verdade, você é sempre muito frio. Ela vai igualmente esclarecer, de novo, que, embora você seja sempre muito frio, você o é especialmente comigo, mas que seria desnecessário, ainda assim, levar isso para o lado pessoal.
Parece que você cuida maravilhosamente bem da sua família. Sim, às vezes você é muito rígido com os filhos, mas ela faz de tudo para que não sofram demais com isso. Na sequência, ela irá tratar do seu brilhante sucesso profissional. Obviamente, como não vai querer passar por vaidosa, irá fazê-lo de uma forma um tanto indireta, assumindo quase o tom da confidência. Um tom ligeiramente queixoso. Muito ligeiramente. Portanto, irá mencionar, apenas de passagem, que não é fácil viver com uma pessoa que obteve tamanho sucesso na vida.
Então, a conversa voltará, inevitavelmente, mais uma vez, àquele último Natal que celebramos juntos. Porque, inclusive a respeito desse assunto, já passou da hora de ver o lado bom das coisas. Claro, você entrou na minha casa, desviando seu olhar do meu e não me dirigiu a palavra a noite toda. Mas você tinha feito o esforço de vir.
É claro que ela entende que, dada a sua atitude, eu preferiria que você não tivesse vindo. Mas, apesar de tudo, deveria ser positiva e pensar que, depois de dezesseis anos de indiferença quase total, você finalmente demonstrou um pouco de interesse pelo meu filho, Philippe, a quem explicou, de maneira detalhada, o funcionamento da minha câmera fotográfica. Você sabia, certamente, que isso me aborreceria, pois o fez, ostensivamente, mesmo sem me dirigir uma única vez a palavra. Apesar disso, eu não deveria me deter nesse tipo de detalhe, mas finalmente manifestar um pouco mais de reconhecimento.
Sobretudo porque, por minha causa, nossa mãe é tão infeliz. Causo-lhe tanta tristeza com minhas histórias.
Quanto à nossa mãe, sua esposa provavelmente reconhecerá que a situação não é simples. Nossa mãe tem uma preferência clara por você. De qualquer maneira, ela tem uma clara preferência por meninos, os quais coloca, sistematicamente, em um pedestal. Sua esposa acha que é injusto e entende que devo, sem dúvida alguma, ter sofrido com isso. Ela nem ao menos chega a se importar e eu deveria fazer o mesmo, sabe, eu não deveria dar a menor importância.
Devo admitir, de passagem, que achar uma situação injusta e afirmar ao mesmo tempo que não se importa me parece contraditório. Mas, se continuar lendo as minhas cartas, vai se dar conta de que essa não é a única coisa relacionada à nossa família cuja lógica me escapa. Provavelmente, são minhas capacidades intelectuais que estão em jogo.
Para terminar, sua esposa irá, certamente, retomar a lista interminável das minhas contradições, porque, sem dúvida, ainda vai encontrar algo a ser acrescentado.
Depois, provavelmente, nossa mãe também terá algo a dizer. Levará o tempo que for necessário para me explicar, uma vez mais, que eu deveria evitar voltar a tudo isso e apenas aceitar.
Provavelmente, irá me confessar que vocês dois falaram sobre mim, ela e você, e que, na verdade, você não tem nada contra mim. Não. Você só acha que estou com problemas. Como irei lhe perguntar de novo se ela não protestou ao ouvir você afirmar que estou com problemas, mais uma vez irá me garantir, um pouco constrangida, mas não muito, que está feliz em saber que finalmente consegui sair dessa. Em outras palavras, que finalmente me tornei uma pessoa normal.
Depois, talvez, torne a explicar, como já fez para a família toda reunida, que é normal ter tanta admiração e amor por você, já que você foi tão bem sucedido em sua vida profissional. Enquanto eu, bem, aparentemente, estou mais dentro da norma. Continuarei sem conseguir apreender a relação entre sucesso profissional e amor materno. Mas a questão é complexa. Claro. Portanto, vamos deixá-la de lado. Com o resto.
Poderemos nos perguntar, em vez disso, como foi que nossa mãe, alegremente, me fez passar do status anormal ao status dentro da norma. Ou como o fato de que eu estaria com problemas justificaria que você me tratasse com frieza.
O que quer que seja, você, sem dúvida, sempre se irá se poupar de lembrá-la que o fato de ser mulher não é uma vantagem quando se trata de ser bem sucedido na vida profissional. Principalmente no meio do qual faço parte, o meio científico. Você tampouco vai lhe explicar que criar dois filhos pequenos sozinha não cria as condições mais favoráveis para uma carreira. Que ela mesma nunca me encorajou, mas que, ao contrário, me incentivou a tentar ganhar dinheiro em casa para poder cuidar dos meus filhos.
Você provavelmente não voltará no tempo e ainda não irá se surpreender que ela me considere dentro da norma, apesar de eu sempre ter tido resultados muito melhores do que os seus ao longo dos nossos estudos, de ter estado, muitas vezes, entre os melhores e ter defendido uma tese de doutorado com apenas 25 anos, enquanto foi necessário pagar uma escola particular para que você obtivesse o diploma da escola. Quer você acredite em mim ou não, não estou dizendo isso para me gabar. É apenas para colocar os pingos nos is.
Nosso pai, por sua vez, irá se apressar em folhear essas páginas para verificar se disse algo sobre você que possa desagradá-lo. Não sei muito bem o que ele faria se, em um momento ou outro, tropeçasse em algo do gênero. Talvez exigisse de mim, mais uma vez, a devolução do dinheiro que me deu nos momentos financeiramente mais difíceis da minha vida, na época do meu divórcio. Quando tive que pagar não só um advogado, que custava os olhos da cara, para finalmente conseguir uma pensão alimentícia miserável, que parecia mais uma mesada do que uma pensão de verdade, mas também me virar como podia para criar, sozinha, os dois filhos do meu primeiro casamento.
De qualquer forma, certamente irá repetir que quer permanecer neutro e não tomar partido. Assim, voltamos a uma questão que sou incapaz de responder: como ele pode declarar neutralidade me proibindo de dizer abertamente o que penso de você, da sua atitude, enquanto aceita que você se permita comportamentos contrários à educação que ele mesmo, no entanto, nos deu? Ou que nossa mãe declare a quem quiser ouvir que eu ficaria com ciúme de você, que estou com problemas e, claro, que sou sensível demais, muito complicada, anormal?
E quanto àqueles que mais significam para mim? Eles irão me apoiar?
Meu marido Frédéric tem bons motivos para se preocupar. Ah não! Essas histórias não vão começar de novo!
Vai exclamar, tenho certeza. Não quer me ver chorar de novo. Além disso, não prefere secretamente o status quo? A certeza de poder passar todos os Natais com sua família, que mora em uma pequena ilha da costa da Bretanha, varrida dia e noite pelos ventos?
Meus dois mais velhos irão me perguntar por