Caminhos Cruzados e Um Lugar ao Sol: O projeto literário de Erico Verissimo
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Caminhos Cruzados e Um Lugar ao Sol - Beatriz Badim de Campos
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
Reitora: Maria Amalia Pie Abib Andery
EDITORA DA PUC-SP
Direção: José Luiz Goldfarb
Conselho Editorial
Maria Amalia Pie Abib Andery (Presidente)
José Luiz Goldfarb
José Rodolpho Perazzolo
Ladislau Dowbor
Karen Ambra
Lucia Maria Machado Bógus
Mary Jane Paris Spink
Matthias Grenzer
Norval Baitello Junior
Oswaldo Henrique Duek Marques
Frontispício© Beatriz Badim de Campos. Foi feito o depósito legal.
Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca Reitora Nadir Gouvêa Kfouri / PUC-SP
Caminhos Cruzados e Um Lugar ao Sol : o projeto literário de Erico Verissimo / Beatriz Badim de Campos. - São Paulo : EDUC : FAPESP.
Bibliografia.
Originalmente Dissertação de Mestrado, PUCSP, 2015.
1. Recurso on-line: ePub
Disponível no formato impresso: Caminhos Cruzados e Um Lugar ao Sol : o projeto literário de Erico Verissimo / Beatriz Badim de Campos. - São Paulo : EDUC : FAPESP, 2016. ISBN 978-85-283-0538-8.
Disponível para ler em: todas as mídias eletrônicas.
Acesso restrito: http://pucsp.br/educ
ISBN 978-85-283-0566-1
1. Verissimo, Erico, 1905-1975 - Crítica e interpretação. I. Título.
CDD 869.935
Auxílio Fapesp à publicação – processo n. 2015/16269-4.
EDUC – Editora da PUC-SP
Direção
José Luiz Goldfarb
Produção Editorial
Sonia Montone
Preparação e Revisão
Siméia Mello
Editoração Eletrônica
Gabriel Moraes
Waldir Alves
Capa
Rodrigo Ohtake
Administração e Vendas
Ronaldo Decicino
Produção do ebook
Waldir Alves
Rua Monte Alegre, 984 – sala S16
CEP 05014-901 – São Paulo – SP
Tel./Fax: (11) 3670-8085 e 3670-8558
E-mail: educ@pucsp.br – Site: www.pucsp.br/educ
Ao contador de histórias Erico Verissimo,
cuja literatura me fez acreditar na vida.
Carta ao Erico
O nosso modo de ser
– que é tão nosso e por isso tão humano –
de tal modo, velho Erico,
tu o soubeste dizer
que os teus personagens vão
todos eles
andando andando
por uma terra que não tem fronteiras,
contando da sua vida
dizendo da sua lida
e juntamos o seu calor
vasto e profundo
a essa inquieta esperança
que arfa no peito do mundo.
Erico da terra de todos,
Erico da terra da gente.
Não foi só essa a tua mágica...
Além de tantos personagens,
como soubeste criar amigos,
Erico da gente!
Por isso é que
Ana Terra, o capitão Rodrigo e eu
hoje te enviamos esta carta-poema
(Mário Quintana, 1972)
Apresentação
E NO PRINCÍPIO ERA A SAGA...
Maria Rosa Duarte de Oliveiras*
A pesquisa que originou este livro é fruto da dissertação de mestrado da autora – Beatriz Badim de Campos – sob minha orientação, no Programa de Estudos Pós-Graduados em Literatura e Crítica Literária da PUC-SP.
Beatriz, leitora apaixonada de toda a obra de Verissimo, nutriu desde seus primeiros estudos literários – da graduação à especialização e depois no mestrado – a fascinação pela análise crítica de uma obra que foi alvo de muitos equívocos pela crítica literária e tem sido pouco estudada no âmbito dos trabalhos acadêmicos atuais.
O foco da investigação se concentrou em dois romances – Caminhos Cruzados, de 1935, e Um lugar ao sol, de 1936 – sob a perspectiva do desdobramento de uma narrativa em outra por meio de personagens que partilham a função autoral com Verissimo--criador, posicionado-se entre o escritural e o biográfico.
Tendo essa problemática como motivadora da investigação, a hipótese projetada foi a de que o princípio da saga poderia reger a arquitetônica desses romances, bem como a de outros do autor, que serão pinçados, aqui e ali, durante a trajetória da análise crítica concentrada, especialmente, no terceiro capítulo do livro: "Caminhos cruzados e Um lugar ao sol: desdobramentos autorais".
Mas de que saga se trata? Se fôssemos pelo sentido da tradição dessa forma simples, conforme nos diz Jolles¹, teríamos que:
[...] Existe uma disposição mental em que o universo se constrói como família e se interpreta, em seu todo, em termos de clã, de árvore genealógica, de vínculo sanguíneo. Essa disposição mental e esse universo são reencontrados, de maneira clara, em outros pontos da Islândia dos séculos X e XI, mas é esse universo que queremos designar quando empregamos a palavra saga; é esse universo e apenas ele que designaremos pelo nome de saga. (Jolles, 1976, pp. 69-70; grifo nosso)
Embora esse aspecto da saga como forma simples da tradição oral, cujo motivo central é a família e as relações genealógicas, esteja presente, com maior nitidez, em alguns romances de Erico como ocorre na trilogia O tempo e o vento (1949-1962), centrada na saga das famílias Terra e Cambará, em Caminhos Cruzados e Um lugar ao sol, em especial, isso não acontece. A não ser que tomássemos saga
numa outra direção: aquela de famílias de narrativas
que saem umas das outras por meio de algumas personagens, instaurando uma dinâmica de encaixe entre elas, num circuito interativo ininterrupto.
Daqui emergiria uma outra questão: a da escolha das personagens migrantes, que, no caso, recaiu sobre pares de personagens-escritoras/leitoras, interpretadas como dobras da função autoral: Noel–Fernanda, em Caminhos Cruzados, e Vasco–Clarissa, em Um lugar ao sol. Essas duas direções da hipótese se abrem para a constituição de um projeto literário em processo de (re)escrita.
Tal cenário intrincado de cruzamentos de planos narrativos exigiu da pesquisadora a busca de chaves teóricas e críticas que pudessem fundamentar a sua visada analítica desse complexo tecido dialógico, no sentido bakhtiniano, que este livro buscará desvelar. Além de Bakhtin, outros pensadores como Todorov, Barthes, Foucault e Agamben fornecerão chaves teóricas significativas para este estudo, além de críticos fundamentais da obra verissiana como: Antonio Candido, Flávio Loureiro Chaves e Maria da Glória Bordini.
Desde a entrada, chama-nos a atenção alguns subtítulos e títulos de capítulos – Da botica à literatura
; Fora do círculo de giz
; O autor entre o criador e a criatura
–, que nos vão prendendo por meio de um discurso sedutor, em profunda sintonia com o próprio estilo do autor Verissimo, que se considerava, antes de tudo, um contador de histórias
.
Dessa forma, é como se estivéssemos dentro de uma grande narrativa
na qual a autora vai nos conduzindo de tal modo que as ideias vão se sucedendo, umas às outras, num fluxo contínuo entre a espontaneidade e a construção planejada de uma argumentação crítica, como o faz logo na abertura do primeiro capítulo – Erico Verissimo: o autor de seu tempo
:
Se a casa da rua com nome de poeta, Felipe de Oliveira, no Bairro de Petrópolis, em Porto Alegre, pudesse contar a sua história, essa seria a de caminhos cruzados ao longo de muitas décadas, de portões sempre abertos, de música ao longe e prosa bem de perto, de vidas que precisavam de uma palavra afetuosa para criar coragem e irem à busca de seu lugar ao sol.
Erico Verissimo era casa. Uma casa de aparência marcante – olhos negros de índio, sobrancelhas espessas e pele morena, herança talvez de algum descendente mouro –, de semblante tranquilo e, ao mesmo tempo, vivo [...]. (p. 33)
O traçado dessa arquitetura se constrói passo a passo: desde os aspectos biográficos, que mostram como se deu a passagem de Verissimo da botica à literatura
, até os pressupostos contextuais da década de 1930 com a sua exigência de engajamento social e político, que encontra no neorrealismo literário a sua contraparte perfeita.
Esse círculo de giz
opressor, segundo a autora, leva Verissimo a enveredar por outros atalhos, à busca de um tipo diverso de engajamento que operasse esteticamente sobre o material de cunho social e político, de sorte a sustentar seu projeto literário no tripé estético–ético–político, desafio ao qual o escritor se dedica a fim de se lançar para fora do círculo de giz
, conforme a autora afirma:
[...] Não se fazendo refém dos que o aprisionavam, o escritor gaúcho tentou transpor a linha de giz imaginária que insistiam em colocar à sua volta. Quando decidiu assumir um engajamento sem as amarras de partidos políticos, programas literários ou teorias filosóficas, quando optou por escrever romances que contassem histórias humanas, antes mesmo de servirem a um ou outro interesse externo à literatura, deu os primeiros passos para fora do círculo de giz [...]. (p. 60 )
A sugestiva metáfora do círculo de giz
é também aquela que, segundo Beatriz Badim de Campos, paira sobre a recepção crítica da obra de Verissimo, vista sob o rótulo de superficial e pouco inovadora por atender ao gosto do público tendo em vista a grande tiragem que as edições de seus livros alcançaram no Brasil e, também, nos Estados Unidos onde, em 1943, Caminhos Cruzados é traduzido e publicado, causando tumulto entre o público desejoso de adquirir o livro.
É apenas na década de 1970 que a obra de Verissimo começa a ser reavaliada pela crítica brasileira, alçando novos voos para fora desse círculo de giz
interpretativo, o que este estudo faz, aliás, com extremo rigor e profundidade, atento não apenas à fortuna crítica colhida em artigos acadêmicos e livros, mas também em textos e entrevistas publicados em diversos periódicos do Rio de Janeiro, São Paulo e Rio Grande do Sul, incluindo aí os próprios depoimentos e comentários críticos de Verissimo sobre a sua obra.
Rejeitado pela crítica e amado pelos leitores, segue Verissimo a sua caminhada pelos meandros do segundo capítulo do livro – O autor entre o criador e a criatura
–, no qual o foco está na malha teórica que dará sustentação à análise crítica dos dois romances sob dupla perspectiva: a das dobras autorais, inscritas em pares de personagens de alguma forma vinculadas à literatura ou às artes (Noel–Fernanda e Vasco–Clarissa); e a do princípio da saga, assentado sobre o circuito de romances que saem uns dos outros, como a fruta dentro da casca
².
Ganham relevos aí os conceitos de função–autor (Foucault) e de gesto autoral (Agamben), que colocam o autor num entrelugar de invisibilidade–visibilidade – nem dentro nem fora da obra –, além da relação de alteridade entre autor, narrador e personagens à luz da dialogia bakhtiniana.
Chegando ao terceiro capítulo – "Caminhos cruzados e Um lugar ao sol: desdobramentos autorais" – eis que somos agraciados com a análise do corpus. Para isso, a autora nos apresenta uma rede complexa de diálogos orquestrada por Caminhos cruzados e Um lugar ao sol, mas que não se delimita apenas a esses dois romances, o que demonstra o quanto Beatriz Badim é leitora de toda a obra verissiana, indispensável, aliás, para assumir a possibilidade interpretativo-crítica da saga sob esse novo viés. É com clareza que expõe o percurso analítico e as estratégias escolhidas:
Em Caminhos Cruzados e Um Lugar ao Sol, os desdobramentos autorais se dão em muitos sentidos e com intensidades diversas, porém, o nosso foco será naquelas personagens que se aproximam da figura do autor porque possuem a literatura como ofício, – Noel Madeira – ou porque estão ligadas à arte em outras instâncias – Vasco Bruno (desenhista), Fernanda (leitora), Clarissa (escritora amadora/leitora).
Todas essas personagens migram de um romance para o outro e, em alguns casos, para outros romances ainda. Conservam a sua qualidade de seres dotados de independência e vida própria, mas que, de alguma forma, configuram-se como dobras de um autor múltiplo, que precisa delas para levar ao espaço do romance o que pretende colocar em discussão e refletir: os rumos da literatura e o papel do escritor no contexto dos anos de 1930. (p. 100)
A partir daí, somos confrontados, como leitores, com uma arquitetônica dialógica talhada com esmero pela luz de uma fina tessitura analítica que nos faz ver aquilo que, de outra forma, seria inexpresso
. Nessa arquitetônica, aflora um projeto literário encenado ou, melhor ainda, ficcionalizado
e para o qual Verissimo aponta numa entrevista:
O satirista teve seu grande dia de festa em Caminhos Cruzados (1935) romance sem personagens centrais, espécie de minipanorama (se me permitem usar essa expressão autocontraditória) da vida de Porto Alegre em meados da década de 30. Algumas figuras deste livro, escrito um pouco à maneira de reportagem, reaparecem na obra seguinte, Um Lugar ao Sol (1936). Clarissa e seu primo Vasco fogem da sua Jacarecanga, onde o pai da menina fora assassinado por inimigos políticos e o criminoso naturalmente ficara impune. Procuravam ambos fugir da mediocridade e da brutalidade de um burgo interiorano em busca de um mais limpo lugar ao sol. Em Porto Alegre os dois primos reencontram Amaro (personagem de Clarissa) e fazem relações com Fernanda, Noel, personagens de Caminhos Cruzados. (Neves, 1974, p. 41 apud p. 103)
Insinua-se aí o ciclo narrativo da saga que mostra as famílias de personagens em linha direta de descendência umas das outras, instaurando o plano estético sobre o ético e, mais ainda, apontando para outro aspecto extremamente significativo: o da metanarrativa, pois, seja pela via da saga, seja pela das personagens-dobras autorais, a planta baixa é o discurso literário: a narrativa é o chão desses caminhos que se cruzam em busca de seu lugar ao sol, de sua presença na materialidade do espaço imaginário do livro, como diria Blanchot, e que faz do leitor autor.
De um lado, o par Noel e Fernanda e, de outro, aquele formado por Vasco e Clarissa, cada um a seu modo, são aquilo que falam, por meio de diálogos que os expressam e, sutilmente, vão mostrando a voz de Verissimo, em eco, ao colocar em cena o conflito do escritor, dentro e fora do círculo de giz traçado pelo neorrealismo: como conciliar a pragmática social à forma literária, sem abdicar do estético?
A essa pergunta crucial, Caminhos Cruzados e Um Lugar ao Sol respondem com o desenho de um projeto estético exemplar que faz da saga e das dobras autorais seu princípio construtor por meio da interpretação crítica instigante e original que este livro tece e oferece, como dádiva, a todos nós, leitores.
Só mesmo a voz de Verissimo permanece viva a ressoar ao final desta soleira para o livro, que, como diria o defunto-autor Brás Cubas, em si mesmo é tudo
:
Trato de conviver mentalmente com as criaturas da imaginação, como se fossem pessoas vivas. Depois traço um plano, uma coisa assim como esses cenários de cinema. Preciso dum plano escrito quando mais não seja para ter alguma rota da qual me desviar. Porque o Acaso representa um papel muito importante na feitura dum romance. De vez em quando, uma personagem põe-se a dizer e a fazer coisas com as quais o escritor não contava. Isso é um sinal certo de que essa personagem existe. E néscio será o autor que não lhe der plena liberdade de palavra, pensamento e ação. (Verissimo, s/d., apud p. 101)