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O Cisne Morto
O Cisne Morto
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E-book301 páginas4 horas

O Cisne Morto

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Sobre este e-book

'Meu assassinato não foi a coisa mais interessante que aconteceu na noite em que morri.' Assim começa a narrativa de Sol, uma artista negra que acorda morta sobre um tapete persa e descobre que, na sala ao lado, um morto foi assassinado. Ela é a única testemunha, possivelmente cúmplice ou até mesmo arma do crime, mas não se lembra de nada. Para salvar sua própria existência, Sol precisa ajudar a encontrar o verdadeiro assassino, mas ela se lembra de muito mais coisas do que apenas esta vida passada.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento25 de nov. de 2021
ISBN9781526044631
O Cisne Morto
Autor

Tartaruga Aguilera

Talvez ninguém leve a sério uma Tartaruga Escritora, mas acredito que haja muito mais gente aí fora vivendo numa velocidade e talvez até numa frequência diferente, tentando entender qual é a pressa, qual o motivo de tanto atropelamento. Saboreando a vida como se fosse uma paisagem. Essas pessoas talvez levem a sério uma tartaruguinha nada ninja, que deveria ter escrito aqui uma biografia, mas para que servem biografias de tartaruga, quando tem tanta história bonita para contar?

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    O Cisne Morto - Tartaruga Aguilera

    Este livro de mortos, eu dedico ao meu morto pai.

    O Cisne Morto

    Meu assassinato não foi a coisa mais interessante que aconteceu no dia em que morri. Faltava um mês para eu fazer cinquenta anos. Se eu fosse um produto no mercado, custaria R$ 49,90. Acordei confusa depois de morrer, uma tontura ao contrário, em que o mundo permanecia sólido e eu me liquefazia em onda sem correnteza.

    Minhas unhas pintadas de branco, a carne em volta agora com um toque azulado, rasgaram um tapete macio e por um instante eu alucinei que as serpentes persas fugiram para o mármore branco do piso. Uma parte de mim quis segurá-las, mas coloquei todas as minhas forças no esforço de me erguer sobre aqueles músculos mortos, que não sabiam ainda de que modo deveriam funcionar. Meu corpo não tinha aprendido a respirar trevas ao invés de ar.

    Eu não pensei em nada, mas farejei muita coisa: um cheiro frio e plácido vindo do piso de mármore, o cheiro liso das colunas, a poeira dos estofados, o perfume quase pútrido das tapeçarias. E um fedor arroxeado e quente vindo do outro lado de uma porta dupla por cujas frestas fugiam fios de luz apavorados.

    A minha sala estava escura. A escuridão não me assustou porque parte de mim já sabia que todas as coisas que moram na noite e a gente tem medo... bem, o monstro agora era eu.

    E estava com fome.

    Não aquela fome alucinada que você vê nos filmes, onde o monstro sai mordendo o pescoço de qualquer um sem discernimento. Só fome, mesmo, e uma espécie de curiosidade para com o sabor das coisas futuras.

    A sala ao lado tinha lâmpadas acesas e o cheiro roxo expulsava a luz amarela que nem óleo empurrando água pelas frestas da porta dupla de madeira trabalhada. Aquele cheiro agiu em mim como sangue nas narinas de um lobo, me puxando em sua direção apesar do peso, do quente, do horror.

    Foi esse horror que ancorou meus ossos, acordou meus músculos e focou minha vista. Parecia medo de morte, mas eu já estava morta. O medo pinicou meus poros, tentando arrepiar cabelos mortos, mas medo não move. Foi minha curiosidade que abriu a porta dupla e a luz tombou em mim como se eu tivesse quebrado o vidro de um aquário.

    A sala do outro lado da porta também tinha um tapete enorme, com desenhos de pavões. Nas paredes, unicórnios e leões faziam pose em tapeçarias ancestrais. Os unicórnios mofados mantinham suas crinas limpas enquanto os outros bichos estrebuchavam num líquido oleoso e negro.

    Sangue.

    Não o sangue humano que ontem percorreu minhas veias vivas; o sangue de cheiro roxo já estava morto quando o derramaram. Ao lado da sala onde morri, um morto foi assassinado.

    *

    Primeiro percebi a carcaça, um corpo esvaziado pregado à parede em forma de crucifixo. A pele estava aberta como uma cortina, fincada na parede com estacas de um material cinzento que não reconheci. Todos os órgãos estavam fora do corpo, pendurados nas paredes com o mesmo tipo de estaca que segurava a pele em forma de asas abertas. Os intestinos, assim como a pele, precisaram de várias estacas. Para os outros órgãos, bastava uma. Senti falta das costelas no corpo estraçalhado e entendi de onde vinham as estacas pregando os órgãos nas paredes. A pele do rosto estava derretida em forma de dor.

    Depois que percebi o corpo, percebi movimentos. Um homem se aproximou do morto e quase tocou o dedo no rosto derretido, mas recuou.

    — Água benta — ele disse. Tinha olhos castanhos e pele que deve ter sido pálida até em vida. Contornos bonitos, caveira forte.

    Com quem ele estava falando? A sala era tão grande e cheia de unicórnios que meus sentidos ainda dormentes só perceberam as coisas aos poucos através da névoa roxa que envolvia a morte de um morto.

    — Onde está o coração? — perguntou o homem da caveira forte.

    Um movimento à minha direita e vi uma mulher miúda, de pele negra, pescoço bonito. Tchaikovsky deve ter visualizado essa mulher quando compôs o Cisne Negro. Ela apontou para um quadro atravessado por uma estaca de madeira. No centro do quadro, bem onde estava fincada a madeira, havia uma mancha carbonizada. Talvez por não haver sangue nem pedaço de corpo eu percebi o quadro. A imagem de uma mameluca nos tempos coloniais era um Albert Eckhout original.

    A terceira coisa que morreu naquela mansão aquela noite foi uma obra de arte e eu devo ter feito algum som indignado porque Caveira e o Cisne Negro se viraram para mim.

    Nenhum dos dois se moveu, mas havia mais um morto na sala. Um homem de cabelos louros cacheados, pele lisa como se nunca tivesse conhecido barba. Ele capturava a luz e adensava as sombras como um anjo de Caravaggio. Assim o batizei. Caravaggio. Ele se aproximou de mim com passos deliberados, começando pelo calcanhar e encostando milímetro a milímetro a sola inteira no chão até chegar na ponta dos sapatos de couro.

    — O que você faz aqui? — podia ser uma pergunta simples, mas do jeito que ele falou pareceu mais que, na opinião dele, eu não merecia existir.

    O Caveira fez um som de repreensão e se aproximou, lançando um olhar gélido para o anjo loiro e estendendo a mão para mim.

    Eu não peguei a mão estendida. Todos aqueles órgãos pregados nas paredes, o corpo crucificado retalhado, meu pescoço teve espasmos. Caveira colocou as mãos nos meus ombros e me virou de volta para a sala onde eu tinha acordado, me acomodou em um sofá. Ouvi a porta se fechando e o Cisne Negro apareceu ao meu lado. Atrás dela estava Caravaggio.

    — Eu não esperava que você acordasse tão cedo — disse o Caveira. — Eu sou — ele se apresentou e apresentou os outros dois formalmente, mas na minha cabeça eu vou continuar chamando ele de Caveira. Dom Caveira, porque os mortos de antigamente ainda usam o título de Dom nos dias de hoje. O outro, continuarei chamando de Caravaggio. O morto assassinado, disse Caveira, se chamava Dom Fernando. — Foi ele quem te deu às trevas.

    Só o nome do Cisne Negro eu guardei, porque ele a apresentou apenas como Luíza. Não Dona Luíza. Luíza.

    Depois de me depositar no sofá, ele se afastou e foi ficar em pé atrás do Cisne Negro. Procurei espelhos que me mostrassem rejuvenescimento, beleza, encantamento. Afinal, não é assim que funciona? Quando a gente morre, as feiuras todas se enterram e as belezas brotam que nem flores sobre túmulos? Não havia espelhos e, se houvesse, não haveria reflexos. Mesmo assim eu sabia que, se alguma coisa me refletisse, eu veria a mesma mulher negra de R$ 49,90, cabelos crespos não tingidos, rugas sem botox e cílios sem rímel que eu havia sido em vida. Eu não era feia, nem descuidada. Ao contrário, muitos enalteciam minha elegância sem filtros, como os admiradores diziam no Instagram. Mas eu era humana e todo humano é decadente.

    — Por quê? — eu perguntei.

    — Não sabemos — respondeu Dom Caveira. — Não faz sentido ele trazer alguém como você para a escuridão.

    Foi desagradável ouvir isso. Nasci contra a vontade de minha mãe, não gostei da ideia de ser um acidente também na morte.

    — Encontramos você aqui — continuou Dom Caveira — e Dom Fernando daquele jeito. Tudo indica que a última coisa que ele fez antes de ser atacado foi trazer você para as trevas. Agora precisamos descobrir quem você era em vida para tentar entender o que aconteceu aqui.

    — Me chamo Sol — eu disse.

    Minha mãe escolheu esse nome para minha irmã por causa da personagem de Glória Menezes na novela que passava no ano em que minha irmã foi feto. Minha irmã morreu seis meses antes de nascer numa época em que minha mãe tinha marido e planos de passar o resto da vida fazendo bolo de banana e arroz feijão. O pai culpou e abandonou minha mãe. Eu fui um acidente sem marido dezessete meses depois. Minha mãe reciclou o nome.

    Dom Caveira me olhava cheio de expectativa e Caravaggio me encarava ainda com o que parecia raiva. O Cisne Negro estava atrás de mim e imagino que também esperasse uma continuação. Mas eu não lembrava mais nada. Eu tinha um nome, uma imagem de mim mesma, reconheci uma pintura original por trás do coração carbonizado de um morto, conhecia o liso de um pincel entre meus dedos. Eu devia ser uma artista.

    — Tenho fome — falei.

    — Luíza, dê-lhe de comer — Dom Caveira disse.

    O Cisne Negro curvou o pescoço belo em obediência. Quando vi aquela mulher na outra sala, aquela beleza, eu quis pintá-la numa tela gigantesca. Aquele pescoço curvado adestrado me fez perder a vontade. Tenho nojo de obediência quieta. O Cisne Negro não passava de uma galinha de cativeiro.

    A atenção de Caravaggio continuava focada em mim e funcionava como uma cortina para os meus novos sentidos. Tudo o que eu percebia era ele me percebendo, me dissecando com perguntas que eu não tinha como interpretar. Eu tentei me manter plácida como um jardim de Monet. Não me lembrava das circunstâncias da minha morte e não reconheci o nome de Dom Fernando. O rosto estava deformado demais para eu saber se ele foi alguém que conheci em vida. De qualquer forma, minha fome curiosa, antes apenas uma coceira, foi se apossando de mim até todos os meus poros virarem dente. Eu não precisava comer para sobreviver, eu precisava comer para saber.

    Com um gesto bonito da mão, a mulher negra me convidou a segui-la.

    — Traga ela de volta para cá quando terminar — disse o morto da caveira bonita.

    As sombras se movimentaram quando Caravaggio e Dom Caveira voltaram para a cena do crime. Talvez houvesse mais monstros na sala, mas não tinha como saber. Igual a um bebê, eu só enxergava o que aparecia na moldura do meu berço, mas sabia que havia criaturas nas sombras.

    Mais uma vez Luíza curvou o pescoço e me guiou para longe do morto assassinado. Eu era pura fome. O perfume de sangue me atingiu de longe e eu acelerei em direção a ele. Luíza me segurou pelo braço e eu reagi com raiva. Não com violência, apenas a raiva de um lobo que se prepara para dar o bote e prende a pata em uma raiz. Torci meu braço tentando me livrar das garras negras e entendi a força de um monstro mais antigo do que eu.

    Luíza apenas me segurou, os dedos dela raízes negras em meus braços mortos.

    — Não na rua — ela disse.

    Luíza me guiou pelos corredores e percebi que eu havia farejado o sangue de gente na rua. Ela deslizou sobre assoalhos de madeira debaixo dos quais ouvi o rastejar de baratas e o silêncio das aranhas, através de uma escada em caracol e uma garagem, então um alçapão. Se eu fosse viva, aquele alçapão teria me dado arrepios. Morta, o negrume que vinha das entranhas da terra encheu minhas narinas com o sabor de sangue e eu mergulhei na escuridão.

    Nos subsolos da mansão de Dom Fernando havia um corredor de cimento que levava a uma adega com porta de aço como os cofres de banco. Enquanto Luíza destrancava a porta com um código numérico, talvez por ser minha primeira hora como morta e por eu estar ainda acostumada à vida, imaginei uma grande bolsa de sangue em forma de frango assado. Dentro da adega havia sangue jovem, idoso, gorduroso, vegano, negro, branco, índio, safras de asiáticos e muitas outras variedades que nem tive tempo de perceber porque, antes mesmo de notar tudo isso, meus caninos já haviam encontrado um pescoço e os humanos todos sufocaram soluços e recuaram para perto das paredes.

    Minha fome afinal não tinha tanto discernimento quando pensei.

    Aquela primeira refeição foi mais sensação do que paladar. O calor salgando minha garganta, engordando minhas veias, esquentando o buraco dos meus brincos. Os dedos dos meus pés se contraíram quase como se eu estivesse em orgasmo. Um orgasmo longo, que durou o tempo que aquele humano levou para morrer.

    Terminada a refeição, pude observar melhor a adega, uma enorme sala com luzes, poltronas e plantas. Uma TV com jogo de futebol, que algumas pessoas assistiam fingindo desinteresse na vida que eu havia acabado de consumir, embora medo exalasse de todos. Eles estavam quietos e a adega tinha aspecto da sala de espera de um dentista. Estranhei aquela calma.

    — A maioria dos que estão aqui, — disse Luíza — se venderam a si próprios.

    — Por que alguém se venderia? — perguntei.

    — Pagar dívidas, dar dinheiro a alguém que amam — ela levantou um ombro.

    O humano aos meus pés era um homem de roupas limpas porém surradas. A pele também era limpa e surrada. Por que ele tinha se vendido?

    — Para pagar o tratamento da esposa aqui em São Paulo, — disse Luíza. — Eles vieram de algum lugar no Norte, andaram a maior parte do caminho.

    Que bonito, pensei. Que poético. Saímos da adega, Luíza trancou a porta e me levou de volta à cena do crime. O sangue quente do meu primeiro humano arrepiou minhas artérias. Eu tinha sido um acidente em vida e possivelmente um erro em morte. O que esses mortos fariam comigo?

    *

    Mal Luíza abriu as portas duplas da cena do crime, o anjo loiro me apontou:

    — Por causa dela. — Caravaggio deu um passo em minha direção, mas Dom Caveira tensionou o corpo, como se estivesse preparado para impedir fisicamente que o outro chegasse perto de mim.

    — Preciso examiná-la — disse o loiro. — Talvez consiga escavar suas memórias.

    — Tentar trazer à tona memórias vivas pode gerar danos graves à mente de um morto — disse Dom Caveira.

    Eles estavam mesmo discutindo aquilo na minha frente?

    — Há casos anteriores — disse Dom Caveira.

    — Três casos.

    — Dois dos quais não sobreviveram à intervenção — disse Caveira. — O único caso de amnésia ainda vivo foi o que não sofreu nenhum tipo de operação mental.

    — E até hoje ela não lembra nada — Caravaggio fez um gesto de impaciência em direção a Luíza. — Quase quatrocentos anos depois e ela ainda não sabe de nada.

    O Cisne Negro ao meu lado tinha no rosto uma expressão resguardada. Quatrocentos anos atrás, uma mulher negra. Luíza, sem Dona. Talvez ela não quisesse se lembrar. Talvez ela se lembrasse e não quisesse falar sobre a vida antes da morte.

    — Ela não precisa se lembrar da vida para ser feliz em morte, — disse o Caveira.

    — Luíza não estava envolvida em um assassinato. Luíza não impediu nenhuma investigação. Precisamos saber o que Sol viu e não lembra. Talvez eu não cause dano nenhum.

    Talvez. Ele falava na minha frente sobre dissecar e talvez danificar minha mente como se eu fosse um sapo de laboratório. O sangue que eu acabei de tomar ardeu debaixo de minha pele. Rangi os dentes, mas me contive porque não havia nada que eu pudesse fazer. Se eles estavam falando assim na minha presença é porque não dariam peso a qualquer coisa que eu dissesse em minha defesa. Melhor observar até que eu tivesse algo concreto com que me defender.

    Luíza estava em pé ao meu lado e eu não conseguia ler o rosto dela. Plácido, frio, distante. Se tinha alguma opinião ou sentimento a respeito do assunto, não revelava.

    — Sem enxergar o passado — disse Caravaggio, — como vamos investigar este ataque?

    Enxergar o passado? Dom Caveira se aproximou da carcaça pendurada na parede.

    — Há muitas formas de investigar um crime sem ferir uma inocente — disse Caveira.

    — Não existe inocência, — disse o loiro.

    — Existe. — Caveira disse aquilo tão baixo, que quase duvidei do que ouvi.

    Caravaggio não deu sinais de ouvir. Falava ainda:

    — Trazer essa mulher às trevas foi em si um crime e quem fez isso sabia que um acontecimento dessa magnitude ia eclipsar qualquer outra coisa, até mesmo o assassinato de Dom Fernando. Não é coincidência que essa mulher veio ilegalmente às trevas na mesma noite e no mesmo local em que ele foi atacado.

    — Um crime para acortinar outro, — disse Dom Caveira. Falou de forma distante, como se outras coisas o preocupassem além do corpo pendurado na parede.

    Discretamente, perguntei a Luíza:

    — Como posso ter acortinado qualquer coisa? Tudo o que fiz foi morrer.

    — Podemos ver um pouco do passado — disse Luíza, sem nenhuma inflexão na voz. — Mas olhar o passado é como tentar ver através de várias cortinas, cada cortina um acontecimento. Alguns acontecimentos são mais densos que outros. Pouca coisa junta mais trevas em um único lugar do que trazer alguém às trevas.

    — Nem mesmo um assassinato? — Então era isso. Alguém tinha matado Dom Fernando, sabendo que Caravaggio conseguiria olhar no passado. A única forma de cegar Caravaggio era com um acontecimento, uma cortina mais densa do que qualquer outra. No caso, eu era essa cortina.

    Dom Caveira disse, ainda pensativo:

    — Seria uma teoria válida se não soubéssemos que foi o próprio Dom Fernando quem a trouxe às trevas. Ele não teria por que nem como acobertar o próprio assassinato.

    O rosto de Caravaggio se repuxou todo em direção à ponta do nariz.

    — Nada disso foi culpa dela, — disse Luíza.

    Os dois se viraram para ela com espanto. Nenhum dos dois esperava mais do que aquele pescoço curvado que me enojou antes. Luíza falou para Caravaggio:

    — Sol será mais valiosa como testemunha se ela se lembrar do que aconteceu do que como um pedaço de passado que você mal pode enxergar. Ela é agora uma de nós.

    — A aurora se aproxima — disse Dom Caveira. — Sol, vá para casa. Nos encontraremos de novo amanhã.

    Eu estava prestes a dizer que não lembrava onde morava, mas Luíza ao meu lado curvou o pescoço, dizendo que me acompanharia. Desta vez eu já não conseguia enxergá-la dentro de um galinheiro. A força descontraída com que ela segurou meu braço quando eu quis caçar na rua, o ponto final que ela colocou na conversa sobre me dissecar. Quando saímos para o jardim da mansão de Dom Fernando, eu disse:

    — Quero enterrá-lo.

    — Quem?

    — O severino que consumi. Quero enterrá-lo.

    Ela não demonstrou estranheza ou empatia. Me levou de volta à adega, onde os outros mortais haviam deitado o corpo seco de meu severino e cruzado os braços sobre o peito. Meu primeiro sangue quente. Eu peguei ele nos braços. Que leve era a carcaça humana.

    — Quer levá-lo a um padre? — perguntou Luíza. — Temos alguns à nossa disposição.

    — Eu não acredito em deus.

    — Ele acreditava — ela apontou o cadáver.

    — Então por que veio pedir ajuda aos monstros? — Perguntei, mas a linha que separa os monstros dos deuses eu sei que é tênue, talvez nem exista. Na maioria das mitologias, deuses e monstros não passam de criaturas dispostas a fazer o que queremos por um preço que não queremos pagar.

    — Vamos encontrar alguém que reze por ele — eu disse. — Alguém que acredite de verdade.

    Luíza me levou para o outro lado da adega sob os olhares arregalados daqueles humanos esperando o abate. Eu não me senti desconfortável debaixo de todo aquele medo, nem achei desagradável a aura do pavor. Estava em casa. Me pareceu que eu nasci para morrer. Se eu fui um acidente ou se eu fui um ato ilegal dos mortos não interessava. Estava em casa.

    Ao fundo da adega havia outra porta com código, que Luíza abriu e dava para um necrotério. Ela abriu uma das gavetas de metal e puxou uma maca.

    — Coloque ele aqui.

    — Nenhum dos seus padres está disponível agora?

    Ela fechou a gaveta. — Você pediu alguém que acredite.

    *

    Eu sabia que estava em meu apartamento. De certa forma, reconheci tudo. Foi Luíza quem me mostrou o caminho. Sem ela, eu não teria me lembrado de pegar as ruas certas através do nevoeiro que separa a vida da morte. As pestilências de São Paulo saíram de seus esconderijos para nos ver passar. Ratos e baratas escalaram bueiros, cães e gatos de olhos brilhantes assolaram os becos à nossa passagem e eu me imaginei naquela música do Chico, em que o povo sai para ver a banda passar.

    Uma banda fantasmagórica, que mais flutuava do que caminhava sobre as calçadas. Luíza e eu nos transformamos em névoa e velejamos na brisa. Não sei descrever a sensação de deixar de ser uma coisa sólida e entrar num mundo de possibilidades incontáveis. Meu corpo em névoa era feito do mesmo material dos sonhos e também dos pesadelos. Eu podia ser qualquer coisa, me esticar para qualquer lugar, subir até a lua. Talvez.

    Em casa, sozinha e sem despedidas, relembrei as persianas duplas que Luíza fechou, as cortinas corta luz. Sempre gostei do escuro. Antes de ir embora, Luíza pousou pela segunda vez os olhos em mim e se desfez em névoas. Durante todo o caminho ela não falou comigo e agora ela não disse adeus. Um certo abandono tomou posse de mim, uma solidão de coisas que eu reconhecia, mas não conhecia. Tudo estava do jeito que eu tinha deixado quando fui morrer, mas nada estava igual ao que eu lembrava.

    Eu lembrava com os olhos e sentia com os poros. Minha pele estava morta de nervos, mas parecia ter se espalhado em infinitas moléculas que estudavam as texturas sem precisar tocar. Todas as coisas tinham perfume, mas nada fedia. O que irritava meu nariz em vida não incomodava na morte. A cidade inteira foi assim, mas meu apartamento tinha a aspereza das lembranças. O sofá estava coberto de mim, cabelos crespos misturados ao pó, farelos de minha pele espalhados pelos tapetes, as plantas ecoavam o jazz que eu colocava para tocar no Spotify enquanto pintava.

    Quando senti o cheiro de mim mesma, senti saudades. Não sei de quê, não sei por quê. Uma tristeza de granito me tomou o peito e eu teria chorado se os mortos tivessem lágrimas.

    Só percebi que dormi quando acordei. Continuava sensível a todas as texturas de minha vida passada, mas minha tristeza já estava mais calcário do que granito. Meus sentidos abraçaram um objeto gelado e liso sobre a mesa de

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