Oceanïc
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Oceanïc - Waldson Souza
PARTE I
Nº 14
1
Esses dias parecidos se assemelham cada vez mais e fortalecem a repetição da rotina. Não há mais novidades por aqui, já sei tudo decorado, estou no modo automático. O dia de hoje está sendo igual ao de ontem, amanhã será igual ao dia de hoje. E, como nas primeiras semanas, ainda verifico o relógio da parede. Os intervalos entre as verificações são menores do que eu gostaria, sei que quanto mais olho as horas, mais devagar elas passam. Os ponteiros se movem sem pressa para completar as horas que preciso cumprir antes de finalmente poder ir embora. Ainda me confundo com eles, eles ainda me confundem.
Nos primeiros meses não houve tanto tédio, fui aprendendo a trabalhar nas diferentes áreas aos poucos. Sempre havia aquela sensação de novidade, pelo menos por quase duas semanas até o cansaço me dominar e eu torcer para me treinarem na área seguinte. Hoje, quase um ano depois, já domino todas as áreas do Silver Burger e atuo nelas com a mesma falta de entusiasmo. Às vezes penso que sou uma máquina, membros mecânicos, sorriso programado para ser ativado quando o sensor de movimento injetado nos meus olhos detecta o próximo cliente.
Mas é só uma sensação. Se eu trabalhasse em outra empresa alimentícia certamente seria uma daquelas máquinas gigantes e quadradas. Mas no Silver Burger só trabalham seres humanos. Caro cliente, somos a única rede de fast food que se orgulha em não trabalhar com máquinas de comida instantânea. Fazemos tudo à moda antiga, raspando carne de hambúrguer da chapa quente, fritando batata no óleo escaldante, embalando sanduíches com as próprias mãos. Esse é o grande diferencial do Silver Burger, além, é claro, do pão prateado e do molho especial que todos se perguntam como são feitos. Nem eu, que trabalho aqui, sei.
— Seja bem-vindo ao Silver Burger — digo quando um carro para ao lado da janela do drive-thru.
Hoje estou entregando os pedidos no drive-thru terrestre. Tudo que preciso fazer é forçar um sorriso para os clientes e entregar o próximo saco de papel da fila que minha colega Paula vai formando na mesa diante de mim. Paula é quem faz o trabalho pesado, pega tudo que o cliente pediu e coloca dentro do saco de papel seguindo à risca o padrão da loja. Sempre o padrão da loja. Sei bem, antes de ontem trabalhei no lugar de Paula.
Ela ainda tem um pouco de dificuldade em algumas tarefas, foi transferida para esta loja há pouco tempo, uns dois meses, antes ficava em um quiosque na beira de uma estrada qualquer. Finalmente a dona do Silver Burger reconheceu que esses quiosques não são mais lucrativos e mandou desmontar todos.
Entrego dois pacotes relativamente pesados e duas latas de refrigerante para o cliente. Ele agradece e vai embora. Os carros avançam, próximo cliente.
— Sejam bem-vindos ao Silver Burger.
O carro está ocupado por uma família, pai dirigindo, mãe no banco do passageiro e um garotinho de no máximo três anos no banco de trás. A mãe olha pela janela, encarando o vazio lá fora, distraída. Enquanto o pai recebe o pedido, a criança retira o tênis e em seguida o joga para o alto, quase acertando a cabeça da mulher.
— De novo, Daniel? — Ela se vira para repreendê-lo com o olhar antes de pegar o tênis.
— Obrigado — diz o pai para mim quando começa a acelerar o carro.
— Ela não parecia muito feliz.
Paula observa o carro ir embora. Costumamos fazer comentários sobre os clientes.
— Às vezes ele vem aqui com outra mulher — digo. — Lembro dele porque apesar de ter um carro voador ele sempre compra aqui embaixo, deve ser pra não pegar filas maiores.
O carro era o último da fila, nenhum outro se aproxima, por enquanto. O movimento aqui no drive-thru terrestre é menor que no drive-thru aéreo. Os carros voadores são muito populares hoje, mas ainda não é todo mundo que tem condições financeiras para comprar um. Mas a tendência é que o atendimento aqui embaixo continue diminuindo conforme as vias aéreas ficam mais cheias.
O drive-thru aéreo é sem dúvidas o melhor lugar para se trabalhar no Silver Burger. Ficar no topo da torre, e ter uma visão panorâmica de Oceanïc — com suas vias aéreas e terrestres e prédios de diversas alturas e formatos — é uma maneira de amenizar o cansaço. Oceanïc tem essa capacidade de hipnotizar mesmo os moradores mais antigos. A cidade não para de crescer, o centro sempre se expande e ganha coisas novas. Luzes, pessoas, propagandas e acontecimentos por todos os lados. Tudo compondo uma imensidão viva. Às vezes até esqueço que Oceanïc se move em alto-mar, como uma grande ilha de concreto.
Olho para o relógio outra vez, menos de quinze minutos passaram desde a última vez que olhei. Dessa vez prometo demorar mais. Ainda faltam quatro horas até eu poder ir embora.
— Rafa, esqueci seu Ries de novo — confessa Paula.
Eu quero meu reprodutor portátil de filmes de volta, preciso assistir aos lançamentos deste mês, mas não vou pressioná-la para devolver.
— Tudo bem. Fique com ele o tempo que precisar.
O reprodutor dela quebrou quando tentaram assaltar o quiosque. Emprestei o meu para que Paula pudesse se distrair de tudo que está passando em casa. Se distanciar da realidade, mesmo que por alguns momentos, às vezes, é a única forma de continuar sobrevivendo. E dividimos a mesma paixão por filmes, é bom conversar sobre os títulos da minha biblioteca.
Paula começa a falar sobre o último filme que viu, comparando com outro que assistiu no cinema. Um pedido aparece na nossa tela e enquanto ela prepara o pacote continuamos a conversa. O bom de estar em uma área com ela é que podemos ficar horas conversando sobre filmes.
— Quando eu chegar em casa, vou colocar na bolsa — diz ela, entregando-me o pedido do cliente que ainda nem apareceu na janela. — Aí não esqueço de trazer amanhã.
— Estou de folga amanhã. Traz segunda.
— Nossa, que inveja! Minha folga só vai ser na quinta.
Direciono minha atenção para a janela.
— Seja bem-vindo ao Silver Burger.
Mais um cliente. Menos cinco minutos para eu ir embora. Mais três clientes. Menos dez minutos. Contando clientes, contando os minutos. Menos meia hora. O número de pedidos aumenta. Só mais duas horas.
Quero chegar em casa, tomar um banho, comer alguma coisa e dormir até 10h00 de amanhã e ficar mais uma hora enrolando na cama. A verdade é que levantarei quase na hora do almoço. Provavelmente abrirei o site dos classificados e me interessarei por vagas para as quais não possuo qualificação e vou desdenhar as que posso ocupar, mas que não diferem do emprego atual. Vou comparar, colocando vantagens e desvantagens na balança e chegarei à mesma conclusão das outras vezes: melhor continuar onde estou. Pelo menos, logo tirarei férias.
Jurei para mim mesmo que não me acostumaria com esse emprego, ficaria só um tempo, sem me conformar. Mas aqui estou, e, às vezes, tenho a sensação devastadora de que ficarei por muito mais tempo. Todo dia sonho com uma carga horária menor e um salário mais alto, poder ficar mais tempo em casa com meu irmão, quem sabe até pagar um tratamento para minha mãe. Ela nega que precisa de ajuda, mas eu parto do pressuposto de que nega justamente porque precisa.
Eu ainda sonho. Sonho com dias em que terei disposição para tentar antigos projetos, dias em que seguirei por novos trajetos. Mas continuo aqui, observando minhas oito horas diárias decrescerem.
— Seja bem-vindo ao…
Engasgo, não consigo terminar a frase. Ele me encara com uma expressão difícil de ler, logo não posso afirmar se também está surpreso em me ver. É como se uma mão invisível tivesse acabado de ligar um interruptor nas minhas costas que desencadeia dezenas de lembranças, sentimentos e perguntas. Tudo muito rápido, não consigo organizar meus pensamentos. Outra mão segura meu coração que bate enfraquecido, e logo em seguida muito rápido, e depois fraco de novo.
— Rafa, que surpresa — diz ele. Sempre usou meu apelido, como a maioria das pessoas que conheço. — Não sabia que você trabalha aqui.
Sim, eu trabalho, por isso o pedido está suspenso em minhas mãos. Estou imóvel. Lembro que preciso me mexer. Dou um sorriso que sai fraco, meu rosto ainda se lembra de todas as lágrimas que derramei por ele.
— Sim… — pigarreio para limpar a garganta. — Sim, faz um tempo que trabalho.
A segunda tentativa, por ser bem-sucedida, me dá forças para entregar o pedido. Tiro minhas mãos o mais rápido possível do pacote, tenho medo da proximidade. Agradeço sem me preocupar em parecer rude, quero que ele vá embora antes que eu deseje que fique. Mas ele não vai, a fila de carros aumenta.
— Pô, mó tempão que não te vejo. A gente podia sair pra conversar um pouco.
Por que ele está fazendo isso? É automático? É cortesia? É um convite leviano ou realmente acha uma boa ideia? De tanto pensar, perco meu espaço para resposta e ele continua insistindo.
— Que horas você sai?
É uma pergunta direta, preciso responder.
— Às nove.
Ele verifica o relógio, o mesmo de dois anos atrás.
— Ah, tá pertinho. Vou estacionar ali na frente e te esperar. Posso te levar em casa, se você quiser.
Um carro buzina e Paula me olha com curiosidade, está demorando demais.
Ele não perguntou se podia me esperar, anunciou que faria. Antes que possa sair, eu me estico pela janela do drive-thru e coloco a mão na porta do carro. Ele para e me olha.
— Jonas, o que você está fazendo?
— Nada… Só estou à toa e seria bom conversar contigo, colocar o papo em dia. É uma má ideia?
Apesar da minha desconfiança, eu não tinha certeza de que ele era um problema para mim até cinco minutos atrás. Eu já não penso nele como antes, raramente revisito aquelas memórias. Mas agora tudo está aqui. Ele está aqui.
Tenho só alguns segundos para decidir se o mando ir embora ou se digo que está tudo bem e ele pode esperar. Garanto minha sanidade com a primeira opção, mas jogo minha dignidade no lixo, pois ele vai embora sabendo que ainda sinto algo por ele. Com a segunda, disponho-me ao risco de tê-lo na minha cabeça de novo e… Mas ele já não está?
— Tudo bem, pode me esperar.
Ele sorri, diz até daqui a pouco
e sai com o carro. E eu digo adeus a qualquer garantia de que isso vai terminar bem. Eu sinto, sairei ferido.
2
É uma pena que os avanços com teletransporte estejam tão lentos, só vejo notícias vagas na internet de que a universidade tal de tal lugar está desenvolvendo projetos na área. Quando possível virão os testes. Primeiro com objetos, é claro, depois com pequenas formas de vida. Pobres ratos. Até testarem em humanos demorará algumas décadas. Infelizmente não tenho todo esse tempo, preciso de um teletransporte agora.
Saber que Jonas está lá fora, me esperando depois de todo esse tempo sem contato, não permite que eu me concentre. Entrego um pedido errado, mas o cliente nem percebe, só descobrirá em casa e se não tiver muito cansado talvez volte para reclamar. Paula chama minha atenção e tento encontrar foco em meio às lembranças que violentam minha mente.
Tudo se mistura, não consigo encaixar os fatos em uma cronologia, é difícil definir a ordem na qual tudo aconteceu. Sei que nos conhecemos ano retrasado, sei que ficamos juntos por três meses, sei que ele foi embora após uma conversa não muito longa. Mas isso é apenas começo, meio e fim. Coisas mais pontuais