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Explorando os entremeios: Cultura & comunicação na literatura de João Guimarães Rosa
Explorando os entremeios: Cultura & comunicação na literatura de João Guimarães Rosa
Explorando os entremeios: Cultura & comunicação na literatura de João Guimarães Rosa
E-book426 páginas7 horas

Explorando os entremeios: Cultura & comunicação na literatura de João Guimarães Rosa

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Sobre este e-book

O presente volume interdisciplinar reúne 13 contribuições de autores brasileiros e europeus das áreas da filologia, estudos culturais e comunicação que versam sobre os paradigmas da comunicação e da intersubjetividade na obra narrativa de João Guimarães Rosa. Aproximando-se dos meandros literários de Rosa, responsáveis pela íntima concepção internacionalizante de Brasil na sua obra, o volume enfoca dinâmicas que perpassam extensões linguísticas, ontológicas e culturais da literatura rosiana. Na radicalidade da criação literária de Rosa refletem-se a transgressão linguística e o diálogo entre poética negativa e antropologia. Um fenômeno central que nos preocupa é sua exploração dos entre-espaços, dos limiares - que achamos por bem sintetizar na noção do entremeio. Desse modo, Rosa engendra uma dialética da comunicabilidade do incomunicável, buscando assim criar uma forma de acesso ao inacessível através de seu imaginário linguístico e compreensão da comunicação numa acepção ritualística. Tenciona-se destacar a importância da obra de Rosa como precursora das rupturas epistemológicas no logos ocidental pós-moderno, antecipando formas de pensar a subjetividade e a alteridade que só se sistematizariam mais tarde na filosofia, nos estudos pós-coloniais, estudos de gênero e fenomenologia do estranho.
IdiomaPortuguês
EditoraHucitec
Data de lançamento12 de abr. de 2021
ISBN9786586039764
Explorando os entremeios: Cultura & comunicação na literatura de João Guimarães Rosa

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    Pré-visualização do livro

    Explorando os entremeios - Benjamim Picado

    EXPLORANDO OS ENTREMEIOS

    Cultura e comunicação na literatura de João Guimarães Rosa

    Suzana Vasconcelos de Melo

    Cleusa R. Pinheiro Passos

    Kim Tiveron da Costa

    Sebastian Thies

    (organizadores)

    logo da editora Hucitec

    Copyright © da organização de Suzana Vasconcelos de Melo,

    Cleusa R. Pinheiro Passos, Kim Tiveron da Costa e Sebastian Thies, 2021

    Copyright © Hucitec Editora, 2021

    Depósito Legal efetuado.

    Direção editorial: Mariana Nada

    Assessoria editorial: Mariana Terra

    Preparação de texto: Tiago Ferro

    Paginação: A2

    Imagens: Maureen Bisilliat / Acervo Instituto Moreira Salles

    CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO

    SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

    E96

    Explorando os entremeios : cultura e comunicação na literatura de João Guimarães Rosa / organização Suzana Vasconcelos de Melo ... [et al.]. - 1. ed. - São Paulo : Hucitec, 2020.

    319 p. ; 21 cm.

    Inclui índice

    ISBN 978-65-86039-30-6

    1. Rosa, João Guimarães, 1908-1967- Crítica e interpretação. 2. Literatura brasileira - História e crítica. I. Melo, Suzana Vasconcelos de.

    20-6

    5413

    CDD: 869.09

    CDU: 82.09(81)

    Leandra Felix da Cruz Candido - Bibliotecária - CRB-7/6135

    13/07/2020 15/07/2020

    Todos os direitos desta edição reservados à

    HUCITEC EDITORA.

    Rua Dona Inácia Uchoa, 209

    Vila Mariana – 04110-020 – São Paulo-SP

    55 11 3892-7772 3892-7776

    www.huciteceditora.com.br

    lerereler@huciteceditora.com.br

    Supported by the DAAD (German Academic Exchange Service) with funds from the Federal Ministry of Education and Research (BMBF) in the framework of the thematic network Futures under Construction in the Global South

    Sumário

    Dos textos

    De entremeios: comunicação, cultura e intersubjetividade na obra de João Guimarães Rosa Sebastian Thies e Suzana Vasconcelos de Melo

    I. O universo multifacetado de Grande sertão: veredas

    Os entremeios da críticas

    Palavras tortas Eduardo Vieira Martins

    Antonio Candido e a obra rosiana: da nota de crítica literária ao contexto da literatura latino-americana Marcel Vejmelka

    O sertão e o inconsciente em Grande sertão: veredas Yudith Rosenbaum

    A poética das imagens, gestos e encenações

    Daquilo que (não) podem as imagens: projetos enunciativos e narrativos na transposição mediática de Grande sertão: veredas (série televisiva e novela gráfica)Benjamim Picado

    O que nos ensina o monstro de Rosa: a narrativa como percurso, o pensamento como problema Fernando Resende

    Viver é muito perigoso: o entremeio de Riobaldo e as imagens das jornadas de junho de 2013 Roberto Robalinho

    II. Os desafios da palavra em outras narrativas de Guimarães Rosa

    No rastro das formas: tradução e hermenêutica

    Zwischenspiel, intermezzo, entremeio: parábases em Guimarães Rosa Clara Rowland

    Reflexos do entremeio na tradução: uma análise do conto Famigerado e de suas traduções ao alemão e ao inglês estadunidense Kim Tiveron da Costa

    João Guimarães Rosa sob o signo do labirinto: uma leitura de Dão-Lalalão (O devente) Susana Kampff Lages

    Interditos, ironias e paradoxos

    Sob a forma de obra de arte: o mal e o bem dito em O recado do morro, de Guimarães Rosa Cleusa Rios P. Passos

    O reflexo do paradoxo em O espelho Luiz Tatit

    Seis homens, e uma cobra: estética negativa e sexualização da linguagem no conto Bicho mau, de João Guimarães Rosa Suzana Vasconcelos de Melo

    Sobre os autores

    Dos textos

    Por ocasião do cinquentenário da morte de João Guimarães Rosa no ano de 2017, o Seminário de Romanística da Eberhard Karls Universität Tübingen organizou o congresso internacional Explorando os entremeios: cultura e comunicação na literatura de João Guimarães Rosa. Por um lado, o evento solenizou a fundação da Cátedra Extraordinária de Estudos Brasileiros de Comunicação e Cultura, batizada com o nome do célebre autor mineiro, a qual foi possível graças ao financiamento do DAAD e cuja criação deverá salientar a importância das ciências humanas no intercâmbio científico entre Brasil e Alemanha. Por outro lado, dignifica-se a destacada contribuição de Rosa para a literatura pertencente a outras comunidades internacionais e, particularmente, para o entendimento entre os dois países. Guimarães Rosa está ligado à conflitiva história alemã como nenhum outro autor brasileiro. Juntamente com sua esposa Aracy Moebius de Carvalho, que foi honrada por Israel em 1982 com o título de Justa entre as nações, Guimarães Rosa, a partir de sua função como vice-cônsul no consulado brasileiro em Hamburgo, teve participação ativa no salvamento de Judeus perseguidos pelo Terceiro Reich. Com sua obra prima Grande sertão: veredas, Rosa criou um romance que marcou profundamente a modernidade brasileira e latino-americana, inscrevendo-se, ao mesmo tempo, de modo indelével no diálogo cultural com a literatura alemã por conta da transculturação auto-consciente do mito fáustico. A história de vida do jagunço Riobaldo, o qual, ante a onipresença do mal em um universo em crise, busca salvar-se por meio do poder de sua narração, ainda nos interpela com enorme atualidade.

    A este volume subjaz a convicção de que a obra de Rosa vai além dos estudos literários, sendo de inabalável relevância também para as ciências culturais e da comunicação. A radicalidade poética com a qual Rosa se dedica ao encontro intercultural com o Outro, a força inovadora/ativa de sua linguagem literária e a atitude crítico-reflexiva em relação à antropologia do sujeito moderno fazem de seu pensamento um importante precursor de muitos daqueles debates que marcaram as discussões literárias e a teoria cultural do pós-modernismo que se caracteriza pela sua sensibilidade pós-colonial. O presente livro retoma estas reflexões ao reunir textos oriundos dos estudos literários, culturais, de imagem e mídias, servindo ao propósito de promover um diálogo interdisciplinar. As contribuições apresentadas no referido congresso foram complementadas por artigos de outros especialistas da obra de Guimarães Rosa, tanto da Alemanha quanto do Brasil. Além disso, quatro dos artigos, que compõem este livro, são fruto do intercâmbio acadêmico realizado no âmbito do programa Probral PPP Discomforting territorries. Images, Narratives and Objects in the Global South, financiado em conjunto pelo DAAD e pela CAPES, como também da cooperação relacionada ao network temático do BMBF DAAD Futures under Construction, a quem agradecemos enfaticamente por possibilitar o patrocínio deste livro.

    Compondo ainda esta breve apresentação, há o ensaio mais geral, Explorando os entremeios da obra de Guimarães Rosa: linguagem, comunicação e cultura, de Sebastian Thies e Suzana Vasconcelos de Melo, escrito no intento de retomar o eixo das reflexões norteadoras do fenômeno da comunicação em torno da estética da obra do autor, visto que esse elemento é capaz de reunir diferentes aspectos de sua antro- pologia poética, previamente levantados pelos estudos literários. Assim, visa-se analisar a forma pela qual os problemas da condição fundante da comunicação humana, sua função instauradora de uma comunidade, bem como suas limitações e abismos ocupam um papel fulcral na narrativa de Rosa. A compreensão da comunicação num campo semântico abrangente, que faz jus às manifestações multifacetadas de sua produção, vai além do mero intercâmbio de conhecimento entre o mundo do sertão e a modernidade brasileira, conforme posto em cena no encontro entre Riobaldo e seu destinatário em Grande sertão: veredas (1956). A comunicação se faz aqui ponto de partida para se pensar a escrita de tal romance, oferecendo também um modelo para a problemática da semiose num universo que ameaça dissolver toda e qualquer categorização, sublinhando os desafios epistemológicos que permeiam a exposição do sujeito à estranheza do sertão, em que pese uma reiterada necessidade de tradução desse encontro entre mundos alheios um ao outro.

    Essa situação desafiadora se projeta igualmente no encontro do texto com seus leitores, assim como do texto com diferentes correntes críticas, aspecto que ganha corpo nos ensaios de vários autores aqui publicados e que, de certo modo, é coerente com a divisão do livro em dois subtítulos: "O universo multifacetado de Grande sertão: veredas e Os desafios da palavra em outras narrativas de Guimarães Rosa", encerrando seis ensaios cada um.

    O universo multifacetado de Grande sertão: veredas

    A primeira parte tem início com Os entremeios da crítica, que contém três artigos reveladores de perspectivas variadas na leitura de Rosa. O primeiro é Palavras tortas, de Eduardo Vieira Martins, que, ao considerar Riobaldo como um orador fictício, movido pela finalidade de decifrar e compreender a própria vida, procura distinguir quatro momentos de sua fala ao viajante ouvinte, caracterizados não em função do enredo, mas graças a um jogo entre discurso e narração, gêneros que se alternam no esforço de construir um sentido verossímil para a experiência pregressa. Por meio da análise de passagens específicas do livro, busca-se indagar a hierarquia dos gêneros mobilizados em Grande sertão e sugerir a hipótese de que, ao operar uma mistura de formas, Guimarães Rosa não o faz de maneira aleatória, mas segundo um modelo de grande prestígio na tradição ocidental, as confissões – gênero híbrido que frequentemente conjuga a narração de episódios da vida do orador com o discurso espe- culativo (de ordem religiosa, filosófica ou moral) e com excertos líricos.

    No segundo ensaio, Antonio Candido e a obra rosiana: da nota de crítica literária ao contexto da literatura latino-americana, Marcel Vejmelka mostra a maneira pela qual, nas poucas, mas importantes leituras que Antonio Candido faz da obra de João Guimarães Rosa, este aparece como escritor existencial, que acreditava na vida enquanto algo comunicável por meio da palavra poética. São leituras que fizeram e ainda fazem surgir reflexões centradas no momento em que as dimensões histórico-sociais, metafísicas e estéticas na literatura brasileira se entremeiam e transcendem a linearidade da linguagem comum. Isso fica visível em textos do jovem crítico sobre a estreia literária com Sagarana, de 1946, e no conhecido ensaio O homem dos avessos, de 1956, que analisa na obra-prima rosiana Grande sertão: veredas a passagem do regional para a tradição ocidental enquanto operação altamente artística, que se dá a partir do entrelaçamento indissolúvel das duas dimensões. Também propõe aí a dimensão musical como elemento estruturante da composição narrativa e chave de compreensão desse complexo romance. A dimensão histórica se instaura no ensaio Jagunços Mineiros de Cláudio a Guimarães Rosa (1966), no qual Antonio Candido apresenta um levantamento da presença da jagunçagem enquanto objeto narrativo na literatura brasileira. E surge também no artigo mais conhecido de Antonio Candido em âmbito internacional, Literatura e subdesenvolvimento (1973), situando a totalidade das suas leituras da obra rosiana no contexto da nova narrativa latino-americana dos anos 1950 e 1960.

    "O sertão e o Inconsciente em Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa", escrito por Yudith Rosenbaum, constitui o terceiro escrito e, na busca de sublinhar pontos de vista distintos, se instaura na interface da crítica literária com a psicanálise e procura levantar algumas articulações entre sertão e inconsciente, no romance de Rosa. Inspirando-se em uma tradição crítica que soube aproximar certos aspectos da narrativa com procedimentos e conceituações psicanalíticas, pretende-se compreender, ainda, formas encobertas ou ambíguas nas relações entre Riobaldo e seus antagonistas – o diabo e Hermógenes. Por meio de uma complexa rede de metáforas e espelhamentos, a análise envereda por caminhos simbólicos que revelam novas perspectivas interpretativas. Servindo-se do instrumental crítico de Freud, Lacan e, mais recentemente, Stephen Frosh, é possível ler as hesitações e dificuldades do protagonista, sobretudo no enfrentamento final com o bando inimigo, à luz de sua fantasmática criada pelo jogo ficcional. Espera-se que apontar identificações entre Riobaldo, Hermógenes e a aparição imaginária do diabo traga novos aportes ao estudo do romance.

    A segunda parte dedicada ao romance de Rosa, A poética das imagens, gestos e encenações, apresenta artigos que se apoiam em Rosa para ampliar relações com outros campos do conhecimento. "Daquilo que (não) podem as imagens: projetos enunciativos e narrativos na trans- posição mediática de Grande Sertão: Veredas (série televisiva e novela gráfica)", de Benjamim Picado, propõe um exame dos problemas implicados em algumas adaptações audiovisuais e em narrativa gráfica da obra romanesca do autor, na medida em que exprimem os limites daquilo que certas materialidades mediáticas permitem absorver das operações discursivas e narrativas de algumas dessas obras, centrando-se com maior força no caso de Grande sertão: veredas. O texto procura demonstrar como suas diferentes encarnações no cinema e numa série televisiva expõem o problema da incorporação da voz narrativa em um regime visual que não reflete a radical subjetividade da narração. Para além disso, nota-se que as estratégias de sua representação visual acabam por valorizar a reprodução de um aspecto mais pitoresco da representação da fala e do pensamento do jagunço, intensificando-se mais explicitação desse mundo ficcional do que a peculiaridade de seu projeto enunciativo.

    No artigo seguinte, Fernando Resende escreve O que nos ensina o monstro de Rosa: a narrativa como percurso, o pensamento como problema, partindo de três ideias-conceitos – entremeios, comunicação e literatura – com o objetivo de propor, de uma perspectiva transdiscipli- nar, uma reflexão sobre o sertão de Guimarães Rosa, levando em conta o mundo em que vivemos hoje. Atento à angústia de Riobaldo, o narrador jagunço de Grande sertão: veredas, ao seu gesto e ao tipo de pensamento que nos evoca tanto o seu narrar como o sertão que ele nos faz ver, o intento é considerar o que atravessamos e experimentamos neste nosso contemporâneo como sendo a configuração de um mundo-sertão. Por esse viés, o pensamento tentacular (Haraway, 2016) e a narrativa, sendo ela própria o gesto que articula os saberes e as dúvidas do/no mundo, seriam fundantes para o desafio de nos tornarmos narradores deste e neste mundo-mutirão-de-todos. Toda a reflexão segue acompanhada por fotografias feitas por Maureen Bisilliat, nos anos 1960, a partir da obra de Rosa. Para além de meras ilustrações, essas imagens se tornam um texto a mais, de linguagem distinta, que atravessa e, com isso, reconstrói, o sertão de Rosa. Por esse caminho, a compreensão de um mundo atravessado por imagem, conflito, sujeitos, fatos e discursos torna-se fundamental para se abordar o problema que nos atravessa: acolher o monstro de Rosa, na acepção de Silviano Santiago (2017), como indomesticável e, portanto, apto a nos ajudar a percorrer a geografia exaurida (Rogoff, 2006) na qual hoje nos encontramos. Um caminho crucial para que possamos nos perguntar: não estaria o monstro de Rosa, torto e fora do lugar, a nos provocar a cumprir o que, na verdade, no contemporâneo, seria o nosso grande desafio: narrar e pensar no mundo?

    Fechando essa parte, em "‘Viver é muito perigoso’: o entremeio de Riobaldo e as imagens das jornadas de junho de 2013", Roberto Robalinho busca justapor dois universos a princípio improváveis: a literatura de Guimarães Rosa e os protestos de junho de 2013 no Brasil. A proposta é que a literatura de Rosa sirva como um intercessor, um entremeio para se pensar e ver o mundo e provoque uma virada epistêmica na análise da relação entre política e produção e circulação de imagens durante aqueles protestos. Um conceito fundamental partilhado entre o narrar rosiano e as práticas políticas de junho é o de risco político e subjetivo que as ruas adicionam e, com elas, também o risco das imagens. A ideia de risco vem de um mundo e sujeito que se constituem enquanto se atravessa, enquanto se narra, enfim, enquanto travessia…

    Os desafios da palavra em outras narrativas de Guimarães Rosa

    Este segundo momento, voltado para distintas narrativas de Rosa, começa por No rastro das formas: tradução e hermenêutica, que conta igualmente com três textos, todos eles preocupados com as variações formais da palavra em Guimarães. "Zwischenspiel, intermezzo, entremeio: parábases em Guimarães Rosa, de Clara Rowland, introduz um importante segmento da obra rosiana, partindo de uma carta de 1964 a Curt Meyer-Clason, na qual Rosa pede ao tradutor alemão um tratamento mais ousado na tradução de Cara-de-Bronze", indicando que o conto deverá ser antecedido pelo termo Zwischenspiel, intermezzo. Com base nessa classificação, o ensaio interrogará a reflexão sobre a forma na obra do autor, graças à leitura de diferentes figurações do intervalo e da sobreposição entre ficção e teoria que nelas se inscrevem. São comentadas passagens de O recado do morro, Cara-de-Bronze e Grande sertão: veredas.

    Perseguindo igualmente a questão do ato tradutório, Kim Tiveron da Costa apresenta Reflexos do entremeio na tradução: uma análise do conto Famigerado" (Primeiras estórias) e de suas traduções ao alemão e ao inglês estadunidense", valendo-se, respectivamente, dos trabalhos de Curt Meyer-Clason e de Barba Shelby. Para sustentar a análise, parte-se da assunção de que o conto de Rosa está inscrito no entre-lugar do discurso, ferramenta teórica formulada por Silviano Santiago, na esteira da crítica, em seus estudos sobre a cultura latino-americana. Busca-se, assim, aproximar os conceitos de Santiago à analítica da tradução e a tradução ética com base nos trabalhos de Antoine Berman e Lawrence Venuti, que serão utilizados na análise comparativa de ambas as traduções a fim de demonstrar a maneira pela qual a tradução do texto rosiano implica transgressões na língua de chegada hegemônica, similares às operadas no entre-lugar, considerando o hibridismo da linguagem do sujeito colonial.

    Susana Kampff Lages é responsável por João Guimarães Rosa sob o signo do labirinto: uma leitura de Dão-Lalalão (O devente), ensaio dedicado ao motivo da viagem, aspecto profundamente enraizado na narrativa popular, que aqui será vinculado ao labirinto: figura do acervo imemorial de imagens de todas as culturas, o labirinto enquanto construto assume diferentes formas históricas. Guimarães Rosa trabalha em sua própria escrita o entrelaçamento desse motivo tradicional, suas diferentes formas, com questões tipicamente modernas, entre elas, a do texto como lugar de passagens complexas e de tensão entre mobilidade e imobilidade. A partir da leitura de Dão-Lalalão (O devente)", novela de Corpo de Baile, procura-se identificar uma afinidade estrutural a formas históricas do labirinto, bem como o papel da memória e do rememorar nessa construção.

    Interditos, ironias e paradoxos encerra o livro enfocando distintos procedimentos inventivos em narrativas rosianas. ‘Sob a forma de obra de arte’: o mal e o bem-dito em ‘O recado do morro’, de João Guimarães Rosa, de Cleusa Rios P. Passos, é uma leitura que dá continuidade à apreensão de um processo inventivo que percorre a linguagem de Rosa, configurado graças às relações entre o dito e o dizer e seus desdobramentos em vários traços, dentre eles, o par mal-dito/ bem-dito, vinculado à elaboração do discurso de narradores-personagens. O enfoque recai sobre O recado do morro, pois a novela se compõe por uma ciranda de seres ficcionais, considerados à margem da comunidade e responsáveis por um recado, que vela uma traição a ser evitada e, paralelamente, desvela a constante rosiana de desmanchar clichês, provérbios e formas literárias, dando espaço ao bem-dizer, às misturas compositivas e ao jogo enredo-desenredo. Em síntese, busca-se, como propõe a psicanálise, a ética do bem-dizer, deslocando-se a palavra repetitiva pela palavra reveladora do desejo e de um sentido inesperado para o sujeito.

    Já Luiz Tatit escreve O reflexo do paradoxo em ‘O espelho’, sublinhando que Guimarães Rosa é conhecido por conciliar paradoxos em sua obra literária, como se fossem recursos indispensáveis para se compreender as formas de vida humana e sua necessidade de produção de novos sentidos com a linguagem verbal. No conto O espelho, o enunciador relata sua meticulosa experiência com a imagem refletida, adotando, avant la lettre e com visível ironia, procedimentos típicos da semiótica atual. O autor mineiro delimita o seu campo de presença (campo-de-vista) e opera com triagens (abstrações), tonificações e andamentos afetivos, identidade, alteridade, incrementos e diversos outros critérios empregados na ciência da significação. A coincidência não é proposital, mas demonstra que as preocupações com o sentido levam a caminhos convergentes tanto na teoria como na literatura

    No último ensaio, Seis homens, e uma cobra: estética negativa e sexualização da linguagem no conto ‘Bicho mau’ de João Guimarães Rosa, Suzana Vasconcelos de Melo propõe, a partir análise de tal narrativa, pensar a sexualização do discurso, presente em muitos textos de Rosa, como um elemento constituinte do processo de criação e transgressão da linguagem instaurado por sua literatura. A presença de uma espécie de consciência libidinal da escrita no sentido de Barthes, aliada à ironia e à negatividade operante no texto rosiano, produz de forma lúdica a construção de um sentido textual oculto, que revela por meio da ironia, uma escrita andrógina e pansexual que gera uma ruptura na dualidade epistêmica fundante da metafísica e da cultura ocidentais. Para tanto, será feita uma leitura do referido conto abordandoo a construção de um sentido textual oculto, que revela por meio da ironia, uma alegorização da sociedade patriarcal e um discurso (homo)erótico interdito. Este resulta de um refinado jogo de palavras e enunciados, conduzindo a uma ambiguidade da linguagem em torno dos semas trabalho, morte e erotismo. A forma enigmática emerge de uma escrita polissêmica, fragmentada, do registro oral e regionalista, de silêncios, os quais remetem ao que está subentendido para os personagens, excluindo o leitor, assim como da sublimação do erótico num discurso da natureza. Esse processo dialógico e lúdico pode ser compreendido como uma escrita da (auto)censura no sentido de Neuschäfer – em analogia à compreensão do onírico por Freud. Por fim, no conto, divisa-se a metáfora do negativo e do mal que ganha multifaces de forma especial na imagem do próprio bicho mau – a serpente de língua bifurcada – como personificação da linguagem traiçoeira.

    Os organizadores

    De entremeios: comunicação, cultura e intersubjetividade na obra de João Guimarães Rosa

    [1]

    Sebastian Thies

    Suzana Vasconcelos de Melo

    […] hasta los ríos tenían más de dos orillas.

    (Leite 2016, p. 34)

    Se de uma perspectiva atual nos debruçarmos sobre o cenário cultural dos anos 1950, período em que Guimarães Rosa desenvolve os conceitos fundamentais de sua antropologia poética em suas principais obras, o romance Grande sertão: veredas (1956) e a coletânea de novelas Corpo de Baile (1956), já podemos vislumbrar em esboço as transformações basilares que caracterizam a teoria da comunicação, os estudos culturais e a filosofia da linguagem da segunda metade do século XX. Em 1949, Jacques Lacan evidenciaria a constituição linguística do sujeito em seu ensaio sobre o estádio do espelho, assim como, quatro anos mais tarde, o linguistic turn na filosofia receberia impulso do conceito de jogo de linguagem desenvolvido pelo trabalho de Ludwig Wittgenstein. Enquanto isso, Rosa empreendia sua segunda viagem de pesquisa ao sertão, esta, mais longa que a primeira, assentando as bases de posterior obra-mestra. Em meados dos 1950, John L. Austin desenvolveria a teoria dos atos de fala (Austin, 1965), que seria publicada apenas em 1962. Concomitantemente, o etnólogo Victor Turner iniciara, no final dos anos 1950, suas pesquisas sobre a cultura ritual na África, estabelecendo em 1964 os fundamentos de uma teoria da liminaridade com o estudo "Betwixt and Between: the liminal period in rites of passage" (Turner, 1967). No ano da morte de Rosa, em 1967, o pós-estruturalismo recebe seu impulso decisivo na obra de Jacques Derrida (1967a, [1967b]2014), através da qual a teoria dos signos de Saussure sofre um abalo em favor da différance, tendo apenas vintes anos mais tarde surgido o debate em torno do "Writing culture, impulsionado por James Clifford e George Marcus em 1986, cujo questionamento da produção de conhecimento sobre o outro e o estranho já se encontra prefigurado no universo narrativo de Rosa. Ao pensarmos a obra narrativa de Rosa a partir dessa genealogia temporalmente invertida do pensamento ocidental do pós-guerra no âmbito da comunicação e da cultura, temos dois objetivos em mente: em primeiro lugar, pretendemos situar sua obra para além de um olhar modernista, segundo o qual o universo sertanejo, com suas temporalidades e formas sociais peculiares, representa o lugar do atraso, que, obstinadamente, resiste às dinâmicas da modernização do Brasil no início do século XX. Longe disso, a aproximação do sertão na obra de Rosa se assemelha mais àquela das místicas periferias da nova narrativa ibero-americana" – o pampa na obra de Jorge Luis Borges, a Comala em Pedro Páramo de Juan Rulfo, a Macondo em Cem anos de solidão, de García Márquez, ou o Peru amazônico em A casa verde, de Mario Vargas Llosa. Todas essas periferias constituem lugares, a partir dos quais é possível questionar a pretensa universalidade da hegemonia cultural e científica ocidentais. Em segundo lugar, um olhar invertido rompe com a ideia de que a literatura latino-americana deve ser estudada a partir das ressonâncias de formação teórica eurocêntrica. Contrariando essa tal visão da história da literatura, a obra de Rosa antecipa as inovações do pensamento teórico pós-moderno por meio justamente da radicalidade de sua criação literária e, em seu refletir sobre a confluência entre a poetologia, a antropologia e a comunicação, pois a criatividade narrativa oferece ao pensamento radical um campo de experimentação que se expande, por fim, para além do literário, abordando condições fundamentais da intersubjetividade humana. Para inscrever essa perspectiva no presente volume é necessário focar em comunicação e intersubjetividade como dois paradigmas fundamentais que marcaram a obra de Guimarães Rosa desde seu princípio, e que, com o passar do tempo, avultam como uma ideia complexa que pode ser definida, afirma Davi Arrigucci Jr. (1994), como antropologia poética. Por meio de um conceito de comunicação abrangente pode-se perscrutar não só a torrente de pesquisas filológicas sobre a reflexividade linguística de Rosa, mas também seu exame crítico da pesquisa etnológica do sertão, que mostra sua radicalidade no diálogo interdisciplinar com a antropologia. A comunicação como ponto de partida para se pensar a escrita de Rosa oferece ainda um modelo para a compreensão da função da semiose e da criação artística num universo que ameaça dissolver toda e qualquer categorização. Em relação aos processos de recepção, o conceito de comunicação possibilita uma melhor compreensão dos desafios epistemológicos que permeiam a exposição do sujeito à estranheza do sertão.. A necessidade de compreensão da natureza desse encontro e sua tradução em sentido amplo, constitui a premissa que se reflete na organização deste volume interdisciplinar. O desafio do encontro com a alteridade dá-se, igualmente, na relação do texto com seus leitores, assim como do texto com a crítica. Um conceito lato de comunicação fornece, afinal, as bases para a compreensão da dialogicidade e polifonia na narração, da experimentação com a linguagem literária como recurso estético e das diversas passagens entre narrativa literária e processo composicional imagético.

    Propomos uma compreensão da comunicação como processo que não se limita à transmissão de informações, mas sim, no sentido de Dewey, põe em evidência sua importância para a constituição de uma comunidade. Assim, visamos analisar a forma como os problemas da condição fundante da comunicação humana, sua função instauradora de uma comunidade, bem como suas limitações e abismos, ocupam um papel central na narrativa de Rosa. Do mesmo modo, a representação do sujeito, da comunidade e da sociedade, em suas aparições mediadas pela crise, podem ser analisadas por meio de uma compreensão ritual da comunicação, a qual, segundo autores como John Dewey, e na sua esteira James Carey, depreende-se da etimologia comum, comunidade, comunhão:

    There is more than a verbal tie between the words common, community, and communication. Men live in a community in virtue of the things which they have in common; and communication is the way in which they come to possess things in common. What they must have in common […] are aims, beliefs, aspirations, knowledge — a common understanding — like-mindedness as sociologists say. Such things cannot be passed physically from one to another like bricks; they cannot be shared as persons would share a pie by dividing it into physical pieces. [...] Consensus demands communication. (Dewey, 1916, pp. 5-6)

    Carey (1988) retoma a noção de comunicação de Dewey, ressignificando-a como "ritual view of communication, e adensando-a da perspectiva de uma história crítica da comunicação na modernidade. Carey opõe duas compreensões elementares de comunicação: transmission view of communication e ritual view of communication". Segundo o autor, a compreensão dominante na teoria, da comunicação como transmissão, está estritamente ligada à expansão europeia nas Américas, e, com isso, associada ao controle sobre o espaço da conquista. Por isso, essa noção de comunicação carrega consigo os imaginários da descoberta, melhor dizendo, da colonização do continente por meio da tecnologia comunicacional moderna, colocando a comunicação no contexto funcional da propagação da cultura ocidental e da religiosidade.[2] A poetologia crítica rosiana, no entanto, aproxima-se muito mais da segunda definição proposta por Carey, ou seja, da compreensão ritual da comunicação. Nesse contexto, ritualização deve, inicialmente, ser entendida do ponto de vista da pragmática e da perfomatividade do ato comunicacional, como práxis de compartilhamento ("sharing") de conteúdos simbólicos, valores e crenças, com o intuito de alcançar uma experiência comunitária. Carey ressalta o poder da comunicação de criar realidade, de produzir natureza, mapeando o espaço que conhecemos e no qual nos movemos como uma projeção da linguagem e dos valores compartilhados por uma dada comunidade:

    This projection of community ideals and their embodiment in material form-dance, plays, architecture, news stories, strings of speech-creates an artificial though nonetheless real symbolic order that operates to provide not information but confirmation, not to alter attitudes or change minds but to represent an underlying order of things, not to perform functions but to manifest an ongoing and fragile social process. (Carey, idem, p. 22)

    Pode-se perceber que a obra de Rosa evoca uma compreensão análoga da comunicação, cujo fim último é produzir comunhão, participação no mundo do outro, gestada a partir do ritual instituído pela palavra, no exercício de uma função quase religiosa.[3] Uma abordagem desta perspectiva revela como a centralidade ocupada na obra rosiana pelo encontro, pela troca, pela observação mútua e pela luta pela atribuição do significado são responsáveis pelo surgimento daqueles entre-espaços dos quais trataremos neste volume.

    Explorando os entremeios

    Como ponto de partida da análise do paradigma da comunicação na obra de Rosa nos valemos do conceito de entremeio, que o autor utiliza no título da novela Entremeio com o vaqueiro Mariano, do volume póstumo Estas estórias.[4] O termo entremeio no título deixa margem para a especulação do leitor, dado que sua utilização, diferentemente, por exemplo, do "entremedio em espanhol, é menos frequente em português. Antes de tudo, parece nomear o espaço e o tempo do encontro intersubjetivo, mas no geral, este poderia referir-se à determinada forma social ou um gênero de discurso da pesquisa antropológica. Vale ainda citar o conceito de retrato entrevista que José Carlos Leite (2016) toma emprestado de Guimarães Rosa para simbolizar as trocas culturais entre um homem da cidade, representando o intelectual ocidental, e um vaqueiro pantaneiro, representante do acervo de saberes orais anteriores à modernidade. Para Leite, o texto constitui, assim, um tratado de aprendizagem: Más que un elogio al mestizaje de saberes, hay encuentros de universos culturales asimétricos, puede verse a Entremeios como un ‘tratado del aprendizaje’. (Leite, idem, p. 52).[5] Contudo, partindo do prisma que aqui propomos para contextualizar a obra de Rosa, acrescentamos que tal termo pode ser compreendido como uma antecipação de conceitos que permeiam os debates na pós-modernidade, tais como entrelugar (dazwischen) e intersubjetividade na fenomenologia do estranho em Bernhard Waldenfels (1990, 1997), liminaridade, que remonta à teoria do ritual de Victor Turner (1967), ou também nas abordagens teóricas pós-coloniais do third space e hibridismo de Homi Bhabha (1998). A concepção de entremeio" aqui postulada evoca a ideia de uma semiose e uma

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