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Somente pela fé
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E-book494 páginas5 horas

Somente pela fé

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Sobre este e-book

"Como diz Tom Schreiner, o livro "aborda uma das questões fundamentais de nossa condição humana: como uma pessoa pode ser justa diante de Deus?" A impressionante resposta bíblica é: sola fide – fé somente. Mas tenha certeza de ouvir isso com cuidado e precisão: ele diz justo diante de Deus pela fé somente, não diz alcançar o céu pela fé somente. Existem outras condições para alcançar o céu, mas nenhuma outra para incorporar um relacionamento de justiça com Deus. De fato, a pessoa deve já ser justa diante de Deus pela fé somente para satisfazer as outras condições." (John Piper)
IdiomaPortuguês
Data de lançamento22 de out. de 2021
ISBN9786559890415
Somente pela fé

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    Somente pela fé - Thomas R. Schreiner

    Parte 1

    Sola fide: um tour histórico

    Capítulo 1

    Sola fide na igreja primitiva

    Ó que doce troca! Ó que obra incompreensível de Deus! Ó que bênçãos inesperadas, que a pecaminosidade de muitos se ocultasse em um homem justo, enquanto a justiça de um justificasse muitos pecadores! Carta de Diogneto 9.5

    Nós iniciamos nosso passeio histórico da doutrina da justificação olhando para os pais apostólicos e para a era patrística. Ao fazê-lo, devemos reconhecer que nosso ponto de vista afeta o modo como lemos. A princípio devemos dizer que os escritos dos primeiros cristãos devem ser lidos com gratidão e apreciação. Quando os lemos, reconhecemos e afirmamos que eles confessaram a mesma fé que estimamos. Nós reverberamos a convicção deles de que Jesus é o Cristo e que ele cumpriu a profecia do Antigo Testamento, pois eles confessaram que Cristo é o centro da fé deles. Os protestantes evangélicos reconhecem que Deus guiou a igreja primitiva enquanto esta lutava com as dimensões cristológicas da fé revelada a ela. Os protestantes, influenciados pelas tradições da Reforma, afirmam que os credos de Niceia e de Calcedônia capturam a mensagem do Novo Testamento. Nem nós limitamos a nossa apreciação aos assuntos cristológicos, pois nos alegramos na afirmação que eles fazem sobre o mundo criado, sua rejeição do gnosticismo, e seu interesse pela ética proclamada por Jesus Cristo e pelos apóstolos.

    A expressão frequentemente repetida de que subimos nos ombros daqueles que nos precedem se aplica aos primeiros teólogos na história da igreja e, na realidade, a todos os santos e estudiosos que vieram antes de nós. Protestantes que ignoram ou desprezam as contribuições da era primordial da igreja mostram sua insensatez e arrogância, pois nós temos um débito para com a igreja em todas as épocas. Ao afirmar a sola fide, não estamos dizendo que cremos que a verdadeira igreja só apareceu no século 16, nem estamos dizendo que a igreja estivesse profundamente errada até o tempo da Reforma. Em verdade, nossa posição é a do mais profundo apreço pelos crentes que seguiram o Senhor antes de nós, reconhecendo com gratidão sua fé, sabedoria, coragem e devoção. O próprio Lutero reconheceu que houve muita coisa boa na igreja nos 1.500 anos que o precederam.¹ Uma observação como esta não significa que não havia fraquezas na igreja, nem devemos supor que a igreja e suas doutrinas sempre foram bíblicas e saudáveis. A Reforma aconteceu com uma razão! Ainda assim, o perigo para muitos protestantes é supor que a igreja tinha pouco ou nenhum entendimento do evangelho paulino em seus primeiros 1.500 anos. Tal parecer é um exagero grosseiro.

    Isso nos leva à primeira pergunta que desejamos considerar: a sola fide foi ensinada no período inicial da história da igreja? Nós sabemos que a fórmula em si – somente a fé – foi adotada confessionalmente durante a Reforma depois da igreja já existir a aproximadamente 1.500 anos. Isso nos leva a imaginar: se os primeiros cristãos não adotavam somente a fé, deveríamos nós fazê-lo hoje? Hoje, muitos evangélicos estão retornando e recuperando a voz dos pais da igreja primitiva.² Nós reconhecemos nosso débito para com os pais da igreja, e agora existe uma nova explosão de interesse pela exegese e teologia deles.³ Reconhecemos agora que os pais primitivos eram cuidadosos intérpretes da Escritura, e daí despertou-se nosso interesse em saber se eles confessavam que a salvação é somente pela fé. Teriam os protestantes, durante o tempo da Reforma e subsequentemente, reagido exageradamente aos católicos romanos? Poderia ter havido uma postura mais equilibrada e bíblica dos pais primitivos, naqueles que viveram e escreveram antes das controvérsias de 1500 começarem?

    Eu ainda não disse nada sobre a Soteriologia dos primeiros cristãos, pois existe controvérsia significativa na erudição sobre se eles foram, de fato, fiéis à teologia da graça de Paulo. Dificilmente poderia resolver a questão aqui, dado o extenso debate sobre o assunto. Mesmo assim, espero proporcionar uma perspectiva para nosso estudo, e se tornará aparente onde eu me apoio na disputa a respeito da fidelidade dos pais da igreja a Paulo. Alguns têm argumentado, talvez sendo o mais famoso deles Thomas Torrance, que os que faziam parte da era patrística entendiam mal o evangelho paulino e que, na verdade, o contradiziam.⁴ Outros defendem que a conclusão de Torrance não é justificada, que um exame compreensivo da teologia da era primitiva mostra que eles ratificavam o evangelho de Paulo.⁵ Eu me inclino mais para o último ponto de vista, mas, antes de defendê-lo, devo dizer outra palavra sobre a questão da clareza e da precisão doutrinária.

    Colocando de forma simples, não podemos esperar que os primeiros cristãos tivessem a mesma clareza sobre o assunto da sola fide que os reformadores.⁶ A ênfase que encontramos entre eles sobre tópicos como boas obras e mérito não possui a clareza das discussões posteriores, mas uma leitura solidária não postulará uma contradição entre eles e os reformadores. A verdadeira fé resulta em boas obras, e o termo mérito nos pais primitivos pode designar a recompensa dada em vez de ser interpretado para dizer que alguém aufere a salvação.⁷ Devemos nos lembrar de que os crentes primitivos estavam corretamente preocupados com o antinomianismo,⁸ uma má interpretação da teologia da graça de Paulo que apoiava um estilo de vida pecaminoso. Os pais primitivos se opunham com razão ao que, mais tarde, Dietrich Bonhoeffer chamaria de graça barata, um abuso da liberdade do evangelho levando a pessoa a se desculpar por seu comportamento pecaminoso.

    Os reformadores, diferentemente dos pais da igreja, tiveram o benefício dos 1.500 anos de reflexão cristã para ponderar sobre a justificação e estavam em débito para com aqueles que os precederam, especialmente Agostinho. A igreja primitiva não teve controvérsia teológica significativa sobre a Soteriologia e o papel da fé e das obras. Eles afirmavam de bom grado que a salvação era do Senhor. Também, em linha com o testemunho paulino, eles confessavam que a salvação era pela fé e não pelas obras. Ao mesmo tempo eles concluíam que as boas obras eram necessárias para a salvação final. Essas afirmações não precisam ser vistas como contraditórias. Elas concordam com o que o próprio Novo Testamento ensina, e assim representam uma apropriação fiel do testemunho do Novo Testamento, mesmo que alguns dos termos e expressões dos pais primitivos carecessem da clareza e da precisão das formulações posteriores. Uma recepção fiel da mensagem do Novo Testamento não deve ser igualada à compreensão total da Soteriologia ou à precisão que encontramos nos reformadores e em seus seguidores. Todavia, a imprecisão dos pais primitivos não surpreende, pois a controvérsia (como é evidente nos antigos debates sobre a Trindade e a Cristologia) é a fornalha na qual uma teologia mais clara é forjada.

    O que não encontramos na era patrística, pelo menos até Agostinho, é uma discussão completa sobre o relacionamento entre fé e obras. Essa questão veio à baila no confronto entre Agostinho e Pelágio. Antes disso, os pais da igreja estavam satisfeitos simplesmente em dizer o que encontramos no Novo Testamento: a salvação é pela fé e em razão da graça de Deus, e aqueles que experimentam a graça de Deus devem viver uma nova vida, pois aqueles que não foram transformados não receberão uma recompensa eterna. A este respeito, os pais assimilaram fielmente a mensagem do Novo Testamento. Mas não deveríamos esperar que aqueles que faziam parte da era patrística falassem diretamente sobre assuntos que surgiram mais tarde na história da igreja.

    Alguns, lamentando as divisões entre os católicos romanos e os protestantes nos últimos 500 anos, podem anelar pela unidade na Soteriologia que encontramos na igreja antiga e podem desejar que pudéssemos voltar àquele período. Tais sentimentos representam nostalgia, uma nostalgia que não concorda com as realidades históricas. A verdade é que cada período da história da igreja tem sido marcado por discórdia e controvérsia doutrinária. De fato, uma vez que a questão da fé e das obras veio à tona no debate entre Agostinho e Pelágio, o assunto se tornou altamente controverso. Pastores foram alertados de uma forma nova para os assuntos em questão.

    Também é nostálgico e sentimental desejar que pudéssemos discutir o assunto da sola fide separadamente da Reforma e da Contrarreforma, para não mencionar os mais de 400 anos desde então. A controvérsia durante a Reforma afiou o debate e deu aos assuntos uma clareza que não encontramos na igreja antiga. Novamente, digo que isso não é uma crítica aos primeiros pais. Não devemos esperar que eles se pronunciassem sobre assuntos que não eram debatidos em sua época. Devemos ser cuidadosos com um criticismo anacrônico que julga teólogos com base em história subsequente. Também não podemos voltar a uma época anterior para encontrar a pureza e unidade doutrinárias que ansiamos. Em vez disso, devemos avaliar a questão da justificação à luz da totalidade da história da igreja e dos debates e discussões intensos que têm surgido. Alguns podem estar satisfeitos em ser agostinianos, mas a discussão passou do âmbito de Agostinho. Tal afirmação não significa que ignoramos Agostinho, pois sua contribuição foi vital e deve ser integrada às argumentações atuais. Ainda assim, ele não deu a resposta final e decisiva à discussão, e a contribuição dos reformadores e dos estudos bíblicos contemporâneos deve também ser incluída na avaliação do papel da sola fide hoje.

    Certamente devemos ser gratos pelos últimos 500 anos, pois os debates, divisões e discussões nos forçaram a ler o texto bíblico intensa e cuidadosamente. Eles nos impeliram a ser como os bereanos, que examinavam as Escrituras para discernir o que elas realmente ensinam (At 17.11). Talvez algumas formulações teológicas sejam mais precisas do que a Escritura autorize. No entanto, como a igreja tem aprendido nas controvérsias cristológicas, pode ser que o estudo intenso sobre a justificação tenha nos levado a uma concepção mais abrangente, uma concepção que faça justiça ao todo do testemunho escriturístico. Apesar do perigo de sermos seletivos e resumidos, uma razão pela qual nós nos empenharemos em um passeio pela história da igreja é que ele proporciona uma amostra da profundidade e da amplitude da obra daqueles que vieram antes de nós.

    Resumindo, ao considerar as contribuições dos pais apostólicos e da era patrística, não devemos esperar tanto deles, nem tão pouco.⁹ Nós não devemos esperar que eles estejam familiarizados com os debates da Reforma, pois isso seria anacrônico.¹⁰ Ao mesmo tempo, podemos ser culpados de esperar muito pouco também, pois, se eles são fiéis ao testemunho apostólico, nós detectaremos o evangelho no que eles escreveram.

    Definindo termos-chave

    Para aqueles que podem ser iniciantes nessas discussões ou que são pouco familiarizados com os debates históricos ou contemporâneos sobre o assunto da justificação, é importante obter familiaridade com alguns termos-chave usados. Assim, antes de mergulhar na evidência histórica da sola fide, consideremos algumas definições.

    Embora eu já tenha usado justificação várias vezes e a maioria dos leitores esteja familiarizada com o que o termo significa, nós podemos defini-lo como ser justo diante de Deus. Justificação, então, refere-se a como nós obtemos justiça. O entendimento forense de justificação considera o ser declarado justo diante de Deus. Em contrapartida, o entendimento transformador considera o tornar-se justo diante de Deus. Juntamente com isso, é importante que compreendamos a distinção entre uma justiça imputada e uma justiça infundida. Justiça imputada significa que nós somos declarados justos diante de Deus com base na justiça de Jesus Cristo, que é dada a nós quando cremos. Justiça infundida significa que nós somos justos diante de Deus por causa do nosso comportamento justo, por causa da justiça que nos transforma e nos muda.

    Historicamente, os católicos romanos têm defendido a ideia de que a justiça que nos salva no dia do julgamento é a infundida, enquanto os protestantes têm defendido que a justiça que nos livra da ira de Deus é a imputada. Eu argumentarei neste livro que a compreensão protestante é correta e que o ponto de vista católico-romano se desvia do evangelho de Jesus Cristo. Para aqueles que são novos nesta discussão, saibam que explicaremos isso melhor nos capítulos que se seguem. Com essas definições básicas estabelecidas, agora podemos nos voltar para a evidência histórica para a sola fide na igreja primitiva.

    Justificação pela fé em 1Clemente

    Nos escritos dos primeiros cristãos não encontramos muitas referências à justificação, mas a evidência que temos apoia a ideia de que a maioria dos pais apostólicos da igreja entendia a justificação de forma forense, e assim, como veremos, eles permanecem em oposição a Agostinho.¹¹ Nós começamos com estas palavras fascinantes sobre justificação em 1Clemente 32.3-4,¹² que a maioria acredita terem sido escritas em torno de 96 d.C.¹³

    Todos, portanto, foram glorificados e magnificados, não por meio de si próprios, de suas próprias obras ou das ações justas que praticaram, mas por meio da sua vontade. E assim também nós, tendo sido chamados por intermédio da sua vontade em Cristo Jesus, não somos justificados por meio de nós mesmos, ou por meio da nossa sabedoria, compreensão, piedade ou obras que temos praticado em santidade de coração, mas por meio da fé, pela qual o Deus Todo-Poderoso justificou todos que existiram desde o princípio, a quem seja a glória para sempre e sempre. Amém.¹⁴

    Clemente diz claramente que nossas obras ou santidade não nos justificam. Como Lindemann observa, Clemente mostra bem claramente que ele não é um professor da ‘justificação pelas obras’.¹⁵ Frequentemente ele enfatiza a obra graciosa de Deus nos crentes.¹⁶ Em vez disso, justificação é obra de Deus e é concedida àqueles que exercem a fé. Tal ideia concorda com o ensino de Clemente sobre a eleição (1Clem. 32.3; 59.2), que apresenta a graça de Deus na salvação.¹⁷ Na ênfase de Clemente sobre a justificação pela fé (31.1-2), nós temos um exemplo precoce do que mais tarde seria conhecido como sola fide.¹⁸ Ao mesmo tempo, Clemente usa a maior parte da carta exortando seus leitores a viver uma vida virtuosa. Tal ênfase, contudo, não significa que ele nega o que escreveu sobre a justificação.¹⁹ Devemos considerar a ocasião e circunstâncias que suscitaram o documento.²⁰ Para Clemente, as boas obras fluem da fé (30.3) e não são a base da justificação. Como Arnold diz, as boas obras em Clemente são a resposta adequada à obra da salvação, não o fundamento da justificação.²¹

    Clemente não liga justificação à pessoa e à obra de Cristo no mesmo grau que Paulo. Embora não tenhamos o mesmo tipo de clareza que encontramos em Paulo, a importância do sangue de Cristo é observada (7.4), e por isso existem razões para pensar que a justificação é devida ao que Cristo realizou.²²

    Justificação em Inácio

    Outra testemunha antiga da justificação pela fé é Inácio.²³ Inácio enfatiza que os crentes vivem de acordo com a graça e centralizam a justificação em Jesus Cristo (Magn. 8.1; Fp 9.2). Conquanto ele não destaque o termo justificação, ele caracteriza o conteúdo do evangelho na morte e na ressurreição de Jesus (Fp 9.2).²⁴ Aqueles que centralizam a justificação em Jesus Cristo não se tornam presa do judaísmo (Magn. 10.3; Fp 6.1). Em vez disso, Inácio conclama seus leitores a exercitar fé e amor (Ef 1.14; Magn. 1). Para Inácio, a justificação centraliza em Jesus Cristo (Phld. 8.2), e na expiação que vem por intermédio do seu sangue (Smyr. 6.1), de tal maneira que Cristo é compreendido como um substituto (Rm 6.1; Smyr. 6.2; Trall. 2.1; 9.2). De fato, parece que a justificação está separada das obras da lei, uma vez que ela rejeita a circuncisão para a salvação.²⁵ Inácio reconhece sua própria imperfeição e sua necessidade de misericórdia, encontrando o descanso na morte e na ressurreição de Jesus Cristo, de tal forma que o evangelho é sua esperança (Phld. 5.1-2; Smyr. 11.1).²⁶

    Thomas Torrance pensa que fé e amor em Inácio significam que fé e obras nos justificam.²⁷ Mas, novamente, precisamos nos lembrar da situação e ocasião que suscitaram as cartas de Inácio. Nesse caso, Inácio estava para sofrer o martírio.²⁸ Mesmo assim, ele continuou a enfatizar a graça de Deus (Magn. 8.1; Smyr. 6.2), e o amor deve ser construído como consequência e fruto da fé.²⁹ Outros veem a ênfase no martírio em Inácio como oposta à justificação pela fé, como se ele colocasse sua confiança em seu sacrifício. Seu martírio poderia ser interpretado dessa forma, mas a necessidade de martírio não comunica, necessariamente, justiça das obras, pois o desejo de ser fiel está de acordo com o ensino paulino de que é preciso resistir para ser salvo.³⁰

    A grande troca na Epístola a Diogneto

    Às vezes os estudiosos dirão que os primeiros pais não entendiam substituição ou graça, mas as famosas palavras da Carta a Diogneto 9.2-5 (escrita no segundo século d.C.) mostram que tais afirmações estão equivocadas.³¹

    Mas quando nossa injustiça foi concretizada, e foi deixado perfeitamente claro que seu salário – punição e morte – devia ser esperado, então chegou a época durante a qual Deus decidiu finalmente revelar sua bondade e poder (ó, a insuperável bondade e amor de Deus!). Ele não nos odiou, nem nos rejeitou, nem guardou rancor contra nós; em vez disso, foi paciente e tolerante; em sua misericórdia ele tomou sobre si os nossos pecados; ele mesmo ofereceu o seu próprio Filho como resgate por nós, o santo pelo iníquo, o inculpável pelo culpado; o justo pelo injusto, o incorruptível pelo corruptível, o imortal pelo mortal. Pois, o que mais a não ser sua justiça poderia ter coberto nossos pecados? Em quem seria possível para nós, iníquos e ímpios, ser justificados, exceto somente no Filho de Deus? Ó, que troca doce, ó, que obra incompreensível de Deus, ó, que bênçãos inesperadas, que a pecaminosidade de muitos fosse oculta em um homem justo, enquanto a justiça de um justificasse a muitos pecadores!

    A justificação pela graça e pela obra substitutiva de Cristo é claramente ensinada aqui, colocando o ônus da prova naqueles que reivindicam que substituição é uma ideia moderna ou ocidental.³² Esse texto ensina claramente que a única esperança de perdão e justificação é a obra de Jesus Cristo na cruz, e assim existem razões para concluir que ele aprova o que mencionamos como sola fide.³³ Brandon Crowe observa que o capítulo 9 da Carta a Diogneto contrasta a justiça de Deus com a injustiça da humanidade, mostrando a impossibilidade da humanidade entrar no reino de Deus com base em sua própria habilidade. Em vez disso, os seres humanos devem se apoiar no poder de Deus para serem feitos dignos.³⁴ Isso não tem o objetivo de dizer que Diogneto é como Paulo em todos os aspectos, pois existem diferenças também, mas nós vemos elementos de Soteriologia paulina aqui.³⁵

    Justificação nas Odes de Salomão

    O entendimento de Paulo sobre justificação não desvaneceu no ar depois do primeiro século. Nós também vemos uma convicção paulina sobre a graça e a fé nas Odes de Salomão.³⁶ Nesses escritos, a graça de Deus é salientada pela doutrina da eleição,³⁷ mostrando que salvação não é atribuída às obras dos seres humanos (Odes Sol. 25.4). A justificação é enraizada na bondade e na graça de Deus, e não baseada no mérito humano.³⁸ Arnold sugere que a graça de Deus é, de fato, o principal tema das Odes.³⁹ A justificação é forense, e não transformadora,⁴⁰ e talvez o reconhecimento do caráter forense da justificação seja em razão do escritor estar mais próximo, em tempo, dos escritos do Novo Testamento ou do seu conhecimento de grego, em contraste com Agostinho, que, como veremos, cria que a justificação era transformadora. Na verdade, parece que o escritor das Odes cria na imputação da justiça em sua concepção de justificação, o que demonstra que a justificação é um dom de Deus.⁴¹ Arnold diz: Para o odista, a imputação do Espírito necessariamente significa a imputação da justiça.⁴² O escritor celebra a verdade de que justificação é obra do Senhor e é equivalente a salvação imperecível (17.1).⁴³ A centralidade de Jesus é evidente, pois os crentes são unidos com Cristo.⁴⁴ O autor sustenta que a justificação é pela fé (29.5-6), a qual, quando está alinhada com suas ideias de graça, eleição e imputação, sugere que justificação é somente pela fé.

    Justificação no Diálogo com Trifão, de Justino Mártir

    Embora não possamos investigar o ensino de todos os escritores patrísticos sobre justificação, a contribuição de Justino Mártir no Diálogo com Trifão é particularmente fascinante e digna de consideração.⁴⁵ O conteúdo do Diálogo gera crédito à concepção de que Justino conhecia a teologia de Paulo e a propagava, mesmo que haja diferenças. Trifão parece ser semelhante aos oponentes de Paulo, pois insiste em que a pessoa precisa ser circuncidada e observar os outros mandamentos da lei para ser salva (8.4; 10.1, 3-4).⁴⁶ Por outro lado, Justino, assim como Paulo, enfatiza que a justificação é pela fé, e daí, a circuncisão não é necessária para a salvação (23.3-4; 92.2). Afinal, Abraão foi justificado pela fé e não por sua observância da lei (23.4; 92.3-4). Aqueles que focalizam a circuncisão e a lei se tornam vítimas da justiça das obras (137.1-2), pois a lei não salva, mas a morte de Jesus realiza a salvação (11.4-5; 137.1). A justiça dos crentes está enraizada na cruz de Cristo, pois ele tomou sobre si a maldição que os crentes merecem (95.1-3). Sem dúvida, Justino está ensinando uma compreensão da expiação substitutiva.⁴⁷

    Outras testemunhas no período patrístico

    Ao considerar testemunhas do período patrístico, temos de nos lembrar de que o assunto não era debatido durante esse tempo e, assim, a teologia não está sempre integrada ou é consistente. Embora eu inclua citações que dão apoio à doutrina da justificação pela fé, eu poderia também citar outras declarações no período e de alguns dos mesmos autores que parecem contradizer a justificação pela fé, especialmente a justificação somente pela fé. O que desejo destacar aqui não é que os escritores primitivos alcançavam a mesma clareza que os reformadores. Em vez disso, os pais primitivos frequentemente reconheciam o que o Novo Testamento dizia sobre a justificação pela fé e proclamavam sua verdade em seus ensinos e pregação. Daí que a doutrina não era negada, como vemos no catolicismo romano posterior. Antes, vemos indicações de que a justificação somente pela fé era abraçada, ainda que as implicações da doutrina não fossem desenvolvidas devidamente.

    Orígenes (185-254 d.C.), por exemplo, vê a justificação pela fé no ladrão na cruz e defende que fé é o fundamento da nossa justificação, de tal forma que a justiça não é baseada nas obras da lei. Nossa obediência não pode justificar, uma vez que a justiça é pela fé.⁴⁸ Orígenes enfatiza regularmente que a fé leva a boas obras, e, ao dizer isso, reflete um tema paulino.⁴⁹ O ensino de Orígenes sobre o assunto é vago e impreciso em alguns pontos, o que não é surpreendente, pois ele não estava sendo pressionado para esclarecer a questão, e alguns dos mesmos problemas aparecem ao ler Paulo.⁵⁰ Porém, existem algumas afirmações em Orígenes que parecem contradizer a justificação pela fé, e por isso ele não é a testemunha mais clara.⁵¹

    O pai da igreja Teodoreto de Ciro, do quarto século, comenta sobre Efésios 2.8: Não é do nosso próprio acordo que tenhamos crido... e até quando viemos a crer, ele não exigiu de nós pureza de vida, mas, aprovando meramente a fé, Deus nos outorgou perdão de pecados.⁵² Mais tarde, no mesmo século, Crisóstomo entende Efésios 2.8 semelhantemente,⁵³ conquanto ele conceda ao livre-arbítrio um papel que teria sido negado por Lutero e Calvino. Ainda assim, Crisóstomo insiste que a justificação não pode ser dada por meio das obras, uma vez que Deus exige obediência perfeita. Assim, a única forma de ser justificado é por meio da graça.⁵⁴ Crisóstomo nega resolutamente qualquer ideia de obras meritórias⁵⁵ e vê as boas obras como consequência de fé.⁵⁶ A articulação de Crisóstomo sobre justificação parece ser totalmente paulina.

    Williams apela para Marius Vitorinus da metade do quarto século, dizendo que ele ensinava salvação pela graça por meio da fé. Nós não somos salvos por nossos próprios méritos, como se por obras da lei, mas somente pela graça de Deus: ‘é somente pela fé que se produz justificação e santificação’.⁵⁷ Vitorinus também cria que as boas obras são necessárias, mas, ao defender isso, ele foi fiel ao Novo Testamento.⁵⁸ Williams destaca especialmente os escritos de Hilário de Poitiers (quarto século), mostrando que ele frequentemente usava a linguagem paulina da justificação pela fé em seu comentário sobre Mateus, confirmando que o entendimento paulino estava profundamente embutido nesse pensamento.⁵⁹ Hilário ensinou que a lei não pode trazer justificação por causa do pecado humano.⁶⁰ Ele diz em seu comentário de Mateus que a salvação é inteiramente pela fé,⁶¹ e enfatiza esse tema repetidamente.⁶² Logo, Abraão, o ladrão na cruz e os trabalhadores da vinha da décima primeira hora (Mt 20.1-16) são todos justificados pela fé. De fato, Hilário declara especificamente que a justificação é somente pela fé: Porque somente a fé justifica... publicanos e prostitutas serão os primeiros no reino do céu.⁶³ Aqueles que pensam que a justificação somente pela fé está ausente nos primeiros pais precisam contar com as palavras claras de Hilário sobre o assunto.

    Ambrosiastro também ensinou que a justificação era somente pela fé.⁶⁴ Somente pela fé a pessoa é perdoada livremente de todos os pecados e o crente não é mais sobrecarregado pela Lei pelo mérito das boas obras. Nossas obras, contudo, são demonstrativos da nossa fé e determinarão se estamos, por fim, justificados.⁶⁵ Essa frase poderia facilmente ter sido escrita por Calvino ou por Lutero. No entanto, Ambrosiastro não tinha a clareza que encontramos nos reformadores posteriores, pois ele também escreveu sobre merecer uma recompensa final. Ao dizer isso, entretanto, ele apela a outro tema enfatizado por virtualmente todos os escritores cristãos primitivos, isto é, a importância das boas obras.⁶⁶

    Nós poderíamos continuar a citar outros que fizeram declarações semelhantes. Oden cita Próspero da Aquitânia, Ambrosiastro, Jerônimo, Agostinho e Marius Victorinus para demonstrar que a justificação pela fé era um ensino comum.⁶⁷ Mas nós concluiremos nosso breve passeio pela igreja primitiva com alguns comentários sobre o seu mais famoso escritor – Agostinho.

    Agostinho

    Meu alvo nesta seção não é investigar toda a teologia de Agostinho sobre justificação, pois isso, por si só, já garantiria um livro. O propósito aqui é fazer esboços rudimentares da opinião dele sobre justificação.⁶⁸ O entendimento de Agostinho sobre justificação está vinculado ao seu ponto de vista maduro sobre a predestinação, de tal forma que a graça de Deus assegura a fé dos seres humanos. Ele pensava claramente que a justificação é em razão da graça. A esse respeito, ele está próximo da compreensão dos reformadores, e dificilmente poderíamos nos surpreender por Lutero e Calvino citarem Agostinho frequentemente, pois eles encontraram uma alma gêmea em sua teologia da graça e visão de predestinação. Agostinho sempre proclamava, especialmente em seus escritos antipelagianos, que os crentes são salvos pela graça, e não pelas obras. A salvação vem do Senhor, pois os crentes não podem fazer qualquer coisa à parte do que têm recebido (1Co 4.7), um versículo ao qual Agostinho retornava diversas vezes na controvérsia pelagiana.

    Agostinho difere dos reformadores, contudo, por entender a palavra justificar com o significado de tornar justo e não declarar justo.⁶⁹ Agostinho cria que justificação era mais do que meramente um acontecimento; também era um processo, e assim, ele cria em justiça inerente e não em justiça imputada. A justificação não é uma declaração de uma vez por todas em sua mente, pois justificação significa que os crentes continuam a ser transformados e aperfeiçoados. Agostinho não trabalhava com a distinção entre santificação e justificação, que é típica no pensamento reformado e luterano. Uma vez que justificação, para Agostinho, significava tornar justo, o termo inclui em si o que os protestantes evangélicos tipicamente denominariam santificação.⁷⁰

    Assim, teria Agostinho aprovado o ensino da Reforma sobre a sola fide? Ciente de que a pergunta é anacrônica, Alister McGrath tenta respondê-la. Ele crê que não, dada a ênfase de Agostinho no amor. Para Agostinho, fé é basicamente consentimento intelectual, e, assim, a fé deve ser acompanhada pelo amor. De fato, ela age por amor (Gl 5.6).⁷¹ David Wright, porém, critica McGrath por ir além da evidência, pois Agostinho nunca diz que nós somos justificados por amor.⁷² Talvez terminologia e circunstâncias diferentes expliquem essas diferenças entre Agostinho e os reformadores sobre a questão da fé somente. Wright diz que ao ler Agostinho e os reformadores, é fácil passar de um para o outro sem observar diferenças significativas, pois eles teologicamente respiram o mesmo ar.⁷³ Parece, então, que há um sentido no qual Agostinho teria aprovado a fé somente, pois sua teologia da predestinação enfatizava que a salvação é obra do Senhor e a fé é um dom dele.

    A ideia de que nós somos justificados somente pela fé se encaixa na leitura madura de Agostinho de Romanos 7.14-25, pois ele cria que os pecados continuam a atormentar os crentes, e assim eles ficam notavelmente aquém dos padrões de Deus. Ao mesmo tempo, Agostinho enfatizava Gálatas 5.6, que diz que a fé funciona por meio do amor. Agostinho interpretava o versículo de maneira diferente dos reformadores, mas a diferença entre eles pode não ser tão significativa como alguns afirmam, pois Agostinho insistia que a verdadeira fé se expressa em obras, supremamente no amor a Deus e aos outros.⁷⁴ Essa é uma noção que é compartilhada pelos reformadores também. A teologia da justificação de Agostinho, apesar de diferir em alguns aspectos do que encontramos em Lutero e em Calvino, permanece em sua teologia da predestinação e é influenciada por seu entendimento de graça. A graça não apenas torna a salvação possível; a graça é eficiente e assegura a fé e o amor nos corações daqueles que Deus escolheu para ser seu povo.

    Independentemente de onde se creia que a compreensão de Agostinho sobre justificação se encaixe melhor, seu lugar no debate nunca fica ultrapassado, pois sua influência sobre os reformadores e sobre os protestantes de hoje continua. Ao mesmo tempo, aqueles que afirmam que a justificação é um processo e que significa tornar justo também buscam Agostinho para apoiar sua teologia.

    A perspectiva de Thomas Oden

    Thomas Oden, um estudioso bem conhecido da igreja primitiva, argumenta energicamente que teólogos na era patrística compreendiam Paulo fielmente e concordavam com o ensino reformado sobre fé e graça, embora ele não reivindique que o ensino fosse sempre corretamente lembrado ou consistentemente apropriado, nem que fosse sempre integrado corretamente à pregação, ao cuidado pastoral e à instrução moral ou entendido de modo perfeito.⁷⁵ Se entendermos o que Oden diz em termos abrangentes, ele está quase correto.⁷⁶ Ao mesmo tempo, devemos nos resguardar de tomar dizeres isolados fora do contexto e reivindicar que os pais e os reformadores estivessem de acordo. Declarações individuais devem ser interpretadas no contexto, e tipicamente os pais não estavam explicando a justificação de nenhum modo.⁷⁷

    Os primeiros pais repetiam o que eles entendiam que Paulo estava dizendo sobre justificação, afirmando graça e fé e repudiando obras como base para a justificação. McGrath diz que no período patrístico assuntos como predestinação, graça e livre-arbítrio eram meio confusos, e continuariam assim até que a controvérsia forçasse a igreja a uma discussão completa sobre a questão.⁷⁸ A palavra confusão parece apropriada de nossa perspectiva, mas devemos ser lembrados novamente de que esses primeiros cristãos não estavam tentando sintetizar o ensino bíblico sobre justificação e salvação.

    Conclusão

    Se estivermos procurando um paralelo direto entre o que os pais da igreja primitiva escreveram e o que a Reforma chama de sola fide, não encontraremos. A igreja primitiva não tinha a clareza sobre justificação somente pela fé que encontramos nos reformadores. Pela mesma moeda, aqueles que afirmam que os pais primitivos negavam essa verdade vão muito além da evidência. Até mesmo uma passada superficial por alguns dos seus escritos indica que eles frequentemente defendiam a verdade de que nós somos justificados pela fé, em vez de por obras. Ao dizer que as obras são necessárias para a salvação final também, eles estavam simplesmente reproduzindo a mensagem do Novo Testamento. Novamente, isso não tem o objetivo de dizer que os protestantes podem reivindicar os pais primitivos para apoiar as ideias articuladas mais tarde, na Reforma. Ainda assim, os católicos romanos também dificilmente podem argumentar que os escritos dos pais sejam uma aprovação ressoante do ensino do Concílio de Trento. Em muitos aspectos, encontramos em vários pais o endosso a ensinos que são semelhantes ao que nós conhecemos hoje como a doutrina da justificação somente pela fé.


    ¹ Martin Luther, Church and Ministry II, no vol. 40 de Luther’s Works (org. Conrad Bergendorff; Filadélfia: Muhlenberg, 1958), p. 231.

    ² Isso é evidenciado pelo movimento conhecido como Interpretação Teológica da Escritura.

    ³ O interesse

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