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Marcas da ordem patriarcal na literatura brasileira
Marcas da ordem patriarcal na literatura brasileira
Marcas da ordem patriarcal na literatura brasileira
E-book327 páginas4 horas

Marcas da ordem patriarcal na literatura brasileira

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Sobre este e-book

Marcas da ordem patriarcal na literatura brasileira é uma coletânea de artigos que reflete sobre os traços da ordem patriarcal em obras canônicas da literatura brasileira. Além disso, a obra busca retratar os conflitos e interesses femininos diante de um sistema patriarcal que perdura até os nossos dias. Resultado de pesquisas e discussões acerca do tema, os artigos aqui publicados revelam que, na trajetória de releitura, interpretação e análise, as obras literárias — e certamente seus autores — podem propiciar aos leitores considerações acerca de seu verdadeiro papel na sociedade. A literatura deve ser muito mais que fruição. Mais do que denúncia, ela também serve de anúncio de novas perspectivas. É o que a obra em questão faz com precisão, rigor e excelência.
IdiomaPortuguês
EditoraEDUEL
Data de lançamento6 de nov. de 2019
ISBN9788530200510
Marcas da ordem patriarcal na literatura brasileira

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    Pré-visualização do livro

    Marcas da ordem patriarcal na literatura brasileira - Marcos Hidemi de Lima

    AUTORES

    PREFÁCIO

    Suely Leite¹

    A palavra patriarcado vem da combinação das palavras gregas pater (pai) e arkhé (origem e comando). No campo dos estudos feministas, o termo patriarcalismo foi comumente utilizado para explicar a condição feminina na sociedade e as bases da dominação masculina. O uso do patriarcado enquanto um sistema de dominação dos homens estende-se não somente à figura feminina; muitas vezes, também se aplica à dominação aos que hierarquicamente se ligam a essa figura dominante. O patriarcalismo, então, compõe a dinâmica social como um todo e acaba por ser naturalizado no inconsciente de homens e de mulheres individual e coletivamente.

    Pensar em uma sociedade patriarcal é visualizar um sistema que autoriza a desigualdade de gênero e, mais do que isso, uma sociedade que apresenta traços marcantes desse patriarcalismo: a submissão da mulher ao marido, a marcação de lugares públicos como naturais ao sexo masculino e o espaço privado, doméstico, naturalizado como lugar feminino. O casamento e a maternidade também se apresentam como alicerces do patriarcado, pois são esferas que marcam a submissão feminina, tal qual sucede à figura da esposa dócil, submissa, que tem como ocupação primordial cuidar da educação dos filhos e do bem-estar da família.

    Os textos que compõem esta coletânea têm como foco as marcas do patriarcado na sociedade brasileira e a representação dessa condição social em textos literários, produzidos por diversos escritores, em épocas diferentes. Tal painel nos dá a visão do quanto o patriarcado alicerça a sociedade brasileira, seja no espaço rural ou no urbano, seja na metade do século XX ou no início do século XXI; enfim, o patriarcado existe e resiste.

    Os artigos aqui referenciados têm como base teórica predominante os conceitos de núcleo e de nebulosa apresentados por Roberto Reis em seu estudo intitulado A permanência do círculo, publicado em 1987, e a obra de Roberto DaMatta A casa & a rua: espaço, cidadania, mulher e morte no Brasil (1997). Reis propõe um olhar sobre a configuração da escala social e a posição que homens e mulheres ocupam nessa escala, colocando-os em duas esferas: aqueles que se encontram no centro e os que estão à margem do processo civilizatório. O balanço que o pesquisador faz é que o espaço do núcleo refere-se a um lugar privilegiado, enquanto a nebulosa se refere à margem desse processo, lugares ocupados por quem não detém o poder. Ao fazer uso desses conceitos, os artigos desta coletânea geralmente apresentam o homem como alguém que naturalmente ocupa o núcleo, enquanto as mulheres e outras categorias subalternas ocupam o espaço da nebulosa. A marcação de espaços que remete ao exercício de poder é o mote para a reflexão mais ampla sobre os lugares ocupados por personagens femininas dentro da literatura brasileira e esse lócus pode ser associado a outras tantas marcas do patriarcado presentes na literatura. DaMatta aborda a espacialidade pelos conceitos de público (a rua) e de privado (a casa) e destaca que ao sexo feminino é dado o espaço da casa como natural.

    A presença feminina no espaço rural, tão sedimentado por estruturas patriarcais, que se estendem também aos agregados, aos empregados e às pessoas que compartilham essa configuração marginal, nebulosa, pode ser encontrada nos textos Fusão do estético e do ideológico nos romances de Graciliano Ramos, de autoria de Marcos Hidemi de Lima; "A figura feminina e a Revolução de 30 como representantes da decadência da ordem patriarcal em S. Bernardo, de Gabriel Both Borella; e As mulheres do sertão: uma revisita ao universo patriarcal literário de Coelho Neto, de Kátia Cilene Silva Santos Conceição. Ainda pensando nesse mesmo lócus e no patriarcalismo que impera as configurações das estruturas familiares, temos o artigo Pedro e André: a hierarquia da ordem patriarcal em Lavoura Arcaica, de Raduan Nassar", escrito por Marlei Castro Tondo.

    A periferia dos centros urbanos ocupada por figuras marginais, muitas vezes mulheres marcadas pela hierarquização de gênero, raça e classe, é problematizada nos artigos "O xeque-mate em Clara dos Anjos no tabuleiro desigual do início do século XX, de Daiana Patrícia Follman Pasquim Piaceski; e Rabiscos do poderio patriarcal e escravocrata em Ponciá Vicêncio", de Jéssica Frizon Neres. As discussões propostas nesses artigos apontam para uma constatação dolorida dessas mulheres: não há saída, não há fuga e, muitas vezes, não há resistência, há a resignação como forma de sobrevivência.

    Ainda pensando em espaços urbanos demarcados por uma lógica patriarcal, temos o artigo "A figuração da personagem feminina no espaço urbano em A estrela sobe, de Marques Rebelo", em que a pesquisadora Carla Helena Lange destaca a transitoriedade da personagem Leniza pelos espaços do Rio de Janeiro (ora núcleo, ora nebulosa), mas que, em seus sonhos de tornar-s uma cantora famosa, acaba cedendo à lógica do patriarcado. Se, em momentos da narrativa, pode-se deslumbrar uma mulher com certa autonomia sobre sua vida e sua sexualidade, uma mulher que ocupa de forma significativa os espaços da rua; em outros, principalmente no final do texto, tem-se uma mulher que vende seu corpo, enfim, rende-se às armadilhas do patriarcado.

    A transitoriedade entre ser uma mulher à frente do seu tempo, com autonomia sobre sua sexualidade, e ser uma mulher que corresponda aos padrões de comportamento submisso, dócil, recatado, aparece nas discussões feitas por Ivonete Dias em Isaltina, o casamento e o duplo em Lucas Procópio, no texto "O patriarcalismo e sua decadência refletidos na personagem Rosalina, de Ópera dos Mortos, escrito por Letycia Fossatti Testa, e ainda no artigo Os ratos, a rua da lama, Marina em pedaços", de Tássia Silva Martinho Xavier. Nos textos, colocam-se em evidência personagens femininas que acreditam no casamento como forma de ascensão social e acabam suas estórias como mulheres infelizes, marcadas pelo silêncio e pela solidão.

    O sonho do amor romântico e a objetificação da mulher como desejo dos olhares masculinos são temas que podem ser encontrados em três artigos dessa coletânea: A ficção revive o passado: saudosismo e vestígios da ordem patriarcal em Caetés, de Patrícia Hofmã; Como uma luva feita para aquela mão, de Vanessa Fátima Moraes de Souza e Marcos Hidemi de Lima; e Fräulein e Dona Laura: mulheres intransitivas, de Elis Regina Melere. Pelos próprios títulos dos artigos, é possível perceber uma representação feminina marcada pela objetificação/coisificação da mulher, seja pelo corpo, por partes do corpo, ou ainda por representar uma peça importante e decorativa nas engrenagens sociais.

    Um outro viés dessa coletânea está na configuração de personagens femininas que amam e não conseguem viver esse amor e realizar seus desejos por conta da sua condição social. É esse o foco do texto Rosaura, a enjeitada: questões femininas frente à ordem patriarcal, de Pricila Kátia Furlan. O artigo destaca a trajetória de duas mulheres: Adelaide, a mãe, uma mulher rica, que paga o preço da transgressão ao se relacionar com um homem de condição inferior, e Rosaura, a filha escravizada. Ambas marcadas pela ordem patriarcal e vítimas do poder do homem sobre suas vidas.

    Por esse rápido olhar sobre os estudos aqui enunciados, esta obra contribui de modo relevante para os estudos de gênero, uma vez que, ao se debruçar sobre o vínculo das representações femininas e masculinas desenhadas por um arcabouço patriarcal, permite ao leitor perceber a construção social sobre papéis de gênero, seja nos entrecruzamentos das temáticas abordadas, seja no deslocamento do subalterno em busca de um lugar para si, lugar este que muitas vezes não se realiza e faz com que esse sujeito mulher estabeleça-se em um entre lugar.

    Sabemos que narrativas são marcadas por construções sociais e ideológicas que refletem e, ao mesmo tempo, refratam nossa maneira de ver e ser no mundo. Assim, olhar para os textos literários pelo viés das marcas do patriarcado constitui-se em um ato político. E, em tempos de retrocessos e visibilidade de preconceitos e estigmatizações, sigamos, então, pelo terreno da literatura, não como uma forma de evasão, mas como um modo de resistir. Resistamos, então!


    ¹ Doutora em Letras e professora-adjunta da Universidade Estadual de Londrina (UEL).

    Prefácio

    APRESENTAÇÃO

    Os artigos que compõem este volume vinculam-se aos estudos sobre as marcas da ordem patriarcal nas produções ficcionais brasileiras e abarcam obras escritas nos séculos XIX, XX e XXI nas quais atuam os excluídos e os detentores do poder, os primeiros buscando um lugar na sociedade e os últimos tentando manter os velhos padrões de sujeição contra os mais fracos, entre os quais estão as figuras femininas.

    As obras e escritores que compõem este painel sobre a permanência de alguns valores patriarcais são A mão e a luva (1874), de Machado de Assis; Rosaura, a enjeitada (1883), de Bernardo Guimarães; alguns contos de Sertão (1896), de Coelho Neto; Amar, verbo intransitivo (1927), de Mário de Andrade; Clara dos Anjos ([1922], 1948), de Lima Barreto; Caetés (1933), S. Bernardo (1934), Angústia (1936) e Vidas secas (1938), de Graciliano Ramos; A estrela sobe (1939), de Marques Rebelo; Ópera dos mortos (1967) e Lucas Procópio (1985), de Autran Dourado; Lavoura arcaica (1975), de Raduan Nassar; e Ponciá Vicêncio (2003), de Conceição Evaristo.

    Cumpre observar que os artigos aqui apresentados originaram-se de debates, discussões, apontamentos etc., ocorridos no segundo semestre de 2015, no primeiro semestre de 2016 e no primeiro semestre de 2017, vinculados à pesquisa e disciplina cujos objetivos buscavam detectar marcas da ordem patriarcal na literatura brasileira e o papel das figuras femininas nesse universo masculino.

    Um dos nomes que se destaca em boa parte dos artigos aqui apresentados é o do ensaísta Roberto Reis (١٩٤٩-١٩٩٤), cujo livro A permanência do círculo (1987) fornece subsídios para as análises aqui empreendidas, sobretudo no que tange às terminologias núcleo e nebulosa, respectivamente demarcando o espaço ocupado por personagens que detêm o poder e os que dele são desprovidos, de acordo com a leitura que apresenta a hierarquia na sociedade brasileira e na literatura.

    Outros estudiosos bastante recorrentes nestas pesquisas ligadas à ordem patriarcal, a questões de espacialidade social e ao papel feminino na sociedade brasileira são Gilberto Freyre, Mary Del Priore, Roberto DaMatta e Affonso Romano de Sant’Anna.

    Em suma, estes artigos revelam a hierarquia estabelecida entre os valores masculinos e patriarcais e os interesses femininos, resultando num permanente conflito no qual, lamentavelmente, as figuras femininas, ainda que resistentes, acabam sendo espezinhadas tanto cultural, econômica e socialmente quanto em seu gênero.

    FUSÃO DO ESTÉTICO E DO IDEOLÓGICO NOSROMANCES DE GRACILIANO RAMOS

    Marcos Hidemi de Lima

    A segunda fase do Modernismo brasileiro é o momento do chamado romance de 30. Dentro dessa definição estão os romances social, proletário, nordestino, intimista dos escritores católicos, etc. Tal denominação carece de rigor e de delimitação, mas sob tal rubrica produziu-se um grande número de obras que assinalam uma evidente evolução da ficção brasileira. João Luiz Lafetá, em 1930: a crítica e o Modernismo, considera o decênio de 1920, no âmbito do Modernismo, como o momento do projeto estético e a década seguinte – a do romance de 30 – como a fase em que predominou o projeto ideológico, sem conceber ambos os projetos como dicotomias fechadas em si. Pelo contrário, ele [Lafetá] não quis definir momentos estanques, pois estético e ideológico se combinam nos dois momentos (CANDIDO in LAFETÁ, 2000, p. 8) conforme observa argutamente Antonio Candido, no prefácio ao livro.

    Por projeto estético, Lafetá concebe aquela face que está diretamente ligada às modificações operadas na linguagem e projeto ideológico a face diretamente atada ao pensamento (visão de mundo) de sua época (2000, p. 20). Noutras palavras, Lafetá explicita essa peculiaridade por ele formulada ao afirmar: "Distinguimos o projeto estético do Modernismo (renovação dos meios, ruptura da linguagem tradicional) de seu projeto ideológico (consciência do país, desejo e busca de uma expressão artística nacional, caráter de classe de suas atitudes e produções)" (2000, p. 21).

    O caráter francamente revolucionário dos que fizeram a Semana de 1922 acaba por disseminar certa concepção de que o embate estético tenha se dado apenas por aquela época. Isso falseia a realidade porque cristaliza a ideia de que o momento seguinte, entre 1930 e 1940, haveria uma literatura tornada somente arma de combate contra a política de então, noutras palavras, uma literatura declaradamente ideológica.

    Entretanto, ao se pensar que seria a partir da produção literária dos anos 1930 que a linguagem adquiriria efetivamente um diapasão moderno, reflexo da incorporação de dicções antioratórias e de um ponto-final no seu registro artificializado, não se pode deixar de entrever o projeto estético assinalando o romance desse período. Porém, as propostas ousadas e revolucionárias da linguagem que haviam sido disseminadas na fase heroica do Modernismo e incorporadas de vez pela geração de 1930 são consideradas por Lafetá como o início da diluição da estética modernista:

    Na prosa de ficção esse balanceio entre rotinização e diluição (ou entre vanguarda e "kitsch) fica bem mais claro, principalmente no romance de denúncia, no romance social, político, proletário, nordestino", que é a grande novidade do decênio. Incorporando processos fundamentais do Modernismo, tais como a linguagem despida, o tom coloquial e presença do popular, esse tipo de narrativa mantém, entretanto, um arcabouço neonaturalista que, se é eficaz enquanto registro e protesto contra as injustiças sociais, mostra-se esteticamente muito pouco inventivo e pouco revolucionário. Colocados ao lado de Serafim Ponte Grande (escrito em 1928, embora publicado em 1933) ou Macunaíma, deixam entrever a pequena audácia e a curta modernidade de seus esquemas (2000, p. 34-35).

    É preciso levar em conta que houve, na realidade, no Modernismo da segunda fase, uma depuração dos exageros, dos cacoetes que haviam ocorrido no furor vanguardista do decênio anterior. Em razão disso, compreender o romance de 30 como mero diluidor das conquistas anteriores é efetuar uma leitura apressada. O próprio Lafetá concorda que, nesta geração em que se acirraram as preocupações de cunho ideológico na literatura, houve alterações formais na linguagem do romance, talvez obscurecidas pela proeminência na retomada das estruturas narrativas do século XIX.

    Tais marcas neonaturalistas e neorrealistas na produção ficcional do período fazem parte da observação de Antonio Candido (1973), em Literatura e cultura de 1930 a 1945. Nesse ensaio, o crítico observa argutamente que o neonaturalismo vinha marcar a produção ficcional do período. Retomava-se o vezo de fotografar a realidade, de propor teses, de enveredar pelas descrições. Dessa vez, o corpo social como um todo, com ênfase para os despossuídos em geral, era o que necessitava ser diagnosticado pela pena do escritor, de ser minuciosamente estudado, a fim de efetuar-se uma produção literária que também fosse um documento da realidade nacional.

    Em suma, tratava-se de um farto material que trazia, sob forma de romance, os mais diversos rincões do país, com todo o peso de seus problemas locais. A propósito, sintomaticamente, entre as décadas de 1930 e 1940, foram publicados os principais ensaios sociológicos preocupados com os aspectos brasileiros, ainda hoje considerados importantes para compreender o Brasil, tais como os escritos por Gilberto Freyre (Casa-grande e senzala), Sérgio Buarque de Hollanda (Raízes do Brasil) e Caio Prado Júnior (Formação do Brasil contemporâneo).

    Pedia-se, naqueles anos de 1930, um romance social declaradamente engajado, sobretudo depois da publicação de Cacau (1933), de Jorge Amado, que passou a ser o paradigma de obra literária conscientizadora, em que importava o valor documental da luta entre opressores e oprimidos, dando voz, é óbvio, a tipos que representassem as pessoas do povo, em detrimento de personagens mais bem elaboradas.

    Tal procedimento era justificado em pequena nota na abertura do volume, na qual o romancista afirmava: Tentei contar neste livro, com um mínimo de literatura para um máximo de honestidade, a vida dos trabalhadores das fazendas de cacau do sul da Bahia. Será um romance proletário? (AMADO, 1996, p. IX). A questão da elaboração cuidadosa de personagens com estofo psicológico era algo que, na polarização que se formou à época, pertencia aos escritores intimistas, vinculados à direita e à igreja católica.

    A crítica literária identificada com a esquerda daria amplo destaque ao romance de Jorge Amado, constatando que a obra era a genuína expressão do social nas produções literárias, respondendo positivamente à indagação do início de Cacau. Como romance proletário, ultrapassava a mera simpatia em relação a essa classe social, pois se constituía numa literatura proletária. Bueno (2006, p. 162) ressalta que "Alberto Passos Guimarães, como outros críticos da esquerda, verá em Cacau a concretização de um projeto de literatura engajada na revolução, e essa postura atribuirá a esse romance uma importância enorme para a literatura do período".

    Aquele mínimo de literatura a que alude Jorge Amado é o dado comprometedor de quase todo o romance de 30. Está implícita nessa afirmação a preocupação em produzir romances em que o máximo de honestidade da atitude fotográfica do escritor prevalecia sobre a preocupação estética que o aspecto literário deveria suscitar. Se por um lado obras desse cunho realista/naturalista promovem o retrato fiel das desigualdades do País, por outro, descuidam da elaboração do tecido literário, este posto em segundo plano, já que a finalidade primeira dessa literatura vinha a ser o enquadramento dos problemas sociais, econômicos e culturais do País.

    Nessa atmosfera de literatura engajada com causas sociais, a produção ficcional de Graciliano Ramos representa o que de melhor se produziu, na década de 1930, no gênero romanesco. O escritor escreveu dentro da tensão entre o estético e o ideológico. Tal conflito, observado por Lafetá como o grande problema enfrentado pela crítica da época, é justamente aquele que pode ser observado nos romances graciliânicos, levando a crítica literária de então a avaliar seus textos, destoantes do chamado romance de 30, com certo estranhamento, comprometendo a recepção crítica de Graciliano:

    A tensão que se estabelece entre o projeto estético da vanguarda (a ruptura da linguagem através do desnudamento dos procedimentos, a criação de novos códigos, a atitude de abertura e de autorreflexão contidas no interior da própria obra) e o projeto ideológico (imposto pela luta política) vai ser o ponto em torno do qual se desenvolverá a nossa literatura por essa época. Desse conflito é que nascerá uma opinião bastante comum nos anos trinta: a suspeita de que o Modernismo trazia consigo uma carga muito grande de cacoetes, de atitudes literárias que era preciso alijar para se obter a obra equilibrada e bem realizada. Na verdade, esse questionamento tinha um ponto de razão, mas, na medida em que foi exagerado (e nisso a consciência política, tanto de direita quanto de esquerda, exerceu forte influência) afastou das obras então produzidas grande parte da radicalidade da nova estética (LAFETÁ, 2000, p. 35).

    Por questões cronológicas e regionais, Graciliano está situado entre os escritores da geração de 1930, todavia não retrata com fidelidade fotográfica (ou como desejava o momento politizado) as agruras socioeconômicas e culturais do sertão nordestino, o embate entre os donos do poder, os desvalidos. Mesmo que as marcas neorrealistas de sua escrita aproximem-no dos escritores do período – o que permitiria inferir que preocupações estéticas estavam fora de seus objetivos – verifica-se certo ar paradoxal na sua prosa: o caráter tradicional e a proximidade com o sopro renovador da vanguarda modernista. Moderno sem ser modernista, como percebe Alfredo Bosi, ao comentar que há um elemento de modernidade na produção ficcional de Graciliano que tem pouco a ver com o Modernismo e nada a ver com as modas literárias para as quais o escritor pode apresentar um quê de inatual (1994, p. 404).

    A obra de Graciliano Ramos exemplifica, no âmbito do Modernismo, o salto que existe entre o tradicional e o novo na produção romanesca. Convém salientar que o romancista antipatizava com o movimento, via com maus olhos a produção literária que se fazia então, visto que a geração modernista geralmente desprezava o caráter clássico do idioma que o escritor acreditava necessário existir nos escritos com veleidades literárias. Muitas das experimentações propostas e efetuadas pelos modernistas eram, segundo a ótica de Graciliano, desprovidas de sentido e de efetivo emprego nos textos.

    De qualquer forma, ainda que o romancista alagoano desprezasse o movimento de renovação de nossas letras – e isso se deve sobretudo ao desleixo com a palavra escrita que o escritor observava em muitos autores do momento –, Graciliano acaba sendo beneficiado pelas conquistas vanguardistas de 1922, sobretudo com a obtenção da rotinização de seus elementos estéticos que ocorre a partir de 1930. Se não tivesse havido a valorização do regional de par com a crítica social e a busca de uma ficção que desse espaço para preocupações introspectivas – conquistas obtidas com os literatos que passaram a publicar por volta de 1930 – Graciliano talvez não tivesse tido a importância capital que teve.

    Além disso, a recepção a seus romances era assinalada por certa estranheza por conta de o escritor ser reconhecidamente simpático à esquerda, porém produzindo obras que não valorizavam, declaradamente, o recorte social. Em virtude disso, os críticos que o queriam produzindo literatura proletária sentiam-se poucos confortáveis em avaliar seus romances que frequentemente se revelavam introspectivos, na linha dos romancistas católicos, tidos como inimigos pelos romancistas do Norte.

    Isso decorre do fato de que em todos os romances graciliânicos a filiação ao pensamento de esquerda do autor não o obrigava aos cacoetes que muitos escritores simpatizantes da esquerda tinham, levando-os a prejudicar a criação de romances em prol de uma tendência de querer convencer o público leitor de certos valores ideológicos. Por esse e outros motivos, Graciliano escapava à pecha de mais um escritor regionalista engajado politicamente, isto é, fugia ao que havia se estabelecido como a tradição do romance de então, já que ele mantinha uma independência de espírito na sua criação literária.

    Em Ficção e confissão, Antonio Candido (1992) louva o livro de estreia do escritor, justamente no quesito com o cuidado com a escrita, ainda que considere, no plano geral, que Caetés seja obra em que o romancista ainda era um praticante das técnicas e fórmulas do romance convencional, ligado a uma linha neorrealista ou neonaturalista, tal qual se tornara prática na década de 1930. Importante também o comentário de Candido sobre a questão de obras literárias feitas às pressas, no auge da ascensão e embate das literaturas regionalista e introspectiva. O padrão de escrita pautava-se em buscar captar a realidade, sacrificando, na maioria das vezes, o elemento estético-literário. Em Caetés, que não se adapta muito bem aos padrões esperados por um autor vinculado à esquerda e inserido na realidade nordestina, Candido (1992, p. 16) salienta elementos estéticos na prosa graciliânica:

    A vocação para a brevidade e o essencial aparece aqui na busca do efeito máximo por meio dos recursos mínimos, que terá em São Bernardo a expressão mais alta. E se Caetés ainda não tem a sua prosa áspera, já possui sem dúvida a parcimônia de vocábulos, a brevidade dos períodos, devidos à busca do necessário, ao desencanto seco e ao humor algo cortante, que se reúnem para definir o perfil literário do autor. Como consequência, a condensação, a capacidade de dizer muito em pouco espaço.

    Escritor ligado à tradição da língua, Graciliano tornar-se-ia, posteriormente, o clássico representante da produção romanesca da década de 1930, sem ter se dobrado às polarizações ideológicas do momento e nem mesmo filiando-se à linha introspectiva de um Lúcio Cardoso ou um Cornélio Penna, ou ao regionalismo explícito presente em Rachel de Queirós, Jorge Amado ou José Lins do Rego, alguns poucos exemplos bem definidos e bem-sucedidos da época.

    Tal atitude do romancista alagoano coloca-o diante de uma ruptura com certos padrões consagrados pelos escritores da geração de 1930, sobretudo aqueles que enfatizavam a opção pela literatura regionalista ou introspectiva. Por outro lado, Graciliano está afinado à tradição daquele momento porque se mostrava um escritor antenado com

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