Cacofonia nas redes
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Cacofonia nas redes - EDUC – Editora da PUC-SP
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
Reitora: Maria Amalia Pie Abib Andery
EDITORA DA PUC-SP
Direção: José Luiz Goldfarb
Conselho Editorial
Maria Amalia Pie Abib Andery (Presidente)
Ana Mercês Bahia Bock
Claudia Maria Costin
José Luiz Goldfarb
José Rodolpho Perazzolo
Marcelo Perine
Maria Carmelita Yazbek
Maria Lucia Santaella Braga
Matthias Grenzer
Oswaldo Henrique Duek Marques
© Lucia Santaella. Foi feito o depósito legal.
Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca Reitora Nadir Gouvêa Kfouri / PUC-SP
Cacofonia nas redes /org. Lucia Santaella. - São Paulo : EDUC, 2018.
1. Recurso on-line: ePub
Disponível no formato impresso: Cacofonia nas redes /org. Lucia Santaella. - São Paulo : EDUC, 2018. ISBN 978-85-283-0615-6.
Disponível para ler em: todas as mídias eletrônicas.
Acesso restrito: http://pucsp.br/educ
ISBN 978-85-283-0618-7
1. Redes sociais on-line. 2. Internet. 3. Mídia digital. I. Santaella, Lúcia
CDD 00.574
004.67
302.23
EDUC – Editora da PUC-SP
Direção
José Luiz Goldfarb
Produção Editorial
Sonia Montone
Revisão
Lucia Santaella
Editoração Eletrônica
Gabriel Moraes
Waldir Alves
Capa
Kalynka Cruz-Stefani
Administração e Vendas
Ronaldo Decicino
Produção do ebook
Waldir Alves
Revisão técnica do ebook
Gabriel Moraes
Rua Monte Alegre, 984 – sala S16
CEP 05014-901 – São Paulo – SP
Tel./Fax: (11) 3670-8085 e 3670-8558
E-mail: educ@pucsp.br – Site: www.pucsp.br/educ
FrontispícioEm nome dos autores, a organizadora deste volume agradece ao PIPEq, Programa de Incentivo à Pesquisa da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, que possibilitou a publicação desta obra.
Sumário
Apresentação
Capítulo 1
Da biblioteca de Babel aos labirintos discursivos
Lucia Santaella
Capítulo 2
Dúvida: antídoto contra a cacofonia nas redes
Thiago Mittermayer, Lucia Santaella
Capítulo 3
Os sentidos da cacofonia nas redes: desarmonia e ambiência criativa
Clotilde Perez
Capítulo 4
Cacofonia e polifonia na web vsa materialização multidimensional do fenômeno
Kalynka Cruz-Stefani
Capítulo 5
Cacofonias digitais e o pensamento pós-moderno
Marcelo de Mattos Salgado
Capítulo 6
Dissonância cognitiva, produção de estranhos, cacofonia: até onde o pensamento disjuntivo nos trouxe
Patrícia Fonseca Fanaya
Capítulo 7
Crise humanitária:entre a invisibilidade e a cacofonia digital
Cilene VictorWillis Guerra
Capítulo 8
Solidão interativa em redes sociais:excitação e isolamento
Fabio de Paula, Ana Maria Di Grado Hessel
Capítulo 9
Ghosting e mooning: rompimentos de relacionamentos na internet
Patrícia Margarida Farias Coelho, Hermes Renato Hildebrand
Capítulo 10
A comunicação das marcas na era da cacofonia nas redes
Maria Collier de Mendonça
Capítulo 11
Os ataques hackers e os ruídos gerados nas redes
Marcelo Augusto Vieira Graglia, Patrícia Huelsen, Paulo Cacciari
Autores
Apresentação
O grupo de pesquisa Sociotramas¹ que existe há perto de seis anos, está fazendo sua história enquanto persegue a dinâmica dos temas que sobem e descem acerca e nas redes sociais digitais. A permanência do grupo se deve tanto aos desafios que as redes não cessam de nos apresentar, quanto à metodologia de pesquisa e trabalho que vem sendo desenvolvida.
Para manter o diálogo entre as ideias, posições e fontes de interesse, o grupo mantém um blog em que os participantes publicam textos sobre suas preocupações recentes, o que, depois dos anos decorridos, acabou por se constituir em uma robusta coleção de breves ensaios sobre questões candentes em seu momento próprio. Esses ensaios estão abertos para consulta e comentários. Basta o leitor entrar no endereço e vasculhar suas predileções e curiosidades.
Além disso, no início de cada ano, um tema de trabalho é escolhido para pesquisa e discussão nos encontros mensais do grupo e, ao final do ano, realiza-se um evento para apresentação, por cada um dos membros, dos textos resultantes dos estudos e debates realizados ao longo dos meses. Já foram realizados cinco eventos dos quais resultaram três coletâneas² a que o presente e quarto volume dará continuidade. Os eventos têm por função despertar a discussão entre os membros do grupo relativa aos subtemas escolhidos por cada um. Isso tem garantido uma visão ao mesmo tempo integrada e multifacetada do problema selecionado para exame.
A presente coletânea de artigos foi precedida de um evento, realizado em 23 e novembro de 2017, na PUC-SP, mais particularmente, no programa de estudos pós-graduados, mestrado e doutorado em Tecnologias da Inteligência e Design Digital, quando os autores puderam levar suas ideias à discussão. O núcleo principal de autores é constituído por membros do grupo de pesquisa que abriga tanto os pesquisadores da casa quanto os de fora justamente para provocar o arejamento das ideias. Os temas têm perseguido pari passu, ao longo dos anos, as tônicas mutantes das redes digitais. Mesmo com alguma substituição inevitável de pesquisadores, que se afastam por um motivo ou por outro, felizmente, o grupo tem persistido na colheita dos frutos que semeia.
No início de 2017, o tema escolhido para os estudos no decorrer dos meses – Cacofonia nas redes – foi um tiro na mosca. Estavam ainda engatinhando as três palavras – fake news (notícias falsas), bolhas filtradas e pós-verdade – que, no decorrer de 2017, foram gradativamente se tornando moedas correntes de boca em boca até explodirem no mercado das ideias. A palavra cacofonia
, o alarido de vozes em que se transformaram os ambientes das redes digitais, pode muito bem funcionar como uma síntese, um achado que este volume entrega à exploração do leitor para que, na sua leitura, possa encontrar sua própria voz.
Lucia Santaella
organizadora
1. https://sociotramas.wordpress.com/
2. SANTAELLA, Lucia (org.) Sociotramas. Estudos temáticos sobre as redes digitais. São Paulo: Estação das Cores e Letras, 2014; ROCHA, Cleomar; SANTAELLA Lucia (orgs.). A onipresença dos jovens nas redes. Goiânia: Editora da Universidade Federal de Goiás, 2015. SANTAELLA, Lucia (org.). Cidades inteligentes. Por que, para quem? São Paulo: Estação das Letras e Cores.
Capítulo 1
Da biblioteca de Babel aos labirintos discursivos
Lucia Santaella
Jorge Luis Borges (1971) sonhou com uma Biblioteca tão imensa que toda redução de origem humana resulta infinitesimal. Nela, cada exemplar é único, insubstituível, mas (como a Biblioteca é total) há sempre várias centenas de milhares de fac-símiles imperfeitos: de obras que apenas diferem por uma letra ou por uma vírgula. Umberto Eco (1985) traduziu essa biblioteca na forma da rede ou rizoma, labirinto no qual todos os caminhos se interligam. Nele não há um centro, nem periferia. Um labirinto que conduz a toda parte e não leva a lugar algum. Tanto a Babel borgiana quanto o labirinto de Eco podem ser tomados como base para se pensar a topologia das redes sociais digitais. Entretanto, enquanto ambos compunham hinos de amor à sabedoria humana contida na infinitude dos livros, hoje nas redes digitais a sabedoria se converteu em alaridos de vozes disparatadas.
Embora o diagnóstico acima seja quase consensual entre os críticos das redes sociais digitais, o objetivo deste artigo é colocar em discussão esse diagnóstico por meio da exploração das condições de uso das redes e dos processos perceptivos, corporais e cognitivos que essas condições desenvolvem e que redundam em práticas discursivas específicas, fazendo emergir o que chamo de imediatismo intempestivo
.
A biblioteca borgiana
Em uma de suas ficções mais famosas, sob o título de A Biblioteca de Babel
, Jorge Luis Borges discorreu sobre uma biblioteca infinita, capaz de abrigar todos os livros já escritos e por escrever nos quais aparecem todas as combinações possíveis do alfabeto de vinte e dois caracteres sobre a base de vinte e cinco símbolos naturais. O texto tem início com a descrição física desse lugar imaginário de teor alegórico. Vale a pena transcrever:
O universo (que outros chamam a Biblioteca) compõe-se de um número indefinido, e talvez infinito, de galerias hexagonais, com vastos poços de ventilação no centro, cercados por balaustradas baixíssimas. De qualquer hexágono, veem-se os andares inferiores e superiores: interminavelmente. A distribuição das galerias é invariável. Vinte prateleiras, em cinco longas estantes de cada lado, cobrem todos os lados menos dois; sua altura, que é a dos andares, excede apenas a de um bibliotecário normal. Uma das faces livres dá para um estreito vestíbulo, que desemboca em outra galeria, idêntica à primeira e a todas. A esquerda e à direita do vestíbulo, há dois sanitários minúsculos. Um permite dormir em pé; outro, satisfazer as necessidades físicas. Por aí passa a escada espiral, que se abisma e se eleva ao infinito. No vestíbulo há um espelho, que fielmente duplica as aparências. Os homens costumam inferir desse espelho que a Biblioteca não é infinita (se o fosse realmente, para que essa duplicação ilusória?), prefiro sonhar que as superfícies polidas representam e prometem o infinito... A luz procede de algumas frutas esféricas que levam o nome de lâmpadas. Há duas em cada hexágono: transversais. A luz que emitem é insuficiente, incessante. (BORGES, 1971, p. 89)
Evidentemente, a fisicalidade da descrição não pode nos iludir. Trata-se aí de uma descrição espaço-temporal muito mais do que meramente espacial. Outras passagens breves, que Borges sorrateiramente insere em seu texto, oferecem confirmações sobre a infinitude que é também do tempo. Vejamos:
Eu afirmo que a biblioteca é interminável. (...) A biblioteca é uma esfera cujo centro é qualquer hexágono, cuja circunferência é inacessível. (ibid., p. 90)
A biblioteca existe ab aeterno. (p. 91)
A biblioteca é tão enorme que toda redução de origem humana resulta infinitesimal. (p. 96)
Talvez me enganem a velhice e o temor, todavia suspeito que a espécie humana – a única – está por extinguir-se e que a Biblioteca perdurará: iluminada, solitária, infinita, perfeitamente imóvel, armada de volumes preciosos, inútil, incorruptível, secreta. (p. 99)
Desnecessário dizer que essa ficção borgiana – assim como muitas outras de sua autoria – é uma obra aberta, segundo o conceito de Umberto Eco (1969), ou seja, uma obra indefinida e plurívoca, aberta, verdadeira rosa de resultados possíveis (...) como um feixe de possibilidades móveis e intercambiáveis, mais adaptadas às condições nas quais o homem moderno desenvolve suas ações
(CUTOLO, 1969, p. 12). Entretanto, uma vez que este artigo não se insere dentro da área de crítica literária, seu objetivo é outro, não tratarei aqui de buscar caminhos viáveis de interpretações plausíveis dessa obra de Borges que, aliás, já foi objeto de discussão para muitos comentadores. A menção à Biblioteca de Babel comparece aqui tão só e apenas para evidenciar a existência nessa ficção de uma topologia que, sob a aparência espacial, reflete sobre os enigmas das escrituras humanas no longo curso de um tempo ilimitado.
Os labirintos de Umberto Eco
Inspirado em Borges, ao tomar de empréstimo o tema do labirinto, no seu Pós-escrito sobre o nome da rosa ([1985] 2005, p. 47), Umberto Eco afirma sobre seu livro: Até o leitor ingênuo farejou que se encontrava diante de uma história de labirintos, e não de labirintos espaciais
. Quando, mais tarde retomou o tema (Eco, [2015] 2016) explicitou com mais detalhes os três tipos de labirinto:
(a) o primeiro deles é o labirinto de Cnossos, o de Teseu e o Minotauro. Trata-se de um labirinto unicursal
, aquele em que se chegando ao centro não é possível senão encontrar a saída por meio do fio de Ariadne.
(b) A era moderna trouxe a suspeita de que o mundo é infinito, ou que existam infinitos mundos, e que o universo não é mais representável com métodos euclidianos. Assim, de unicursal o labirinto se torna multicursal
. Neste, as pessoas se perdem, sem que se possa ter dele uma imagem global.
(c) A situação se complica mais ainda na terceira forma de labirinto, a rede ou teia de aranha, onde cada ponto pode estar conectado com qualquer outro ponto, inspirando percursos múltiplos
. Enquanto os labirintos anteriores tinham um interior e um exterior, com entrada e saída, o labirinto em rede é extensível ao infinito, sem fora ou dentro. Para esse labirinto, Deleuze e Guattari (1995, p. 15) propuseram a metáfora (ou o modelo) do rizoma. Este, nele mesmo tem formas muito diversas, desde sua extensão superficial ramificada em todos os sentidos até suas concreções em bulbos e tubérculos
. Trindade (2013) complementa:
Pesadelo do pensamento linear, o rizoma não se fecha sobre si, é aberto para experimentações, é sempre ultrapassado por outras linhas de intensidade que o atravessam. Como um mapa que se espalha em todas as direções, se abre e se fecha, pulsa, constrói e desconstrói. Cresce onde há espaço, floresce onde encontra possibilidades, cria seu ambiente.
Não é difícil tecer um paralelo topológico, pelas similaridades que se impõem, entre a Babel de Borges, o labirinto de Eco, o rizoma de Deleuze e Guattari e as atuais redes digitais. Esse paralelo é perfeitamente plausível quando se consideram todos os sentidos de topologia, tanto o sentido matemático, quanto o sentido geométrico. Matematicamente, topologia se define como o estudo das propriedades dos conjuntos e dos subconjuntos, através do recurso a conceitos fundamentais como vizinhança, interior, exterior, limite, continuidade etc.
. Na geometria, a topologia estuda as propriedades dos corpos que se mantêm inalteradas numa deformação
¹.
Não obstante as evidentes similaridades, também não é difícil perceber que, enquanto o universo de Borges e Eco é o universo dos livros o qual, nos seus infinitos espelhamentos, presumivelmente inscreve o saber humano, de outro lado, o alarido de vozes desconexas das redes sociais se constitui em um campo discursivo descontínuo, hiperdimensionado e hiperveloz no qual supostamente o saber se esvai. Ainda nas palavras de Eco ([2015] 2016):
Agora o mundo contemporâneo percebeu que a estrutura do universo é a rede. A ciência não tem medo da rede porque depois de cada escolha pode falsificar suas hipóteses e tentar outra via (...). Mas na nossa vida não é fácil abrir mão das nossas convicções e, mesmo querendo, não há como voltar atrás. A rede é insensível à passagem do tempo, mas nós não o somos. Eis então como o labirinto rede explica as nossas angústias e a nossa condenação ao erro e à contradição. Nosso próprio Minotauro somos nós.
De fato, muito tem sido dito e mesmo escrito sobre a fragmentação disparatada dos discursos que hoje povoam especialmente as plataformas das chamadas redes de relacionamento. Dos disparates e de seus entrechoques resultam manifestações de intolerância, de cegueira para a alteridade e mesmo de ódio, assunto que tem sido mencionado e discutido à saciedade.
Perfis cognitivos
Nesse contexto, o objetivo deste artigo é penetrar um pouco mais fundo no funcionamento das redes sociais, em busca do tipo uso que elas proporcionam e os consequentes perfis cognitivos, psíquicos e sociais que elas ensejam e que redundam na sintomatologia que se pode muito bem denominar de cacofonia nas redes
.
Entre 2002 e 2004, quando a internet estava começando a penetrar em nossas existências, naquele momento em que estávamos ainda aprendendo a navegar pelas infovias do ciberespaço, fiquei muito intrigada com o perfil perceptivo, motor, corporal e cognitivo dos usuários das redes e realizei uma pesquisa empírica sobre esse tema, publicada no livro Navegar no ciberespaço (2004). Essa pesquisa me levou a constatar que se tratava de um novo modo de ler, um outro tipo de atividade distinta da leitura do livro. Desde os anos 1980, já defendia a necessidade de expandir o nosso conceito de leitura. Afinal, somos também leitores de diagramas, mapas, sinais, luzes, movimentos etc. Diante disso e da novidade do modo de ler em rede, sistematizei o perfil cognitivo de três principais tipos de leitores: o contemplativo, que caracteriza as habilidades do leitor do livro, o leitor movente, para definir o perfil do leitor de imagens em movimento e, por fim, o leitor imersivo, aquele que navega entre nós e conexões informativas reticulares. Cada um desses tipos de leitores apresenta habilidades mentais e corporais diversas que delineiam perfis cognitivos