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A Estrutura das Revoluções Científicas
A Estrutura das Revoluções Científicas
A Estrutura das Revoluções Científicas
E-book429 páginas45 horas

A Estrutura das Revoluções Científicas

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Sobre este e-book

A Guerra e Paz Editores traz pela primeira vez a Portugal a edição comemorativa do 50.º aniversário d’A Estrutura das Revoluções Científicas, livro publicado pela primeira vez pela editora da Universidade de Chicago em 1962. A obra punha em causa a assunção generalizada de que todas as mudanças científicas passam por um processo estritamente racional, tese que influenciou não só cientistas das áreas naturais, mas também economistas, historiadores, sociólogos e filósofos, desencadeando um poderoso debate.
Este livro comporta três conceitos fundamentais: paradigma – termo que aqui se popularizou –, ciência normal e revolução científica. O paradigma representa um conjunto de teorias, regras e métodos comummente aceites pela comunidade científica. Cada paradigma tem subjacente uma dada visão do mundo, correspondendo a mudança de paradigma a uma alteração radical dessa visão. A ciência normal traduz a circunstância em que o paradigma tem a sua vigência. Porém, durante esse período, podem surgir anomalias, que se revelam quando os esquemas explicativos dominantes já não se adequam à realidade. Surge então uma nova fase, que se materializa numa revolução científica.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento17 de set. de 2021
ISBN9789897026782
A Estrutura das Revoluções Científicas
Autor

Thomas S. Kuhn

(1922-1996), físico norte-americano nascido em Cincinnati, foi professor emérito de Linguística e Filosofia no Massachusetts Institute of Technology. Começou por estudar Física em Harvard, mas cedo mudou o rumo da sua investigação, passando a dedicar-se à história e filosofia das ciências. Além do seu trabalho mais celebrado, A Estrutura das Revoluções Científicas, a sua obra inclui A Tensão Essencial, A Teoria dos Corpos Negros e a Descontinuidade Quântica, 1894-1912 e A Revolução Copernicana.

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    A Estrutura das Revoluções Científicas - Thomas S. Kuhn

    9789897026782.jpg

    A Estrutura das Revoluções Científicas

    Título original: The Structure of Scientific Revolutions

    Título: A Estrutura das Revoluções Científicas

    Autor: Thomas S. Kuhn

    © 1962, 1970, 1996, 2012 por The University of Chicago.

    © Guerra e Paz, Editores, S.A., 2021

    Reservados todos os direitos

    A presente edição não segue a grafia do novo acordo ortográfico.

    Tradução: Carlos Marques

    Revisão: André Morgado

    Tradução do «Ensaio introdutório»: André Morgado

    Revisão do «Ensaio introdutório»: P. Vieira

    Design: Ilídio J.B. Vasco

    Isbn: 978-989-702-678-2

    Guerra e Paz, Editores, Lda

    R. Conde de Redondo, 8–5.º Esq.

    1150­-105 Lisboa

    Tel.: 213 144 488 / Fax: 213 144 489

    E­-mail: guerraepaz@guerraepaz.pt

    www.guerraepaz.pt

    índice

    Ensaio introdutório

    Prefácio

    I. Introdução. Um papel para a história

    II. O caminho para a ciência normal

    III. A natureza da ciência normal

    IV. A ciência normal como resolução de enigmas

    V. A anterioridade dos paradigmas

    VI. Anomalia e a emergência da descoberta científica

    VII. Crise e a emergência das teorias científicas

    VIII. Resposta à crise

    IX. A natureza e a necessidade das revoluções científicas

    X. As revoluções como mudanças na concepção do mundo

    XI. A invisibilidade das revoluções

    XII. A resolução das revoluções

    XIII. Progresso através das revoluções

    Posfácio – 1969

    Ensaio introdutório

    Ian Hacking

    Os grandes livros são raros, e este é um deles. Leia­-o e verá.

    Salte esta introdução. Regresse mais tarde, se quiser perceber como o livro foi escrito, há meio século, qual o seu impacto e as polémicas que se geraram em torno das suas teses. Regresse, se quiser ler uma opinião informada sobre o estatuto do livro nos nossos dias.

    Estas notas são uma introdução ao livro, não ao autor nem à sua vida. Normalmente, Kuhn chamava­-lhe A Estrutura; em conversa, dizia apenas «o livro». Faço como ele fazia. A Tensão Essencial ¹, que ele publicou imediatamente antes ou logo depois d’A Estrutura, é uma magnífica recolha de artigos filosóficos (por oposição a históricos). Pode ser vista como uma série de comentários e aprofundamentos, pelo que é um excelente compêndio para acompanhar a leitura.

    Tendo em conta que esta é uma introdução ao livro A Estrutura, nada além d’A Tensão Essencial será aqui discutido. Refiro, contudo, que Kuhn dizia frequentemente, em conversa, que Black­-Body and the Quantum Discontinuity, um estudo sobre a primeira revolução quântica, desencadeada por Max Planck no início do século xix, é um perfeito exemplo de tudo o que diz n’A Estrutura.²

    Porque A Estrutura é um grande livro, pode ser lido de inúmeras maneiras e servir para muitos fins. Daí que esta introdução seja apenas uma leitura entre as muitas possíveis. O livro lançou uma vaga de livros sobre a vida e obra de Thomas Samuel Kuhn (1922­-1994). Uma excelente introdução à sua obra, com um ponto de vista diferente do meu, pode ser consultada online, na Stanford Encyclopedia of Philosophy.³ Para as suas últimas memórias e pensamentos, veja­-se a entrevista conduzida por Aristides Baltas, Kostas Gavroglu e Vassiliki Kindi, em 1993.⁴ Reconstructing Scientific Revolutions, de Paul Hoyningen­-Huene⁵, era o livro sobre a sua obra que ele mais admirava. Para uma lista de todas as publicações de Kuhn, veja­-se The Road Since Structure, de James Conant e John Haugeland.⁶

    Há algo que não se diz com frequência suficiente: como todos os grandes livros, este é um labor de paixão e de desejo apaixonado por fazer um bom trabalho. Evidente logo na primeira página, com uma modesta primeira frase: «A história, se não for vista apenas como um repositório de curiosidades ou de cronologias, pode produzir uma transformação decisiva na imagem que temos hoje da ciência.»⁷ Thomas Kuhn queria mudar o nosso conhecimento das ciências – isto é, das actividades que permitiram à nossa espécie, para o bem e para o mal, dominar o planeta. Conseguiu­-o.

    1962

    A presente edição comemora o quinquagésimo aniversário d’A Estrutura. O ano de 1962 foi há muito tempo. As ciências mudaram radicalmente. À época, a rainha das ciências era a física. Kuhn estudara física. Poucos a conheciam em profundidade, mas todos sabiam que era na física que tudo acontecia. A Guerra Fria estava a ser travada, portanto toda a gente conhecia a Bomba. Na escola, as crianças americanas tinham de praticar a melhor forma de se esconder por baixo das carteiras. Pelo menos uma vez por ano, as cidades faziam soar as sirenes que avisavam do perigo de bombardeamento, e todos tinham de encontrar um abrigo. Aqueles que protestavam contra a bomba nuclear, recusando­-se ostensivamente a procurar um abrigo, podiam ser presos – e alguns foram­-no. Quando Bob Dylan tocou pela primeira vez a música «A Hard Rain’s A­-Gonna Fall», em Setembro de 1962, assumiu­-se que falava de poeiras radioactivas. Em Outubro de 1962, deu­-se a Crise dos Mísseis Cubanos, o momento em que o mundo esteve mais perto de uma guerra nuclear depois de 1945. A física e os seus perigos estavam no pensamento de todos.

    A Guerra Fria acabou há muito, e já não é na física que tudo acontece. Outro acontecimento de 1962 foi a entrega dos prémios Nobel a Francis Crick e James Watson, pela biologia molecular do ADN, e a Max Perutz e John Kendrew, pela biologia molecular da hemoglobina. Esse foi o prenúncio da mudança. Hoje, quem ocupa o palco é a biotecnologia. O modelo de Kuhn foi a ciência física e a sua história. Quem ler este livro terá de decidir até que ponto aquilo que Kuhn defendeu acerca das ciências físicas continua a fazer sentido nos nossos dias, dominados pelo mundo da biotecnologia. A que se juntam as ciências da informação. E tudo o que o computador fez pela prática da ciência. Até a experimentação já não é o que era, pois foi modificada e, até certo ponto, substituída pela simulação computorizada. E todos sabemos que o computador mudou a comunicação. Em 1962, os resultados da investigação científica eram anunciados em encontros, seminários, pré­-publicação de textos e, depois, em artigos publicados em revistas científicas especializadas. Hoje, o principal meio de publicação são os ficheiros digitais.

    Há ainda outra diferença fundamental entre 2012 e 1962, que afecta o núcleo do livro: a física fundamental. Em 1962, havia duas cosmologias em competição: o estado estacionário e o Big Bang, dois modelos totalmente opostos sobre o universo e a sua origem. Depois de 1965 e da descoberta, quase por acaso, da radiação universal de fundo, restou apenas o Big Bang, prenhe de problemas excepcionais estudados como ciência normal. Em 1962, a física de altas energias parecia ser uma infindável recolha de cada vez mais partículas. O chamado modelo­-padrão trouxe ordem ao caos. É incrivelmente exacto nas suas previsões, mesmo que não façamos ideia de como se conjuga com a gravidade. Talvez não haja uma nova revolução na física fundamental, mas haverá certamente surpresas em abundância.

    Portanto, talvez A Estrutura das Revoluções Científicas seja – não digo que o é – mais relevante para uma época anterior da história da ciência do que para as ciências praticadas nos nossos dias.

    Mas será este um livro de história ou de filosofia? Em 1968, Kuhn começou uma conferência frisando: «Encontro­-me aqui perante vós como um historiador da ciência […] Sou membro da Associação Histórica Americana, não da filosófica.»⁸ No entanto, à medida que foi reorganizando o seu próprio passado, passou a apresentar­-se cada vez mais como se os seus interesses tivessem sido sempre, em primeiro lugar, de cariz filosófico.⁹ Embora A Estrutura tenha tido um enorme impacto na comunidade de historiadores da ciência, os seus efeitos mais duradouros sentiram­-se provavelmente na filosofia da ciência e, também, no espaço público. Foi sob essa perspectiva que escrevi a presente introdução.

    Estrutura

    Foi bem pensado dispor as palavras «estrutura» e «revolução» lado a lado no título do livro. Kuhn não só considerava que existiam revoluções científicas, como também que elas tinham uma estrutura. Ele delineou essa estrutura com grande cuidado, atribuindo um nome proveitoso a cada um dos seus nós. Ele tinha talento para o aforismo; a sua terminologia atingiu um estatuto pouco habitual; e se antes aquelas palavras eram consideradas arcaísmos, agora fazem parte da língua quotidiana. Eis a sequência: (1) ciência normal (§§II­-IV – a que chamou secções, não capítulos, pois ele via A Estrutura mais como o plano para um livro do que um livro em si); (2) resolução de enigmas (§IV); (3) paradigma (§V), uma palavra que ao tempo era bastante insólita, mas que depois se tornou banal (já para não falar de mudança de paradigma!); (4) anomalia (§VI); (5) crise (§§VII­-VIII); e (6) revolução (§IX), a instauração de um novo paradigma.

    É esta a estrutura das revoluções científicas: a ciência normal com um paradigma e devotada à resolução de enigmas; seguida por graves anomalias, que levam a uma crise; e finalmente a resolução da crise com um novo paradigma. Há outra palavra famosa que não ocorre nos títulos das secções: incomensurabilidade. A ideia de que, durante uma revolução e consequente mudança de paradigma, as novas ideias e asserções não podem ser comparadas de forma estrita com as antigas. Mesmo que algumas das palavras que eram usadas continuem a sê­-lo, o seu sentido mudou. O que, por sua vez, levou à ideia de que não foi por ser mais verdadeira que uma nova teoria foi escolhida para substituir a antiga, mas sim por produzir uma mudança na concepção do mundo (§X). O livro termina com um pensamento desconcertante: o progresso científico não é uma mera linha que conduz à verdade. É antes um afastamento de concepções e interacções com o mundo que são menos adequadas (§XIII).

    Analisemos cada uma das ideias. Como é óbvio, a estrutura é demasiado ordenada. A história, como reclamam os historiadores, não é assim. Mas foi precisamente o instinto de Kuhn como físico que o levou a conceber uma estrutura simples, profunda e que se adequasse a vários propósitos. Era uma imagem da ciência que um leitor comum podia compreender. Tinha o mérito de, em certa medida, poder ser testada. Os historiadores da ciência podiam ver até que ponto as grandes mudanças nas suas áreas de especialidade se conformavam com a estrutura de Kuhn. Infelizmente, também foi usada de modo abusivo por uma onda de intelectuais cépticos que pôs em causa a própria ideia de verdade. Kuhn não tinha essa intenção. Ele amava os factos e procurava a verdade.

    Revolução

    Quando pensamos em revolução, pensamos primeiro em política: a Revolução Americana, a Revolução Francesa, a Revolução Russa. Tudo é derrubado e surge uma nova ordem mundial. Talvez o primeiro pensador a alargar esta ideia de revolução às ciências tenha sido Immanuel Kant. Ele identificava duas grandes revoluções intelectuais. Não são mencionadas na primeira edição (1781) da sua obra­-prima, A Crítica da Razão Pura (outro raro grande livro, mas não uma leitura compulsiva, como A Estrutura!). Mas, no prefácio à segunda edição (1787), numa prosa demasiado ornamentada, refere dois eventos revolucionários.¹⁰ Um foi a mudança da prática matemática, na Grécia, em que as técnicas comuns na Babilónia e no Egipto foram transformadas de provas em postulados. A segunda foi a emergência do método experimental e do laboratório, uma série de acontecimentos que Kant considerou ter começado com Galileu. Kant repete a palavra Revolução várias vezes em dois longos parágrafos.

    Note­-se que, embora pensemos em Kant como o mais puro dos eruditos, ele vivia numa época turbulenta. Todos sabiam que algo de profundo ocorria por toda a Europa, e de facto a Revolução Francesa aconteceria dali a apenas dois anos. Foi Kant quem pôs em campo a ideia de revolução científica.¹¹ Como filósofo parece­-me divertido, e certamente perdoável, que um honesto Kant confesse, em nota de rodapé, que não está em posição de prestar atenção a pormenores históricos.¹² O primeiro livro de Kuhn que se debruçou sobre a ciência e a sua história não foi A Estrutura, mas A Revolução Copernicana.¹³ A ideia de revolução científica já circulava com relativa frequência. Depois da II Guerra Mundial, escreveu­-se bastante sobre a revolução científica do século xvii. Francis Bacon foi o seu profeta; Galileu, o seu farol; e Newton, o seu sol.

    Um primeiro ponto a ter em conta – que não é óbvio logo na primeira leitura d’A Estrutura – é que Kuhn não está a falar acerca da revolução científica. Esse foi um acontecimento bem diferente das revoluções cuja estrutura Kuhn tomava como postulado.¹⁴ De facto, pouco antes de ter publicado A Estrutura, ele tinha avançado a ideia de que houve uma «segunda revolução científica».¹⁵ Ocorrera no início do século xix, quando várias novas áreas do conhecimento foram matematizadas. Calor, luz, electricidade e magnetismo ganharam paradigmas, e de repente uma vasta massa de fenómenos sem qualquer organização começou a fazer sentido. Isto coincidiu – andou até lado a lado – com o que chamamos de Revolução Industrial. Possivelmente, foi o início do moderno mundo tecnocientífico em que vivemos. Mas, tal como a primeira revolução científica, a segunda também não exibia a «estrutura» d’A Estrutura.

    Um segundo ponto a ter em conta é que a geração que precedeu Kuhn, e que escreveu tão abundantemente sobre a revolução científica do século xvii, crescera num mundo em que decorria uma revolução radical na física. O abalo provocado pela teoria especial (1905) e geral (1916) da relatividade de Einstein foi mais forte do que podemos imaginar. Inicialmente, a relatividade teve consequências maiores nas humanidades e nas artes do que consequências verdadeiramente comprováveis na física. Sim, houve a famosa expedição de Sir Arthur Eddington para testar uma previsão astronómica da teoria, mas só mais tarde é que a relatividade se tornou parte dos vários ramos da física.

    Depois deu­-se a revolução quântica, também um acontecimento a dois níveis, com a introdução de Max Planck ao quantum, por volta de 1900, e depois a teoria quântica por inteiro em 1926­-1927, completada com o princípio da incerteza de Heisenberg. Combinadas, a relatividade e a física quântica derrubaram não só a velha ciência, como também a metafísica elementar. Kant ensinou que o espaço absoluto newtoniano e o princípio da causalidade uniforme eram, a priori, os princípios que estruturam o pensamento, condições necessárias para os seres humanos compreenderem o mundo em que vivem. A física provou que ele estava redondamente enganado. Causa e efeito eram mera aparência, e a indefinição era a raiz da realidade. Na ciência, a revolução estava na ordem do dia.

    Antes de Kuhn, Karl Popper (1902­-1994) era o mais influente filósofo da ciência – quero dizer, o mais lido e, até certo ponto, o mais aceite pelos cientistas.¹⁶ Popper crescera durante a segunda revolução quântica, o que lhe ensinou que a ciência progride através de conjecturas e refutações, para usar o título de um dos seus livros. Popper dizia que a história da ciência exemplificava uma metodologia moralista. Primeiro, avançamos com conjecturas arrojadas, que sejam testáveis o mais possível, e depois descobrimos­-lhes, inevitavelmente, as falhas. As primeiras conjecturas são refutadas e avançamos com novas conjecturas, que se adeqúem aos factos. As hipóteses só poderão ser tidas como «científicas» se forem passíveis de serem testadas. Esta visão purista da ciência seria impensável antes das grandes revoluções do início do século.

    A ênfase de Kuhn nas revoluções pode ser vista como o próximo passo depois das refutações de Popper. Podemos ler a versão de Kuhn das relações entre os dois em «Logic of Discovery or Psychology of Research».¹⁷ Ambos tomavam a física como protótipo de todas as ciências e formaram as suas ideias no rescaldo da relatividade e do quantum. As ciências são hoje diferentes. Em 2009, celebrou­-se, com pompa e circunstância, o 150.º aniversário d’A Origem das Espécies, de Darwin. Com todos os livros, espectáculos e festivais, suspeito que uma grande parte do público responderia, com grande sensatez, se lhe fosse perguntado, que A Origem das Espécies foi a obra científica mais revolucionária de todos os tempos. É, portanto, surpreendente que a revolução de Darwin nunca seja mencionada n’A Estrutura. A selecção natural surge de modo importante nas páginas 221-222, mas apenas para servir de analogia ao desenvolvimento científico. Agora que as ciências da vida substituíram a física como manda­-chuva, temos de nos perguntar até que ponto a revolução de Darwin se conforma ao modelo de Kuhn.

    Uma última nota: o uso moderno na palavra revolução vai muito para lá do que Kuhn tinha em mente. Isto não é uma crítica a Kuhn ou ao público em geral. Pretendo apenas dizer que devemos ler Kuhn atentamente, prestando atenção ao que ele realmente diz. Hoje em dia, revolução é uma palavra elogiosa. Todos os novos frigoríficos, os filmes mais recentes, tudo é anunciado como revolucionário. É difícil lembrar­-nos de que essa palavra era usada com moderação. Nos media americanos (quase esquecidos da Revolução Americana), a palavra causava mais repugnância do que aplausos, pois revolucionário significava «comuna». Lamento que a palavra revolução tenha sido reduzida a uma simples moda, mas este facto torna a compreensão de Kuhn um pouco mais difícil.

    Ciência normal e resolução de enigmas (§§II­-IV)

    Os pensamentos de Kuhn eram chocantes. A ciência normal consiste apenas, ensinava ele, em resolver alguns enigmas deixados em aberto numa dada área do saber. Resolver enigmas faz­-nos pensar em palavras cruzadas, puzzles, sudoku, maneiras agradáveis de nos entretermos quando não queremos fazer trabalho sério. A ciência normal é isso?

    Parte considerável do público científico ficou chocado, mas teve de admitir que muito do seu trabalho quotidiano consistia nisso mesmo. Os problemas de investigação não procuram produzir novidades de monta. Uma única frase na página 85 de Kuhn resume­-lhe a doutrina: «A característica mais notável dos problemas da investigação normal que acabámos de observar é talvez o facto de eles se preocuparem tão pouco com a produção de novidades de grande monta, quer no plano conceptual, quer no dos fenómenos.» Se abrirmos qualquer revista científica, escreveu Kuhn, encontramos três tipos de problemas: (1) determinação de factos significativos; (2) correspondência entre factos e teoria; e (3) articulação da teoria. Desenvolvendo resumidamente:

    A teoria descreve de modo inadequado algumas quantidades ou fenómenos e só nos diz, qualitativamente, o que poderemos esperar. Medições e outros procedimentos ajudam a estabelecer os factos com maior certeza;

    As observações realizadas não coincidem na sua totalidade com a teoria. Haverá algo de errado? Adapte­-se a teoria ou demonstre­-se que os dados da experiência são anómalos;

    A teoria pode ter uma formulação matemática sólida, mas ainda não conseguimos compreender todas as suas consequências. Kuhn dá o apropriado nome de articulação ao processo de apresentar o que está implícito na teoria, muitas vezes através da análise matemática.

    Embora muitos cientistas no activo concordem que o seu trabalho confirma a regra de Kuhn, tudo isto continua a soar errado. Um dos motivos para Kuhn pôr as coisas desse modo (tal como Popper e muitos outros antes deles) é porque pensava que o principal trabalho da ciência era teórico. Kuhn tinha muito apreço pela teoria; embora conhecesse relativamente bem a experimentação, apresentava­-a como tendo uma importância secundária. Desde os anos 1980, houve uma mudança considerável nesta ideia, na medida em que historiadores, sociólogos e filósofos começaram a dar maior atenção à ciência experimental. Tal como Peter Galison escreveu, há três tradições de investigação, paralelas, mas em larga medida independentes: teórica, experimental e instrumental.¹⁸ Cada uma é essencial para as outras duas, mas usufruem de um grande nível de autonomia: todas têm a sua própria vida. Muitas das inovações da experiência ou dos instrumentos não são tidas em conta no posicionamento teórico de Kuhn, portanto a ciência normal pode apresentar muitas inovações, mas não no campo da teoria. E para o público em geral, que deseja tecnologias e curas, as inovações que fazem com que a ciência seja admirada geralmente não são teóricas. Essa é a razão para que as afirmações de Kuhn pareçam tão irracionais.

    Para um exemplo actual do que está absolutamente certo, mas também do que é questionável na ideia de ciência normal de Kuhn, repare­-se que a física de altas energias de que os jornalistas da ciência mais falam é a investigação sobre a partícula de Higgs. É um projecto que envolve uma quantidade imensa de dinheiro e talento, com o objectivo de confirmar o que a física moderna ensina: existe uma partícula que ainda não foi detectada, mas que assume um papel essencial na existência da própria matéria. Inúmeros enigmas, da matemática à engenharia, podem ser resolvidos à boleia desta investigação. Por um lado, nada de novo se antecipa na teoria ou nos fenómenos. E nisso Kuhn estava certo. A ciência normal não procura a novidade. Mas a novidade pode emergir da confirmação de teorias já existentes. De facto, espera­-se que quando estiverem estabelecidas as condições ideais que permitam descobrir a partícula, irá surgir uma nova geração de física de altas energias.

    A caracterização da ciência normal como resolução de enigmas sugere que Kuhn não considerava que fosse importante. Mas, na verdade, é o contrário: Kuhn considerava que a actividade científica era extremamente importante e que a maior parte consistia na prática da ciência normal. Actualmente, até os cientistas que duvidam da sua teoria sobre as revoluções têm em grande conta o seu conceito de ciência normal.

    Paradigma (§V)

    Este conceito necessita de atenção especial por duas razões. Primeiro, Kuhn mudou sozinho o significado da palavra paradigma, pelo que um novo leitor atribui­-lhe conotações muito diferentes das que o autor tinha à disposição em 1962. Segundo, como o próprio afirmou no posfácio: «O paradigma como exemplo partilhado é agora o elemento central do que hoje tomo como sendo o aspecto mais original e menos compreendido deste livro.» (236) Na mesma página, sugeria o termo modelo como possível substituto. Noutro ensaio, escrito pouco depois do posfácio, Kuhn admitiu que «perdera o controlo da palavra».¹⁹ No fim da vida, deixou de a usar. Mas nós, leitores d’A Estrutura, cinquenta anos após ter sido publicada e depois de muita poeira ter assentado, esperamos elevá­-la alegremente à sua antiga proeminência.

    Assim que o livro foi publicado, os leitores queixaram­-se de que a palavra paradigma era usada em muitos sentidos. Num ensaio muito citado, mas raramente lido, Margaret Masterman revelou que Kuhn usava a palavra paradigma de vinte e uma maneiras.²⁰ Esta e outras críticas semelhantes levaram o autor a clarificar a questão no ensaio «Second Thoughts on Paradigms». Distinguiu, então, dois usos fundamentais da palavra, um «global», o outro «local». Sobre o uso local, escreveu: «É, naturalmente, o sentido de exemplo­-padrão que me levou primeiro a escolher a palavra paradigma.» Mas os leitores, dizia ele, usaram­-no num sentido mais extenso do que o pretendido, por isso continuou: «Não vejo grandes hipóteses de recapturar o uso original de paradigma, o único filologicamente apropriado.»²¹ Talvez isso fosse verdade em 1974, mas neste 50.º aniversário regressamos ao sentido que a palavra tinha em 1962. Voltarei aos sentidos global e local, mas antes algumas notas prévias.

    Hoje em dia, paradigma, juntamente com mudança de paradigma, encontra­-se, de uma maneira desagradável, por todo o lado. Tornou­-se uma moda. A New Yorker, sempre alerta e fascinada pelas modas do momento, brincou com o assunto num dos seus cartunes: numa festa chique de Manhattan, uma jovem roliça com calças à boca­-de­-sino diz a um careca que gosta de estar na moda: «Muito bem, Sr. Gerston. É a primeira pessoa que oiço a empregar a palavra paradigma na vida real.»²² Actualmente, é dificílimo escapar à maldita palavra, daí Kuhn ter dito, ainda nos anos 1970, que lhe perdera o controlo.

    Voltemos ao tema. A palavra grega paradeigma assumiu um papel importante na teoria aristotélica da argumentação, especialmente em Retórica. Essa obra trata da argumentação prática entre duas partes, orador e audiência, que partilham um número substancial de crenças que não necessitam de explicação. Nas traduções para inglês, o antepassado da actual palavra paradigma era exemplo, mas Aristóteles queria dizer algo mais aproximado de exemplar, o melhor e mais instrutivo exemplo. Ele considerava que existiam dois tipos básicos de argumentos. Um era essencialmente dedutivo, mas com muitas premissas não referidas. O outro era essencialmente analógico.

    Para este segundo tipo, imagine­-se que se discute algo. Eis um dos exemplos de Aristóteles, o qual muitos leitores poderão adaptar com facilidade, da realidade das cidades­-estado do tempo de Aristóteles para a realidade moderna dos estados­-nações. Deveria Atenas entrar em guerra com a vizinha Tebas? Não. Estava errado que Tebas entrasse em guerra com a vizinha Fócida. Qualquer audiência ateniense concordaria; isso é um paradigma. Discute­-se, então, uma situação exactamente análoga. Ou seja, também seria errado que entrássemos em guerra com Tebas.²³ Resumindo: discute­-se determinado assunto. Alguém refere um exemplo arrebatador com o qual quase toda a audiência concorda – é o paradigma. Subjacente, a ideia de que o assunto em discussão «é tal qual aquilo».

    Nas traduções latinas de Aristóteles, paradeigma tornou­-se exemplum, que trilhou o seu caminho pelas teorias medievais e renascentistas da argumentação. A palavra paradigma manteve­-se nas línguas europeias, mas divorciada da retórica. O seu uso tendia a ser limitado, reservando­-se para situações em que um modelo­-padrão deveria ser seguido ou imitado. Quando as crianças, nas escolas, tinham de aprender latim, eram obrigadas a conjugar o verbo amare – amo, amas, amat e por aí fora. Esse era o paradigma, o modelo que os outros verbos imitavam. O principal uso da palavra paradigma relacionava­-se com a gramática, embora estivesse sempre disponível como metáfora. Em inglês, nunca teve êxito como metáfora, que parece ter sido mais comum em alemão. Nos anos 1930, membros do Círculo de Viena, um influente grupo de filósofos, como Moritz Schlick e Otto Neurath, usavam confortavelmente a palavra alemã nos seus escritos filosóficos.²⁴ Talvez Kuhn não o soubesse, mas a filosofia do Círculo de Viena, e de outros emigrantes filósofos de língua alemã nos Estados Unidos, foi a filosofia da ciência com a qual Kuhn, nas suas próprias palavras, «cresceu».

    Depois, na década em que A Estrutura estava a maturar, alguns filósofos analíticos ingleses promoveram a palavra. Em parte, porque o caracteristicamente vienense Ludwig Wittgenstein a usara abundantemente nas suas aulas em Cambridge nos anos 1930. Essas aulas eram obsessivamente discutidas por aqueles que foram encantados por ele. A palavra surge diversas vezes nas suas Investigações Filosóficas (outro grande livro, publicado em 1953). A primeira vez que a palavra é usada nessa obra (§20) fala do «paradigma da nossa gramática», embora a ideia de gramática em Wittgenstein seja muito mais abrangente do que o habitual. Mais tarde, usou­-a em relação aos «jogos de linguagem», uma expressão alemã originalmente obscura que ele integrou na cultura geral.

    Não sei quando Kuhn terá lido Wittgenstein pela primeira vez, mas, primeiro em Harvard e depois em Berkeley, conviveu bastante com Stanley Cavell, um pensador fascinante e original que fora profundamente influenciado por Wittgenstein. Os dois admitiram a importância, naquele momento das suas vidas, de partilharem os seus problemas e posições intelectuais.²⁵ E não tenho dúvida de que a noção de paradigma terá sido problematizada nessas discussões.²⁶

    Ao mesmo tempo, alguns filósofos britânicos inventaram o «argumento do caso paradigmático», assim chamado, penso, em 1957. Foi amplamente discutido, pois parecia ser um argumento novo e generalista contra diversas formas de cepticismo. Apresento uma imitação razoável da ideia. Não podemos afirmar que carecemos de livre­-arbítrio (por exemplo), porque tivemos de aprender a usar a expressão «livre­-arbítrio» de exemplos, e estes são paradigmas. Como tivemos de aprender a expressão a partir desses paradigmas, que existem, então o livre­-arbítrio existe.²⁷ Portanto, quando Kuhn estava a escrever A Estrutura, a palavra paradigma circulava no ambiente académico.²⁸

    A palavra estava disponível para quem a quisesse agarrar, e ele agarrou­-a.

    O leitor poderá encontrá­-la no início da secção ii, «O caminho para a ciência normal». A ciência normal baseia­-se num acervo de realizações científicas, desenvolvido e reconhecido por determinada comunidade científica. Num ensaio de 1974, «Second Thoughts on Paradigms», Kuhn voltou a enfatizar que, no livro, paradigma constava lado a lado com comunidade científica.²⁹ Essas realizações serviam de exemplos para o que deveria ser feito, o género de questões a que se deveria dar resposta, as aplicações bem­-sucedidas e

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