Pequenos sonhos do tempo
De Árion Lucas
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Sobre este e-book
Árion Lucas
Árion Lucas é um escritor carioca nascido em 1992. Largou design, terminou jornalismo, mas hoje vive de poesia. 'Pequenos Sonhos do Tempo' é seu romance de estreia.
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Pequenos sonhos do tempo - Árion Lucas
Créditos
© Jaguatirica, 2019
Nenhuma parte desta obra poderá ser reproduzida
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editora Paula Cajaty
revisão Hanny Saraiva
imagem de capa Kunj Parekh, Unsplash
projeto gráfico e diagramação 54
d
esign
isbn
978-85-5662-183-2
Jaguatirica
av. Rio Branco, 185, sala 1012, Centro
20040-007 Rio de Janeiro
rj
tel. [21] 4141 5145 [21] 3500 1390
editora@editorajaguatirica.com.br
editorajaguatirica.com.br
Dedicatória
À minha família
Epígrafe
antes do após
O que foi, é
incerto.
Tudo basta, se nada
esvai.
Das folhas, que caem
o tempo.
Da alma, que a vida
desfaz.
Sonha-se apenas a memória
da vida que não se lembra mais.
Sumário
Créditos
Dedicatória
Epígrafe
Pequenos sonhos do tempo
Pequenos sonhos do tempo
Foram anos poéticos, lembravam-me.
Perto de findar um novo romance, há mais de dez anos sem que nada escrevesse, já não muito longe de envelhecer, noticiaram-me que receberia um prêmio de honra pelos anos de contribuição à literatura, numa cerimônia que em breve ocorreria na capital, onde morava.
O senhor é um sábio, diziam as congratulações.
Agradeci, realizado mas terminando no embaraço tolo de não me compreender, nem triste, nem alegre, nem surpreso, nem inconformado, preso a reflexões vagas, como se aguardasse um surgir, ainda que em contínuos sentimentos efêmeros. Do silêncio inflexível, seguiu-se meu esforço para buscar motivação que existisse, embora mesmo isso parecesse equivocado, pois o reconhecimento derivava da motivação em si. Por isso, evitando pensar mais e mais sem que a lugar nenhum chegasse, aceitei que nem que sem interesse, de modo que tornei a pensar na obra inédita. Afinal, os méritos pelos quais julgavam me reconhecer não faziam jus ao livro que estava para ser.
Despertei ao final da madrugada pensando terem chamado meu nome.
Meus olhos tocaram a meia-luz do quarto, na estalagem da cidadezinha onde havia morado na juventude, há duas noites cercado por dores de cabeça, irritado com os travesseiros, dando voltas pelo quarto enquanto apertava as pálpebras, por vezes a supor me arranharem sussurros, admitindo em constância pouco franca de que ouvira a imaginação, provável ser da mente inquieta, tratava-se de ansiedade. Ou de sonhos. Ainda deitado, levei-me a recordar vagas imagens do sonho que tivera à noite. No sonho, quero achar meu irmão. Definhavam-se imagens pela escuridão semicerrada. No sonho, quero achar meu irmão, porque ele vai saber como vou descobrir onde devo procurar nosso pai, creio. Talvez fosse isso. Nunca sonhava. Acabara de sonhar com o quê? Sentado, tive papel e caneta em mãos, conduzindo minha escrita pela luz da cortina sinuosa que movimentava o papel. Areia, escrevi. Areia. Uma cidade. Poderia ser a capital, poderia ser a cidadezinha na qual estava, ou poderia ser uma mistura de ambas, talvez uma que se tornasse a outra, talvez nenhuma das duas. A esse vislumbre, um estranho sentimento do qual também não recordava. De olhos fechados, esforcei-me para ver o que teria a ver uma coisa com a outra, a cidade, a areia, o sentimento e o que mais sobrasse, tocando repetidas vezes a caneta já dormente ao papel, hesitando, voltando à reflexão cansada que apertava os olhos frágeis à luz do dia no branco da folha.
Se no sonho estava meu irmão, poderia ser que também estivesse minha mãe.
Aquietei-me, coração de súbito alarme, tornando a abrir os olhos. Seria tão óbvia a resposta, ou seja, que sonhara com minha mãe? Se fosse, optava não recordá-lo, afinal. Talvez, sequer sonhara. Olhei o relógio de parede, cuja sombra cortava a janela, para investigar o movimento da rua. Deserta, claramente eu nada via além dos paralelepípedos. Próxima a um relógio de hora equivocada pela mobília apática, da sombra do quarto minha mãe há dois dias me observava, desde logo após eu chegar à cidadezinha, quando a visitei pela última vez. Da cama, ela fitava a janela mais próxima, cobrindo-se com um fino lençol branco, o rosto à mostra com rugas que não demonstravam experiência ou tristeza, mas a idade em harmonia justa com branquíssimos cabelos já rareados, de modo que me assombrava por sua figura não ter envelhecido nada, conservando a face contraída pela curvatura espessa do corpo. Distante, fiquei sem ensaio do que dizer. Não havia o que dizer. Cogitei que o certo era ficar parado, em pé, calado, esperar um tempo, virar-me e deixá-la a sós outra vez, dialogando comigo mesmo. Ao ouvir sua voz tão viva, julguei ser eu a falar, não ela.
Por que veio? — Seguia fitando a janela.
Por que vinha? Evitei uma resposta imediata, quilômetros longe da cama, precipitando cada letra que pudesse utilizar, na crença de que estaria cometendo um erro em perturbá-la com desígnio que fosse. Fiquei atento ao seu mórbido semblante, ao mínimo tremor que pudesse surgir daquele quarto impiedoso. Ansiedade se transformou em medo, a qualquer momento perigos ocultos que me derrubassem, ordenando-me a recuar. Não, não recuei. E deu que estava ao seu lado, fitando-lhe sem que me olhasse nos olhos, supondo que, em verdade, não fazia diferença o que resultasse, mas o quanto estaria disposto a ser honesto em me expressar. Pediria desculpas por só agora ter vindo, posteriormente admitindo-lhe o que sentia por detrás. Mas o problema era que o que o que sentia não era nem fio de virar as costas. Aversão? Calava-me com olhos recuados.
Vá embora — virou-se para mim com a pouca voz que tinha no ar. — Quero ficar sozinha.
Vi um olhar de seco julgamento, o mesmo que me dava quando mais novo, como se retificasse o prazer em me ter fora dali. Articulei murmúrios após certo tempo, menos surpreso do que pensara.
Não entendo.
Desviou o olhar, modificando-se o necessário para que ainda parecesse estar me encarando, desta vez em profundidade duvidosa, forçando-me a perceber o quão em paz estava consigo na indiferença com a qual me notava. Seu olhar não tinha nada a ver com ninguém senão com ela mesma, capaz até de ter sido sempre daquela maneira, não obstante só agora fosse condição ideal para sobressair o efeito de tamanha verdade, assim como era para eu compreendê-la. Não estava tão doente como eu imaginei que estaria. Não, não estava fora da realidade, depois de todos aqueles anos. Só o que ocorreu foi que passou o tempo, de modo que não era uma versão do presente que deveria ser levada em conta, mas a noção clara do passado interligando-se ao futuro. Estava ela deitada, tão esvaída quanto antes, a exata mesma pessoa, exatas motivações, soluções próprias dentro de sua interpretação, sem qualquer afinidade com o que lhe rodeava. As coisas poderiam ter sido diferentes? Agora eu sabia que não. Passou-se o tempo, mas só o que aconteceu foi que o tempo passou. Alguma vez meu pai lhe disse quem era minha mãe?
Não.
Está mentindo.
Não. Eu não estou.
E o mais aterrador era que sobressaia dali um quê de pena, numa inversão de papéis sutil que me entristecia, porém que justamente me permitiu enxergar que as coisas eram como eram. Ela não tentava ser ríspida ou me tratar com desdém. Ela era o que era. Não era triste, não era feliz, não me odiava ou amava, bastando não ser importunada para viver melhor do que eu, meu pai e meu irmão, cada qual em seu mundo usufruído da maneira que julgasse. Sua lucidez era muito superior à de qualquer outra. Preferi largar os confins necessários para que solucionássemos algum tipo de desconexão. Seria uma grande perda de tempo.
Meu pai a amava.
Ele sentia culpa.
Programado o velório para o final da manhã, ainda pensando no sonho que tivera, fui esperar que o tempo escoasse.
Perambulei na cidadezinha, até alcançar a cafeteria próxima à estação de trem que me trouxera da capital, sentando-me próximo a um casal com idade semelhante à minha cujos diálogos, mesmo em murmúrios, podiam ser ouvidos por todos que lá estavam. No caso, por mim, que pouco reuni de esforços para não atentar ao momento que vivenciavam, entregando-me a só ser ouvidos. Fitava a janela e bebia meu café, mas as palavras absorvidas eram uma constante irresistível. Assim, nunca me esqueci de quando ela lhe descreveu o lugar em que morava quando pequena. Colinas verdes, casinhas com chaminé, um rio raso sob uma ponte de madeira, a brisa fina e um silêncio detalhado. De fato, quando terminou, logo concluí que se tratava não mais do que um relato construído com memórias turvas, na maioria imaginativas, uma vez que me lembrava de cada recanto daquela cidadezinha na época de minha infância, sabendo muito bem que nenhuma sequer assemelhava-se àquela forma. Entretanto, aceitei que talvez a casa tenha existido em algum ponto distante de minha memória, seguindo atento ao entusiasmo de seu relato. Ademais, foi tão precisa a maneira como colocou o passado que por pouco duvidei de mim mesmo para deixar que me levasse a ele, enquanto que o rapaz que a acompanhava, sentado de frente a ela, parecia cada vez mais envolto no monólogo, quieto num sorriso curioso, talvez porque fosse a primeira visita à cidade.
Prosseguiu falando de teatro. De um artista, outro artista, mais algum, emendando num discurso sobre as vanguardas da época. Falava, falava, sussurrava, repetia e deixava que, assim como eu, ele fosse bebendo seu café o mais devagar possível, a fim de que ela restasse livre nos devaneios que propunha. Mesmo assim, por mais que eu tentasse me interessar por outra coisa, permaneci na visão do suposto rio que passava em algum recanto da cidadezinha antiga. Aos poucos, deixando de dar atenção ao casal, deixando meu café esfriar, contemplando o dia cair pela janela, reconstruindo passo a passo o cenário descrito por ela. Da janela da cafeteria, podia ver uma rua similar à que observara mais cedo do quarto da estalagem. Agora, os paralelepípedos se encontravam atraentes, rodeado por transeuntes cujas energias variadas se agitavam. Minutos após, ela já terminara o discurso e ele contava alguma piada, fazendo com que ambos desatassem a rir baixinho, cochichando para silenciarem gradativamente, entreolhando-se. Passei a entender que ele visitara a cidadezinha algumas vezes, porém já há muitos anos, enquanto que ela morava lá fazia algum tempo, decerto não tanto quanto de minha infância, pois não me recordava de seus traços.
Atualizou-o nuns pontos sobre o quão pouco a cidade mudara nos últimos anos, desde a última vez em que ele a visitara. Chegou a falar do tempo, que deveria chover à noite, até olhar por uma janela para dar de ombros, afirmando que, quando chovia, não fazia diferença. Ia narrando inúmeros episódios que ouvira ao longo do tempo, além de outros que a própria testemunhara. Sempre detalhando cada mínimo fragmento, agitando os braços na interpretação das personagens, rememorou figuras conhecidas da cidade, apontou quem falecera ou quem resolveu ir embora de vez daquele fim de mundo. Era realmente um fim de mundo, pensei.
As ruas são as mesmas, como você bem deve ter visto. Assim como todo o resto — resumiu.
Fitou a janela, acrescentou qualquer coisa e voltou-se para seu café num sorriso, consentindo o silêncio entre eles pela primeira vez, calando tudo na cafeteria. Provinham sussurros da rua, enroscando palavras e grunhidos dissonantes. Igual, voltei-me café, mas ainda estava pela metade, cujo tom envelhecido pela amargura tirava-me o apreço. Esfriou.
Foi quando já cogitava partir que reparei não sermos os únicos lá presentes.
Do outro lado, próximo à saída, um senhor de cabelos brancos sentava-se acompanhado de um olhar sem rumo por detrás de óculos sujos. Atraiu-me que, mesmo sem o romance que os outros dois apresentavam, continha firme plenitude em de si, absorto em seus movimentos pensativos, sem o menor interesse no que o casal murmurava ou nas minhas