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O Corpo
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E-book339 páginas4 horas

O Corpo

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Sobre este e-book

Um corpo sem vida cuja morte não lhe tirara a beleza anterior assiste ao seu funeral e observa os visitantes que chegam para a cerimônia. Ações centradas no protagonista o advertem de seu conformismo. Entretanto, há um estranho na sala em conexão com o corpo à espera do momento de agir e mudar o destino das personagens.O autor insere pitadas de fantasia em meio ao mundo real, provavelmente burilando histórias de aparições imaginárias e coisas sobrenaturais que tanto povoaram nossa infância, e as converte em situações corriqueiras na pele de uma personagem comum e praticamente invisível em seu meio. O ingênuo se torna solene no psicocultural que ignora a sinceridade dos simples e que pode modificar caminhos antes incertos. Amores nascendo e se fortificando. Ingerência de ódio e de desilusões alimentando o que poderia ser uma tentativa de castigo e vingança concebidos pelo ideário de uma mente falaciosa.Revide e paixão, amor e ódio, o real e o sobrenatural convivendo em fuga e encontro com a realidade são ingredientes que povoam este novo romance de Welis Couto.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento25 de nov. de 2021
ISBN9781526045386
O Corpo

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    O Corpo - Welis Couto

    WELIS COUTO

    O CORPO

    1ª edição

    Copyright ©: Welis Couto

    Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) de acordo com ISBD

    C871c

    Couto, Welis

    O Corpo / Welis Couto - Campo Grande, MS : EllA Editorial Eirele, 2019.

    228 p.; 14cm x 21 cm.

    Inclui índice.

    ISBN: 978-85-8405-183-0

    2019-1073

    CDD 869.89923

    CDU 821.134.3(81)-31

    Elaborado por Vagner Rodolfo da Silva - CRB-8/9410

    Índice para catálogo sistemático:

    Reserva de direitos autorais em língua portuguesa ou qualquer outro idioma a favor do detentor do Copyright.

    Página do autor: www.weliscouto.com.br

    Apresentação

    Welis Couto mais uma vez se envereda pelos caminhos do realismo mágico, no qual o real e o imaginário se fundem como se fossem uma coisa só e a fantasia adquire aspectos de coisa verdadeira.

    Um corpo sem vida cuja morte não lhe tirara a beleza anterior assiste ao seu funeral e observa os visitantes que chegam para a cerimônia. Ações centradas no protagonista o advertem de seu conformismo. Entretanto, há um estranho na sala em conexão com o corpo à espera do momento de agir e mudar o destino das personagens.

    O autor insere pitadas de fantasia em meio ao mundo real, provavelmente burilando histórias de aparições imaginárias e coisas sobrenaturais que tanto povoaram nossa infância, e as converte em situações corriqueiras na pele de uma personagem comum e praticamente invisível em seu meio. O ingênuo se torna solene no psicocultural que ignora a sinceridade dos simples e que pode modificar caminhos antes incertos.

    Amores nascendo e se fortificando. Ingerência de ódio e de desilusões alimentando o que poderia ser uma tentativa de castigo e vingança concebidos pelo ideário de uma mente falaciosa.

    Revide e paixão, amor e ódio, o real e o sobrenatural convivendo em fuga e encontro com a realidade são ingredientes que povoam este novo romance de Welis Couto.

    Agradecimento

    Uma obra começa pela idealização de um tema, uma ideia que surge da observação ou do simples vagar. E o autor vai jogando despreocupadamente um turbilhão de coisas no papel, porque sabe que existe o revisor.

    Tinha por premissa não dar muito trabalho aos meus primeiros revisores. Creio que falhei nesse objetivo. Por isso, tenho um agradecimento especial a duas pessoas que muito contribuiriam para o aperfeiçoamento deste livro.

    Agradeço efusivamente a F. de Paula Santos, poeta e historiador mineiro, o maior conhecedor, vivo, da história de João Monlevade que se dedicou à leitura criteriosa de O Corpo e, graças a ele, muitas imperfeições foram retiradas. Crítico exigente e perfeccionista, não se esquivou a encaminhar sugestões, dúvidas e cortes na narrativa. Para não lhe vangloriar o trabalho, aceitei apenas 99% de suas recomendações.

    Agradeço de igual forma a Sidy Pereira, habilidosa na arte da pintura, que também se dedicou à leitura destes escritos e, apesar de seu receio ao lúgubre, encarou, nas noites quentes de verão, a presença de um corpo na sala. Ainda assim, o receio ao sobrenatural não lhe tirou a sagacidade crítica, e seus aconselhamentos também muito contribuíram para o aperfeiçoamento da narrativa.

    O autor

    Para:

    Sidilene

    Giovana

    Gabriela

    Três mulheres em minha vida…

    Minha palavra é noite,

    às vezes é lua cheia,

    às vezes minguante

    - quase nunca nova -

    I - O Corpo

    Olhei para aquele corpo à minha frente e não queria acreditar no que via. Ainda há pouco ele tinha vida, não muita, é verdade! Respirava, compreendia-me e inquiria-me com seus olhos resolutivos. Bastaram alguns instantes para que a vida se apagasse. Não completamente, ao que me parece. Talvez, por simples teimosia ou descabida pretensão, ainda presencio vida naquele corpo.

    Vejo brilho nos olhos resolutos, como sempre. Não os ouso fechar. Olhos que me parecem dizer: Não me toque. Olhe a vida lá fora. Abra a janela e deixe-a entrar neste quarto.

    Não pressinto tanto aqueles olhos como os pressentia em vida. Ainda assim, recuso-me a fechá-los. O corpo inteiro mantém a suavidade perene de antes. A cor de sempre. Parece não querer a morte, embora ela tenha sido há muito anunciada. Tudo questão de tempo!

    Sua boca queria dizer-me algo. Tremia! Interpretei aquele tremor como uma tentativa de dizer, talvez, o seu desejo final. Ou seria uma confidência? Aproximei o meu ouvido o máximo que pude daquele murmúrio. Não mais havia qualquer sinal de voz, por mais distante que fosse. Apenas os lábios se mexiam sem muita convicção. Eu nada compreendia! Contudo, havia uma expressão clara nos olhos de que alguma coisa precisava ser dita, e estava sendo dita.

    Meneei a cabeça afirmativamente, como se houvera compreendido, somente para dar conforto àquela alma que partia. Mas ficava-me a irrespondível pergunta: o que fora dito? Ninguém saberá! Presumo.

    A última vez que o doutor Roberto veio para uma visita, o quarto tinha um cheiro fúnebre de alecrim queimado. Não existia alecrim na propriedade, mas o cheiro era intenso, e o doutor Roberto pareceu enojado. A consulta foi rápida: pegou-lhe as mãos, mediu a pulsação, a pressão arterial enfraquecida, o canto dos olhos amarelados, a boca seca e a respiração cortante. Ele saiu do quarto e nos confidenciou:

    — Acreditem em Deus e rezem.

    Entreolhamo-nos, Evelyn e eu. Não devíamos desistir, mas naquele momento estava claro que não restavam esperanças.

    Evelyn está ao meu lado. Ela sempre foi uma boa companhia em todos os momentos. Olhei-a levemente. Não sabia o que dizer. Porém, ela compreendeu o meu olhar e sinalizou-me com um riso sem alegria, comprometido com o acontecimento.

    Marcelo demonstrava impaciência. Parecia ler meus pensamentos. A amizade que nos dedicamos por todos esses anos nos fez compreender um ao outro mais do que a nós mesmos. Interpreto a sua impaciência como uma negação dos fatos. Ele sentirá muita falta. Todos nós sentiremos. De agora em diante, alguma coisa faltará em nós.

    Não há retorno! O corpo está no quarto e é preciso preparar o funeral. Marcelo pareceu ler meus pensamentos. Somos quase corpo e alma! Ele tocou em meus ombros e disse baixinho, para não incomodar as almas que rondavam o ambiente:

    — Vou avisar os vizinhos!

    Concordei com a cabeça. Acrescentei:

    — Não se esqueça do Barroso.

    Bom vizinho!, falei para mim mesmo, enquanto Marcelo já se distanciava. Vi-o, ainda, atravessar o terreiro e alisar o cavalo que o levaria até os vizinhos.

    Dirigi-me para a varanda. A tarde chegava meio sem sol. Sentei-me na cadeira de sempre. Gosto de ficar na varanda vendo o sol se pôr e o gado pastoreando, com anus à sua volta.

    Não vi o gado. O pasto, vazio, sentia o isolamento de um corpo que flutuava sem peso, sem físico. Apenas alma! Não sei se ela existe, mas isso me consola. É! Alma! Construo uma alma andando pelo pasto, pastoreando mansamente o gado. Para onde? Aonde houver verdejantes campinas e nascentes.

    Ouço um berro ao longe. O gado não veio! Os anus não vieram! O corpo continua no quarto. Preciso telefonar para a funerária. Talvez não! Eles sabem de tudo, farejam a morte. Cheiram quais urubus. Decido não sair do lugar. Eles saberão! Virão! Limparão o corpo! Perfumá-lo-ão e irão embora, silenciosamente, respeitosamente. O rosto entristecido no mais completo profissionalismo para o momento em que algum desavisado seria capaz de lhes dar as condolências.

    Por que o sol está tão fraco? A tarde fica meio triste quando o sol está entre nuvens, o pasto vazio, a casa vazia, a alma esvaziada.

    Os últimos dias foram muito difíceis. Mereceria neste momento ter uma tarde de sol forte com o gado pastando na campina. Mereceria ouvir o berro possante do marrueiro feliz entre as vacas leiteiras. Mereceria ouvir o silêncio dentro de mim quando liguei para o hospital e solicitei a marcação de uma consulta de emergência. Ainda ouço a voz da secretária.

    — Estamos agendando para daqui a vinte dias.

    — Moça! Creio que você não me entendeu. É uma emergência.

    — Compreendi, sim, senhor! Consultas de urgência são para daqui a vinte dias. Em situações normais, levariam dois meses.

    Desliguei o telefone. Não teria tanto tempo. Procurei em minha agenda o telefone do doutor Roberto. Atendeu-me. Viria ainda naquele dia, mas… tentou disfarçar o embaraço.

    — Não posso atender pelo convênio. Sabe como é! Eles não costumam pagar por visita em domicílio sem autorização prévia.

    Compreendi. Pagaria com meu dinheiro! Não tinha tempo nem saco para ficar correndo atrás de convênios, mendigando assistência. Não mendigava na hora de pagar e deveria ser atendido. Não estava com cabeça para fazer valer os meus direitos. Ainda que estivesse, não estava a fim de me aborrecer com essas pessoas e com reclamações, ações judiciais ou coisa do tipo.

    Aquela pobre alma precisava do atendimento de urgência do doutor Roberto. Era isso o que eu faria. E o fiz!

    A última coisa que eu fiz.

    Um carro preto apontou na estrada. Eram eles. Sabia que eles viriam. Chegaram. O carro parou na porteira próximo à entrada da fazenda. Desceram. O olhar baixo, respeitoso. Poucas palavras, como convinha para o momento. Levantei-me e posicionei-me próximo do arrimo da varanda. Aquele que parecia ser o chefe olhou-me sem palavras. Acenei para que entrasse e voltei a sentar na cadeira de antes.

    Às vezes, eu me virava e olhava disfarçadamente. Eles trabalhavam em harmonia. Cada um demonstrava conhecer o seu ofício e o que deveria fazer naquele momento. Faziam a limpeza do corpo detalhadamente. Maquinalmente. O trabalho de todos os dias. Desvestiam a alma que vestiram ao entrar condolentes.

    Evelyn a tudo assistia. Impassível! O semblante caído, com o olhar indireto ela observava a transformação, a roupa limpa, discreta, que vestiam no corpo já perfumado. Jasmim! O cheiro do passamento. Tive uma súbita vontade de levantar-me e acariciar aquele rosto quase sem face. Uma súbita sensação de vazio tomou conta de mim e voltei a aquietar-me em minha cadeira.

    Que pensamentos teria Evelyn? Que sensações passariam por sua cabeça? Eu apenas via o silêncio em seus olhos e a apreensão nos seus gestos, poucos.

    O corpo no caixão pareceu-me mais bonito. Levaram-no para a sala de onde eu melhor podia vê-lo. O caixão sustentado por duas barras de ferro laterais que pareciam fraquejar. Evelyn aproximou-se lentamente, baixou as vistas. Debruçando-se, beijou, do corpo, as mãos. Despedia-se sem palavras. Seu gesto as dispensava. Ela parecia querer o silêncio e aproveitar aqueles últimos momentos que teriam a sós.

    Olhei novamente para aquele corpo. O caixão sob medida a vestir-lhe a matéria e apresentá-la como se lhe fosse quando em vida. Eu podia sentir o calor em sua face, bem que ela certamente estivesse devidamente fria. Tinha brilho. Senti um desejo imenso de me aproximar. Talvez o corpo me falasse o que não pôde dizer quando em vida. Suas últimas e indecifráveis palavras ainda permanecem em segredo. Em degredo para a sepultura. Porém, o momento agora era de Evelyn. Olhei para a tarde que se pronunciava, enquanto Marcelo abria a porteira e entrava pelo terreiro.

    Ele apeou do animal, descalçou as esporas e subiu pelas escadas. Passou pela varanda e parou na entrada da sala quando viu o caixão colocado à sua frente e Evelyn sentada ao lado do corpo desvanecido.

    Olhou aquela cena com indulgência. Parecia querer não acreditar que tudo acabava. Anos a fio de convívio e histórias muitas. O precoce e inevitável fim. Evelyn estava ao seu lado, e Marcelo apertou-lhe suavemente os ombros, comprometendo-se com ela por aquele momento. Depois, foi sentar-se na varanda, ao meu lado.

    Ficamos em silêncio por instantes, simplesmente observando o vago dos pastos em que alguns anus ainda buscavam o escasso alimento composto por bernes e carrapatos dos bovinos que se foram. A curiosidade fez-me perguntar-lhe, por fim:

    — Avisou a todos?

    Marcelo, que estava mirando o infinito, pareceu-me não querer retornar ao presente. Olhei para o amigo, cujo corpo ainda jovem arrebatava as mais profundas paixões, mas estava entregue ao marasmo inconsciente de sensações desconectadas de um mundo que se esvaziava. Seus sentimentos pareciam os mais intensos de todos. Falou depois de um suspiro profundo, inflando e desinflando os pulmões.

    — Todos! Passei no Barroso, que se encarregou de espalhar a notícia pela Vila. Dei alguns recados na cidade e telefonei para Pedro Munhela. Aliás, ele ficou profundamente consternado. Senti que ele parecia não acreditar, mas me disse que estaria imediatamente vindo para cá, no primeiro avião. Pedi a ele que também avisasse os outros. Informei que não precisava de muita cerimônia, uma vez que eles já sabiam dos últimos acontecimentos. Que a situação era delicada! Uma questão de tempo, talvez.

    — Logo todos saberão — falei, trazendo-me à tona o passado. — Lá não há segredo que dure mais do que algumas horas ou defunto que não seja enterrado pelo choro de carpideiras e rezas do padre.

    — Bem o sei! Bem o sei! Ainda me recordo do dia em que saí daquela cidade — ele olhou-me com carinho de filho e falou com sinceridade: — E muito lhe agradeço por isso. As pessoas falavam à boca pequena que eu iria buscar ilusão no bico dos urubus.

    Marcelo esboçou um sorriso. As lembranças lhe vindo à tona afloravam-lhe a emoção. Continuou.

    — Não voltei no bico dos urubus; mas poderia ter voltado montado nas asas de um gavião somente para roubar as franguinhas desprotegidas das velhas faladeiras — ele sorri um riso para si mesmo.

    — Apesar de tudo — falei —, tenho saudades daqueles tempos! Das conversas nos finais de tarde no armazém de Pedro Munhela…

    — Não sei como um homem tão inteligente foi parar naquele lugar!

    — Marcelo, ele foi qual um Messias. Pessoas que se sacrificam para o bem de outros. São essas pessoas que melhoram o mundo.

    — Quando você esteve por lá, muitos o viam também como a um Messias. Levava emprego e prosperidade. Mas não demoraram a colecionar pedras para lhe atirar.

    — Eu bem sei! O importante é que servi àquele povo enquanto eu pude. Sem separações ou preferências.

    — Mesmo partindo, lá deixou seus sentimentos…

    Janaína veio-me à cabeça. Uma linda morena que partiu meu coração. Amor desencabeçado e sem parelha! Nunca imaginei que um dia me entregaria a tamanho sentimento e a tão grandes sensações que me desnorteariam os pensamentos e quase me punham a perder. Amor sem limite alimentado qual em um conto de fadas, mas de proporções reais. Janaína era a lua que dourava meus sentimentos tontos e inacabados, o rio que regava minha alma, a seiva que nutria meu coração febril.

    No entanto, quando deixei Pebolândia, Janaína era a saudade que acompanhava minha viagem solitária.

    Marcelo conhecia-me como poucos. Adivinhava-me os pensamentos e conhecia minhas emoções. Reparei na tarde que ia morrentemente detrás da montanha e um fiozinho de noite que prenunciava a chegada, com ela, das pessoas para o velório. Algumas delas já estavam na sala, outras subiam pelas escadas. A casa aberta a todos, nesses momentos, dispensava formalidades. Chegar e entrar! Amigos, conhecidos, curiosos: o velório é franqueado a todos. Pela sinceridade da despedida, pelos sentimentos vagos ou pela curiosidade maniqueísta de muitos.

    Coloquei minha cadeira na varanda na posição de onde eu poderia contemplar a entrada da noite e, virando-me, olhar para o caixão na sala. Foi tudo o que eu fiz nesse momento de desabusado desconsolo. Olhei para a sala e não vi rostos familiares. Procurei por Evelyn e não a encontrei. Então compreendi que ela já tinha feito a sua despedida silenciosa e única. Onde estaria Evelyn? Possivelmente fora velar em seu quarto no reaguçado das lembranças de tempos idos, das bonecas que recebera em pequenos mimos de amor.

    Não sei como Evelyn se sentirá amanhã quando a casa estiver já vazia de pessoas e desse corpo. Não sei como me sentirei amanhã quando esse corpo estiver vago de nós, agora que perdi minhas obrigações diárias: o banho ao final da tarde antes de o sol se pôr; os remédios de duas em duas horas, as chamadas aflitivas do doutor, a confidência que não veio ou o pedido que não se manifestara.

    Não mais tenho obrigações. Essa certeza me traz a impotência e a inutilidade de existir. Melhor seria trocar de lugar com aquele corpo… Um mugido agoniado vem de longe. Outro e depois outro anunciam o gado que, olhos baixados à terra, chegava à espreita despedida. Zé Mulato, o retireiro, vem na frente, berranteando. Retira o trinco da porteira do curral para dar passagem ao gado e segue direto para a sala. O chapéu apertado na mão, o balançar da cabeça, desacreditando, não obstante a verdade estivesse há dias exposta.

    Seus olhos veem-me. Com o cambaleante passo passado de tristeza, ele vem até mim. Mulatinho, como o chamamos, sempre teve o riso leve, a alegria solta de despreocupar pensamentos. A cabeça carrega somente a matula do dia de uma vida sem pensar no amanhã. Simplicidade de gestos e de pensamentos que muitos o dizem, Mulatinho é virado de artimanhas. O pessoal da cidade diria que a ele falta um parafuso. Outros diriam que é pura simplicidade.

    — Sentimentos!… — diz ele em risco de voz. Aperto-lhe a mão que envergonhadamente se apontava para mim. Olhos no chão, ele se vira, os pés arrastados em muito respeito, vai saindo silenciosamente para o terreiro. Sigo-o com o olhar e com um desejo irrefreável de ser como o Mulatinho.

    Alheio aos meus pensamentos, na entrada do terreiro, ele se senta ao pé do tronco de um jacarandá, cortado há anos e feito belo tamborete. No distante vagar, ele enrola um cigarro de palha, o fumo desfiado na mão, à espera do passar da silenciosa noite.

    — E o amanhã? — a pergunta sai-me sem cerimônias. Tento refrear-me, mas o dito já era visto. Marcelo, em seu silêncio ao meu lado, levanta os olhos. Parece-me confuso.

    — O amanhã? Não sei o que será! Certamente a vida não nos dará tréguas…

    Eu me referia ao dia seguinte, e não à vida que se seguiria, como ele pensou. Pensar em como seria a vida daqui para frente seria tarefa ainda muito mais difícil, uma vez que me era penoso pensar apenas no amanhã: o dia seguinte, a casa vazia. Evelyn certamente iria embora, que não fosse amanhã, talvez depois… Voltar ao trabalho seria a forma mais fácil para ela retomar a rotina e reapresentar-se para a vida depois de todo esse tempo em que mantivemos a mesma rotina: remédios, banhos, doutor… Marcelo também não tardará a voltar para os seus afazeres. Ele que estivera conosco por toda a semana, com o seu afeto amigo, desinteressado.

    Não tenho mais afazeres, nem horas marcadas para remédios, nem tardes para o preparo do banho, nem o médico para chamar, nem um corpo vivomorrente para cuidar. Reapresentar-me para a vida! Essa é a tarefa que me caberá para amanhã, ou, quem sabe, depois de amanhã.

    Preciso espairecer-me. Levanto-me e abro caminho por entre as pessoas que já lotam a sala. O caixão brilha no reavivar das velas. Olho o corpo inerte, a pele morena, pressinto os olhos brilhantes por baixo das pálpebras fechadas, o rosto retornado à vida, corado como há muito não estivera. O sangue reassumia aquele corpo, trazendo-lhe cor às feições. A morte pode ser o renascer, como dizem muitos. A leveza do corpo como há muito não o vira me faz ficar mais um pouco diante do caixão pensamenteando no porquê de tamanha mudança.

    Sigo para a cozinha. Chamas trepidam no fogão à lenha alimentado pelas mulheres que, por iniciativa própria, vão dividindo tarefas e preparam café para os que ficarão em vigília. Olho as chamas arderem. O choro da madeira verde que queima em desencanto de não querer se acabar. O fogo vencendo o estalo da lenha, o pau que chora, a fumaça que encobre em neblina a luta inglória da madeira contra o fogo. O fim em cinzas. O café fervente.

    Sento-me em uma cadeira perto do braseiro. Enquanto observo as chamas, surge-me a figura de meus pais aquecendo-se no início de noite pertinho do borralho, o namoro leve, a conversa suave dos acontecimentos do dia, a aliança comprometida com um novo dia no reavivar das brasas. O fogão à lenha naquele tempo era uma necessidade. Hoje, objeto de destaque e compromisso com o reaproveitamento da madeira em apodrecimento, nas casas mais requintadas. Aqui, ele é uma relíquia que me presenteia o passado.

    Evelyn entra na cozinha, afastando-me de meus pensamentos. Aponto para ela uma cadeira ao meu lado. Ela se aproxima em silêncio à espera ou na expectativa de que eu nada fale. Talvez ela apenas queira ouvir os sinos que badalam em sua cabeça neste momento. Os vários toques dos sinos: o pequeno toque das missas, o repique da interminável

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