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Escritas do corpo feminino: Perspectivas, debates, testemunhos
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Escritas do corpo feminino: Perspectivas, debates, testemunhos
E-book330 páginas4 horas

Escritas do corpo feminino: Perspectivas, debates, testemunhos

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Sobre este e-book

Esta obra nasceu do I Encontro Internacional Escritas do Corpo Feminino, no qual buscamos discutir as imagens do corpo feminino na literatura, em diálogo com a história, as artes, a psicanálise, o cinema e outras áreas das Ciências Humanas.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento10 de mar. de 2022
ISBN9786586280227
Escritas do corpo feminino: Perspectivas, debates, testemunhos

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    Pré-visualização do livro

    Escritas do corpo feminino - Matthews Cirne

    © Maria Teresa Salgado et alii, 2018

    © Oficina Raquel, 2018

    COORDENAÇÃO EDITORIAL

    Raquel Menezes

    ASSISTENTE EDITORIAL

    Estéphanie Pessanha

    CAPA

    Thiago Antônio Pereira

    REVISÃO

    Adolfo Silva

    IMAGEM DA CAPA

    Átila de Paula

    CONSELHO EDITORIAL

    Maria de Lourdes Soares

    Rosa Maria Martelo

    Ricardo Pinto de Souza

    Phillip Rothwel

    Gerson Luiz Roani

    DIAGRAMAÇÃO

    Daniella Riet – Voo Livre Produções

    PRODUÇÃO DE EBOOK

    S2 Books

    Dados Internacionais de Catalogação na Publicação

    Salgado, Maria Teresa et alii.

    Escritas do corpo feminino: perspectivas, debates, testemunhos. Oficina Raquel: 2018

    292 p., 14 x 21 cm

    ISBN 978-85-9500-031-5

    1. Ensaios brasileiros 2. Feminismo 3. Estudos literários

    CDD 869.4

    www.oficinaraquel.com

    oficina@oficinaraquel.com

    facebook.com/Editora-Oficina-Raquel

    Sumário

    Capa

    Folha de rosto

    Créditos

    Origem, trajeto e perspectivas

    Corpos escritos

    Dina Salústio

    Lídia Jorge

    Poéticas do corpo

    Constância Lima Duarte

    Maria Graciete Besse

    Mário César Lugarinho

    Corpos eróticos

    Luciana Borges

    Maria Araújo da Silva

    Tatiana Pequeno

    Corpos negros

    Fátima Lima

    Iris Amâncio

    Luana Antunes

    Corpo em luto

    Katia Teonia Costa de Azevedo

    Marcelle Ferreira Leal

    Roberta Guimarães Franco

    Corpo feminino: arte e psicanálise

    Ângela Beatriz de Carvalho Faria

    Martha Werneck Vasconcellos e Lícius da Silva

    Natalia Pereira Travassos

    Perspectivas do corpo na literatura brasileira

    Carlos Magno Gomes

    Lúcia Osana Zolin

    Maria Aparecida Andrade Salgueiro

    Rhonda Collier

    Roda de mulheres através dos tempos

    Carolina Turboli

    Cristiane Sobral

    Dinha – Maria Nilda

    Biografias dos autores

    Biografias dos organizadores

    ORIGEM, TRAJETO E PERSPECTIVAS

    The enemy within must be transformed before we can confront the enemy outside. The threat, the enemy, is sexist thought and behavior. As long as females take up the banner of feminist politics without addressing and transforming their own sexism, ultimately the movement will be undermined.

    bell hooks [ 1 ]

    Esta obra nasceu do I Encontro Internacional Escritas do Corpo Feminino, no qual buscamos discutir as imagens do corpo feminino na literatura, em diálogo com a história, as artes, a psicanálise, o cinema e outras áreas das Ciências Humanas. O evento foi realizado na Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro, em abril de 2018. Sua história, na verdade, começou com o grupo Escritas do Corpo Feminino, em 2015, na UFRJ, com o estágio de pós-doutorado da professora Luana Antunes, supervisionado pela professora Maria Teresa Salgado. Em 2017, os integrantes do grupo, que reunia pesquisadores de Iniciação Científica, Especialização, Mestrado e Doutorado, tiveram a ideia de organizar um evento, no qual pudessem debater sobre o cenário da autoria feminina no Brasil. Aconteceu, então, nesse mesmo ano, o Encontro Nacional Novas Escritas do Corpo Feminino, cujos objetivos principais foram dar voz a jovens escritoras negras da cena brasileira e estreitar os laços com grupos de pesquisas afins, de outras universidades do país.

    Em 2018, após a positiva repercussão da mesa de jovens escritoras, a professora Maria Teresa Salgado convidou as professoras Anélia Pietrani e Gumercinda Gonda para participarem da organização do primeiro evento internacional do grupo de pesquisa, com o propósito de ampliar os diálogos sobre a autoria feminina, sobre o feminismo e sobre o corpo da mulher, estabelecendo, ao mesmo tempo, novas conexões de outros pesquisadores do país e do exterior com os estudantes de Letras da UFRJ, em um viés comparatista, que envolveu as literaturas africanas, brasileira e portuguesa. Também contamos com a presença de importantes escritoras, como Lídia Jorge (Portugal), Dina Salústio (Cabo-Verde) e Conceição Evaristo (Brasil), além de professores convidados da UFRJ e de outras universidades. Procuramos manter, aqui, a ordem dos eixos temáticos das mesas do encontro, e não uma divisão pelos países de língua portuguesa, uma vez que todos os artigos se integram à perspectiva comparada. 

    A primeira seção, intitulada Corpos escritos, traz as vozes da escritora cabo-verdiana Dina Salústio e da portuguesa Lídia Jorge. A primeira nos brinda com um panorama da literatura e das temáticas mais frequentes no arquipélago, realizando uma fina análise da exclusão da mulher no cenário cultural cabo-verdiano. Já Lídia Jorge oferece-nos um conto primoroso, no qual sintetiza a sua visão pessoal da escrita literária.

    Em Poéticas do corpo, os textos de Constância Lima Duarte (UFMG), com leituras de poemas de Conceição Evaristo, e de Maria Graciete Besse (Sorbonne – Paris IV), a partir da ficção de Lídia Jorge, tratam da vulnerabilidade do corpo feminino, enquanto o de Mário Lugarinho (USP) aborda as vulnerabilidades do corpo masculino.

    As professoras Luciana Borges (UFG), Maria Araújo (Sorbonne – Paris IV) e Tatiana Pequeno (UFF) integram a seção Corpos eróticos, que contempla temas como o erotismo na escrita feminina brasileira, a insubmissão feminina na obra da portuguesa Dulce Maria Cardoso e o corpo lésbico nas escritas poéticas de autoras brasileiras e portuguesas.

    Em Corpos negros, Íris Amâncio (UFF) reflete sobre a autoria negra feminina, apontando como as diversas escritoras negras representam perfis identitários em diferença, enquanto Fátima Lima (UFRJ) discute a perspectiva do feminismo interseccional, observando, entre outros aspectos, de que forma é possível se estabelecer um diálogo com as questões raciais, suas vicissitudes e transformações no Brasil contemporâneo. Fechando a seção, Luana Antunes (UNILAB) realiza um texto de homenagem à ativista Marielle Franco, enfatizando a importância de combatermos e resistirmos aos assassinatos dos corpos físicos e simbólicos da mulher negra no Brasil.

    Em seguida, temos a seção Corpos em luto, na qual Kátia Teônia (UFRJ) discorre acerca do corpo feminino na Antiguidade Clássica, Marcelle Leal (UFRJ) reflete sobre a obra de Conceição Evaristo e Carolina Maria de Jesus, e Roberta Franco (UFL) nos apresenta uma comunicação sobre o silenciamento dos corpos na obra da escritora portuguesa Marta Pessoa.

    Na sequência, em Corpo feminino: arte e psicanálise, contamos com a análise da obra de Teolinda Gersão e das artistas plásticas Adriana Varejão e Paula Rego, feita por Ângela Beatriz (UFRJ), proporcionando aos leitores um diálogo entre a literatura e outras expressões artísticas. Ao seu texto somamos as reflexões de Licius Bossolan e Martha Werneck (Escola de Belas Artes/UFRJ) sobre as representações do corpo na pintura contemporânea. Finalizando a seção, o texto da psicanalista e membro do Corpo Freudiano (Rio de Janeiro) Nathália Travassos faz uma abordagem instigante sobre a transexualidade.

    Em Perspectivas do corpo na literatura brasileira, contamos com o trabalho de Carlos Magno (UFS), que põe em interlocução as obras de Lya Luft e Marina Colasanti, com foco temático no sacrifício do corpo feminino. Também compõem essa seção o texto de Lúcia Zolin (UEM), que faz uma reflexão sobre a reescritura do corpo feminino na literatura brasileira, buscando os elos existentes entre as escritoras Conceição Evaristo, Maria Valéria Rezende e Paloma Vidal, e o de Maria Aparecida Salgueiro (UERJ), que trata das configurações geopolíticas dos corpos de personagens presentes nas obras de Conceição Evaristo, Carolina Maria de Jesus e Cristiane Sobral. No último texto da seção, Rhonda Collier (Tuskegee University) reflete criticamente acerca da cidadania da mulher negra no Brasil, relacionando a sua discussão com as obras de Elisa Lucinda, Lia Vieira e Mel Adún.

    Roda de mulheres fecha a nossa obra de forma circular, do jeito que imaginamos o nosso encontro, como algo sempre em movimento, em continuidade, convidando a uma reflexão sobre o devir e sobre o mundo circundante, com os testemunhos de três jovens escritoras: Carolina Turboli (Rio de Janeiro), que reflete sobre a utilização da escrita como forma de estar no mundo e ocupá-lo; Cristiane Sobral (Brasília), que nos dá um testemunho de sua dura e combativa trajetória como escritora negra; e Maria Nilda (Dinha – SP), que completa a nossa roda, evidenciando o seu percurso de favelada à doutora, de aspirante à poeta, de migrante à cidadã cosmopolita, de Milagres ao mundo, mas sempre afirmando-se como escritora periférica e marginal.

    A capa do livro, criada por Átila de Paula, também merece o nosso olhar. Ela evoca uma paisagem simbólica da nossa cidade, o morro dos Dois Irmãos. Esse morro, que pode ser visto da praia do Leblon e da praia de Ipanema, faz com que a imagem do corpo feminino seja projetada na cidade. A imagem desse corpo feminino que paira sobre a cidade remete a uma lenda dos tupinambás, povo indígena tupi que aqui vivia e que manifestava um culto especial em torno dele. Para eles, o morro é uma representação totêmica dos dois luminares celestes, o céu e a lua. Na parte alta, cultuava-se o sol, com danças e cantos guerreiros e, nas partes baixas da cidade, diante do morro, perto do mar, cultuava-se a lua, com cantares evocativos da energia maternal representada pelas águas do oceano, onde as mulheres tinham destaque. A presente obra também convoca o corpo feminino e presta homenagem a duas forças fundamentais na criação do mundo, invocando-as unidas e em entendimento.

    Assim estão reunidos os temas em foco neste livro. Eles convocam o corpo social de seus países, sua historicidade e suas identidades sociais, traduzindo o empenho da escrita na revitalização e transformação do corpo da mulher e de suas identidades. No entanto, para que tal transformação ocorra, é urgente, como nos ensina bell hooks (Feminism is for everybody, 2000), na epígrafe que escolhemos para esta apresentação, que uma mudança se realize em relação ao inimigo que trazemos. A consciência de que ele reside dentro de nós mesmos talvez nunca tenha sido mais clara do que no contexto em que redigimos esta apresentação, pois estamos vivendo, nestes últimos meses de 2018, um dos momentos mais dramáticos da história do nosso país. Nunca antes o Brasil se viu em uma situação tão terrível de retrocesso social. Apesar de já termos conhecido o período atroz da ditadura em 1964, estamos agora diante de um novo cenário político, no qual o racismo, o sexismo, a homofobia, assim como outras formas de violência nos ameaçam. Por isso mesmo, enfatizamos a importância das palavras da feminista americana, em relação ao que parece mais difícil de ser combatido, justamente por ser dificilmente perceptível: nossa cegueira em relação aos nossos comportamentos e valores, que nos impede de formar um verdadeiro pensamento reflexivo, de resistência, de diálogo e de inconformismo diante da barbárie. Mais do que nunca, temos a consciência de que é, sobretudo, por meio do debate das ideias, que poderemos transformar a realidade.

    Os organizadores

    CORPOS

    ESCRITOS

    ESCRITAS DO CORPO FEMININO

    Que papel na literatura dos nossos países e que influência na construção de uma sociedade justa e, sobretudo, na construção de uma mulher menos vulnerável e mais protegida.

    Dina Salústio

    Permitam-me agradecer o convite à comissão organizadora, às Professoras Teresa Salgado, Anélia Pietrani e Cinda Gonda e dizer que estar hoje aqui e encontrar-me com tantas pessoas que conhecemos através da literatura é uma sensação muito boa, como um prolongamento de uma conversa iniciada no princípio com a Professora Simone Caputo Gomes que se prolongou com a Professora Sonia Maria Santos e que se vem construindo com estudiosos e leitores do norte a sul deste belo país irmão, muitas vezes com contornos afetivos que ultrapassam a escrita. É com emoção que volto a encontrar-me com a Professora Teresa Salgado e agradecer-lhe e, através dela, todos os cientistas da coisa literária que dedicam a sua sabedoria e tempo a estudar as literaturas africanas, entre elas a cabo-verdiana, e a dar-lhes espaço no conjunto das literaturas. Nós precisamos dos vossos trabalhos, sobretudo nós de países pequenos e insulares e sobretudo nós mulheres que estivemos por muito tempo afastadas da criação, da análise e da crítica académicas.

    Aproveito para, através da sua Magnífica Reitora, saudar a Universidade Federal do Rio de Janeiro, UFRJ, o lugar onde se realiza este Encontro, pelas relações existentes entre essa Universidade e o meu país, e pelo contributo que tem dado para a formação dos nossos quadros superiores. Uma boa parte estudou nesta e noutras universidades brasileiras e normalmente é de excelência a sua contribuição para a construção de um país que se quer mais desenvolvido e mais democrático. Também quero dizer que é um prazer encontrar-me com essas ilustres escritoras e mulheres, companheiras da mesa, a Conceição Evaristo do Brasil e a Lídia Jorge de Portugal, e saudá-las pela sua escrita e pela amizade. Finalmente, e olhando para este auditório repleto de jovens académicos, reconheço que este 1º Encontro Internacional de Escritas do Corpo Feminino traz-nos uma boa sensação de partilha e a certeza de um futuro de combate pela justiça e pela liberdade que contrastam com valores, atitudes e comportamentos com que todos os dias e de todos os lados somos confrontados sob a forma de ataques que marginalizam, aterrorizam ou silenciam de vez escritores, leitores, cientistas, jornalistas, deputados, trabalhadores e ativistas políticos e sociais.

    As minhas condolências e o meu pesar a todos os brasileiros, especialmente às mulheres, pelo assassinato da deputada Marielle Franco, vítima por ser negra, por ser política, mas sobretudo por ser mulher, por lutar contra a discriminação e por um mundo igual, defendendo o direito de opinar, de fazer opinião e de ser gente. Foi morta, pensamos, porque ser mulher incomoda, porque a carga que carrega acusa, expande-se em gritos e exige soluções em defesa de uma sociedade justa. Foi assassinada porque as mulheres já não se calam. Não se podem calar.

    A literatura é a forma mais verdadeira e sedutora de se falar da realidade e hoje, com o tema Escrita com o corpo feminino: que papel na literatura dos nossos países e que influência na construção de uma sociedade justa e, sobretudo, na construção de uma mulher menos vulnerável e mais protegida, temos oportunidade de vos falar da mulher cabo-verdiana e do seu ainda curto protagonismo nas letras, cerca de quarenta e dois anos, mas também do seu papel nos diversos atos enquanto ser social, desde há mais de cinco séculos. Oportunidade para falar dos seus silêncios, das suas vitórias e derrotas, da sua luta pela liberdade e pelos direitos.

    Considerei três momentos para a minha exposição: uma introdução onde apresento um panorama genérico sobre o arquipélago e que inclui informações sobre a descoberta, o povoamento, a construção da identidade; um segundo ponto que diz respeito ao início da escrita literária nas ilhas e à exclusão das mulheres desse ato; e um terceiro ponto que refere a literatura no período contemporâneo, nomeadamente após a independência do país, onde se inscrevem o início da escrita das mulheres e o seu percurso.

    Cabo Verde ou o cenário da nossa literatura: Descoberta, Povoamento, Escravatura e Construção da Identidade

    Por sermos ilhéus, certamente por isso, a maior parte dos cenários e das temáticas que utilizamos na nossa escrita passam pelo mar, pelas ilhas ou pela ideia que temos de uma ilha e pelo sentimento da insularidade e da saudade. Aproveito para referir que foram temáticas recorrentes – agora, talvez, com menos impacto – alguns acontecimentos extremos da nossa realidade como as fomes, a emigração, a insularidade, as viagens com partidas e chegadas, quase sempre dramáticas, a insularidade, a dominação colonial, a raiva e outros, o que quer dizer que Cabo Verde está quase sempre – diria sempre – presente no que escrevemos. Acrescentar ainda que a nova escrita que se faz no país inclui factos novos, personagens novas e um debruçar exigente sobre novos fenómenos sociais e políticos com que a sociedade se confronta. Os dados que vamos apresentar permitem conhecer um pouco a intimidade das ilhas, o que faz todo o sentido para a empatia que se pretende para a causa em debate Escritas do corpo feminino.

    Situado a quinhentos Km da costa ocidental da África, a sul do Deserto de Sara, o arquipélago de 4.033 Km2 é formado por dez ilhas vulcânicas, com um clima quente e húmido, com chuvas irregulares, muitas vezes absolutamente ausentes durante anos, as estiagens de má memória que dizimaram gerações e moldaram a nossa identidade coletiva, marcando uma relação sempre complexa com o futuro.

    Vazio de gentes, diz a história, quando descoberto em 1460 pelos portugueses, o país conta hoje com cerca de meio milhão de habitantes. O povoamento iniciou-se em 1462, dois anos depois da descoberta, como forma de Portugal conseguir uma base sustentável para apoio à navegação dos descobrimentos, dando seguimento ao seu projeto de expansão.

    Em 1466, com o fim de aliciar a vinda e permanência dos colonos no arquipélago, estes obtêm autorização do reino para o resgate de escravos na costa africana, o que terá acelerado a transformação da colónia de posição geoestratégica privilegiada entre três continentes, a África, a Europa e a América, num entreposto de escravos e no lugar onde seriam ladinizados antes de serem vendidos para as Américas e para o mundo.

    Segundo Ilídio Cabral Baleno, em História Geral de Cabo Verde, Povoamento e Formação da Sociedade, ...o povoamento teria sido lento, a julgar pelas informações de Frei Rogério e Frei Mauro que em 1466 davam conta de apenas alguns genoveses que se dedicavam a colher algodão pelo mato". Esse povoamento foi conseguido com escravos de várias etnias trazidos da costa ocidental africana, nomeadamente da bacia da Guiné, mais os portugueses e, em menor escala, com outros europeus.

    Das diferentes raças e culturas em presença resultou uma intensa mestiçagem que deu origem ao homem crioulo, o mulato, tão bem retratado pelo escritor, jurista e antropólogo cabo-verdiano Gabriel Mariano. A mestiçagem acelerou por várias razões, e ...no século XVIII, em 1770, da população existente cerca de 26.000 almas, metade já era constituída por pretos e mestiços, alguns com alguns bens, a maioria escravos ou vadios, referido por João Lopes Filho, em Introdução à Cultura Cabo-verdiana (p. 85). O historiador António Carreira escreve ...Na colónia estrutura-se então uma população formada por brancos europeus e filhos da terra – no alto da pirâmide – e escravos na base, e entre eles os mulatos, africanos livres e os forros.

    A abolição da escravatura em todos os territórios da monarquia viria a ser decretada em 1869, passando os escravos em Cabo Verde à condição de libertos, com obrigação, contudo, de prestarem serviço a seus senhores até 29 de Abril de 1878. Faz agora, neste mês de Abril, 150 anos que foi dado fim a essa forma de subjugação do homem, a mais execrável de sempre. Alguns estudiosos dizem que, em Cabo Verde, a relação entre os escravos e os seus senhores era muito humana, quase familiar, um pouco devido à pobreza que atingia a todos. No entanto, é legítimo querer saber sobre que tipo de relação humana ou familiar é possível existir num grupo em que alguém tem o chicote e o poder sobre o outro que nada tem.

    Ainda sobre os 150 anos da abolição, penso que não se passa por uma situação de escravatura em vão e, embora não pretenda aprofundar qualquer análise específica, acrescentaria apenas que as marcas do passado, a nível mental, são de difícil erradicação e vamos encontrá-las quer nos homens (independentemente da classe social) que, em relação às mulheres sempre ocuparam o lugar privilegiado de senhor, quer também na mulher que, em boa parte, ainda não se libertou de uma grande dependência, normalmente afetiva, em relação a um dono, mesmo que esse muitas vezes seja apenas imaginário ou sem fundamento.

    Registe-se ainda que, em relação à escravatura, pouquíssima literatura foi produzida pelos escritores nomeadamente pelos Nativistas que conviveram mais de perto com o sistema. Sem dúvida que foi mais cómodo esconder-se sob a capa do Romantismo e cantar e contar do amor de um branco por uma negra, com contrariedades pelo meio, foi mais poético desenhar cenas de rivalidades entre as mulheres europeias e africanas, branqueando por completo uma situação desumana, do que registar as mortes no tronco ou revelar os dramas que só as poucas histórias tradicionais conseguiram fixar como, por exemplo, no inesquecível conto popular, naturalmente em crioulo, o Blimundo.

    O crioulo cabo-verdiano é uma das duas línguas do arquipélago. Do encontro de gentes de origens, falas, interesses e culturas tão díspares naturalmente surgiu uma língua própria, o crioulo, também designada como o crioulo cabo-verdiano. É derivado do português com algumas poucas influências de línguas africanas, sendo a língua de comunicação dos ilhéus. Em Cabo Verde, a vida diz-se e escreve-se em duas línguas: no crioulo cabo-verdiano e em português, a língua oficial, privilegiada no ensino, na comunicação oficial e na escrita literária, além de ser o meio de comunicação com o exterior, fundamental para um país de emigração como o nosso.

    No arquipélago, desde cedo a emigração foi vista como uma forma de sobrevivência. Foi assim desde a saída dos primeiros marinheiros que iam para a pesca da baleia para a América; foi assim com os contratados para São Tomé e Angola para as plantações nas roças de onde raramente voltavam; aconteceu com os emigrantes para o Senegal. Hoje continuamos sendo um país de emigração, não pelas razões apontadas e muito menos como emigração forçada, mas como uma opção individual na procura de melhoria de vida e de novas oportunidades que as ilhas não têm. Cabo Verde conta na diáspora com uma população superior à residente e é essa diáspora que também concorre para o clima de modernidade que carateriza as ilhas e reforça o nosso processo de abertura ao mundo. Daí o querer ficar e ter de partir ou seu contrário, tão exaustivamente tratados na literatura e que hoje, apenas, chamamos de saudade.

    Imprensa, Literatura e a Exclusão da Mulher na Literatura

    Já nos referimos de forma sintética aos cenários e às temáticas mais frequentes na nossa escrita e parece oportuno fazer um pequeno historial da literatura e dos seus protagonistas, um dos aspetos principais do tema em análise.

    A Imprensa, um marco decisivo na história da modernidade, chega a Cabo Verde por volta de 1824 e marca igualmente o início da escrita literária nas ilhas. Apesar da diversidade de opiniões, mais abalizadas do que as minhas no tocante à periodização da literatura cabo-verdiana, vou considerar, apenas para situar a minha fala, aquela que indica três períodos, sem prejuízo de outras categorizações mais rigorosas. Considera-se então o Nativismo, que vai do início, 1824, até 1936, caraterizado pelo Romantismo; o segundo período, o Período Moderno ou Claridade com início em 1936, que acontece quando há uma ruptura com o cânone literário dos Nativistas e se afirma como o período do realismo cabo-verdiano; e finalmente o terceiro período, o Pós Claridade ou período contemporâneo, que começa com a Independência, mas que arrasta escritores da última década antes de 1975. Repito que os investigadores da literatura cabo-verdiana tratam este assunto com ciência e mais atualidade.

    Apesar da preocupação dos intelectuais e escritores do Movimento Claridade em fincar os pés no chão, em resgatar raízes culturais, dados históricos e etnográficos, apesar de levarem anos a investigar e a trazer à luz factos e nomes importantes para a nossa identidade, apesar do elevado brilho

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