Entre Nós
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Sobre este e-book
Organizado pelo canal Escrita Criativa, o livro reúne os contos e crônicas de autores brasileiros, produzidos no primeiro semestre de 2018.
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Sós Nota: 0 de 5 estrelas0 notasDa substância dos sonhos e outras periferias Nota: 0 de 5 estrelas0 notas
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Entre Nós - Tiago Novaes
A finitude de um mundo que virou mar
Ana Wolfe
Manoela enfiou a mesma roupa bege de três semanas antes, cheirando a mofo e umidade. Nem se importava mais com isso. A voracidade dos fatos é que tirava seu sono.
Há semanas vinha tentando entender como tudo acontecera: a água invadindo sua casa, a angústia no barco, a fome e o homem tatuado. Ah, a tatuagem. Sentia calafrios só de pensar. Podia ter escapado ou exigido uma explicação sobre o lugar para onde estava indo. Porém, havia se resignado.
De frente para o espelho, olhava para uma pessoa irreconhecível. O rosto queimado pelo sol pouco condizia com aquele visto de relance em sua casa. A falta de água transformara seu cabelo em uma massa grudada à cabeça, e as unhas, em escamas pontiagudas e esbranquiçadas.
Em outros tempos teria sentido vergonha de andar pelas ruas assim. No momento, pensava apenas em encontrar um atalho para sair logo do gueto no qual a jogaram.
Manoela estava entre os últimos resgatados e os que mais compreendiam como o sistema funcionava. Eles se transformaram em burros de carga de uma cidade sem qualquer lei. A liberdade estava nas ilhas construídas anos antes, quando ainda se acreditava na infinitude do mundo.
Aos poucos, ia criando uma rotina. Acordava às quatro da manhã, guardava a coberta, enfiava as largas botas de borracha e saía em direção ao ponto de apoio para pegar a parca refeição do dia. Na fila inimaginável, admirava-se com todas aquelas pessoas. Como podiam se sujeitar a isso? Se ela ao menos fosse mais corajosa, poderia reunir todos e derrubar a lógica imposta.
Mas Manoela vinha de uma família muito calma, educada para fazer poucos questionamentos. Por anos moraram na mesma casinha rosa em frente ao bar, causa da insônia de todos os vizinhos. Reclamar estava fora de cogitação até mesmo para o pai, que toda manhã corria apressado para o trabalho. Isso, ela lembrava bem, havia feito os dois discutirem segundos antes de o mar invadir tudo. Quanto arrependimento! Mas a passividade cansa. Não era o que sempre dizia a Vicente? Pois aí estava ela: cansada, passiva, sem saber como voltar atrás.
Por onde andaria o amigo numa hora dessas? Desde criança, sempre soubera onde encontrá-lo. Vicente vivia no quarto, entre seus livros. Como as casas se tornaram lenda, o mais provável é que estivesse fazendo um dos seus discursos sobre otimismo e força de vontade capaz de arrebatar multidões e que poderia ser, de fato, inspirador caso fosse vivido por quem o proferia.
A situação de Vicente, mal sabia Manoela, estava a par e passo com a sua. Apesar do cenário de conforto em volta, ele vivia um turbilhão interno nauseante. Ainda inconsciente, transportaram-no para uma das ilhas e o obrigaram a ficar ali até estar pronto a liderar os pobres do continente.
Queria sair correndo, escapar daquele engodo, tirar de si o peso das responsabilidades. Ao menos, estava entre os habitantes de uma ilha. Sabia reconhecer o privilégio e queria tirar proveito disso.
Foi assim que pegou o grosso livro e começou a rever as anotações nas margens, com letras quase ilegíveis, escritas na ânsia de encontrar uma explicação. Releu alguns trechos do chamado Compêndio do Novo Mundo
. E viu quão absurda toda aquela situação podia parecer.
Sem perceber, sua mão estava amassando uma das folhas. Parou bruscamente e alisou-a como pôde. E, então, encarnou um olhar obstinado e escorregou pelas escadas até o térreo para o farto café da manhã.
Manoela também já tinha conseguido a sua porção matinal. A bebida marrom-clara insossa aquecia o corpo magro e dava cor ao seu rosto, ao menos por alguns minutos. A sensação de estar com uma xícara nas mãos fazia-a sentir-se viva novamente, de volta ao aconchego do chá preparado pela mãe para ajudá-la a enfrentar a faculdade.
Isso também tinha ficado para trás, engolido pelo mesmo mar que servira de túmulo aos pais. Sentiu uma lágrima quente brotar no canto do olho; sacudiu com força a cabeça