Encontre milhões de e-books, audiobooks e muito mais com um período de teste gratuito

Apenas $11.99/mês após o término do seu período de teste gratuito. Cancele a qualquer momento.

Clarice Lispector
Clarice Lispector
Clarice Lispector
E-book659 páginas3 horas

Clarice Lispector

Nota: 0 de 5 estrelas

()

Ler a amostra

Sobre este e-book

Thiago Cavalcante Jeronimo consegue manter um fio lógico de exposição em Clarice Lispector: um novo testamento - ancorado no respeito à matéria documental fornecida pela própria produção jornalística e ficcional da escritora. E empreende uma rigorosa seleção de textos extraída da substanciosa produção ficcional e da correspondente fortuna crítica, com respaldo de bagagem teórica adequada às questões que a matéria propõe e que o crítico problematiza. Talvez a maior ‘marca’ do perfil de Thiago, além da experiência acumulada e aqui renovada de leitor de textos de Clarice Lispector, seja sua familiaridade com os textos bíblicos, que lhe permite se movimentar com a desenvoltura cuidadosa que lhe assegura os alinhavos bem-sucedidos das inter-relações, que funcionam como o sustentáculo da construção dos diálogos que cria entre literatura e religião. Fica pois, neste livro, uma nova proposta de leitura, calcada não em visão sectária de doutrinas cristalizadas, mas no acompanhamento competente e cuidadoso de uma literatura construída a partir da noção de movimento, de questionamentos e de sincretismo cultural, em sintonia com uma visão plural e humanizada de respeito ao outro. Cabe ao leitor descobrir, a cada lance, ou em cada capítulo, como acontece cada uma dessas investidas críticas que esse caminho do diálogo nos oferece. Nádia Battella Gotlib, Universidade de São Paulo
IdiomaPortuguês
Data de lançamento2 de fev. de 2023
Clarice Lispector

Relacionado a Clarice Lispector

Ebooks relacionados

Crítica Literária para você

Visualizar mais

Artigos relacionados

Avaliações de Clarice Lispector

Nota: 0 de 5 estrelas
0 notas

0 avaliação0 avaliação

O que você achou?

Toque para dar uma nota

A avaliação deve ter pelo menos 10 palavras

    Pré-visualização do livro

    Clarice Lispector - Thiago Cavalcante Jeronimo

    Prefácio: Diálogos

    Nádia Battella Gotlib

    Se as leituras da obra de Clarice Lispector atingem números extraordinários, em quantidade e qualidade, ao longo desses quase oitenta anos, desde os primeiros textos que surgiram a partir do lançamento do primeiro romance, Perto do coração selvagem, em dezembro de 1943, a excepcionalidade do potencial estético da obra garante surpreendente continuidade na produção da sua fortuna crítica.

    Mas nem sempre basta a qualidade da literatura em questão. É preciso que haja conjunção de alguns fatores para que, nessa história de leitura, o novo capítulo se afirme como mais um passo decisivo de decifração técnica da obra, com atenção voltada para procedimentos narrativos ali postos em prática, resultando em exercício de interpretação e crítica.

    É o que constato na leitura empreendida por Thiago Cavalcante Jeronimo, que agora segue sob a forma de livro intitulado Clarice Lispector: um novo testamento, trabalho exegético que se desenvolve centrado num promissor diálogo entre literatura e religião.

    O autor desse livro mostra singular familiaridade com as produções literária e jornalística da escritora Clarice Lispector. E há razões para a maturidade do olhar com que visita textos cuidadosamente selecionados para construir a argumentação. Sua história como pesquisador registra sobre o assunto – vida e obra de Clarice Lispector – a publicação de vários artigos e discussões com colegas em encontros e congressos acadêmicos. Registra também a edição do livro intitulado Clarice Lispector apesar de: romance de formação e recursos discursivos, lançado em São Paulo pela editora Todas as Musas em 2020, com resultados expostos na sua dissertação de mestrado defendida na Universidade Presbiteriana Mackenzie, pesquisa em que o romance de Clarice Lispector, Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, lançado em 1969, ressurge em análise arguta a partir de núcleos de interesse variados.

    De fato, na sua primeira publicação, Thiago Jeronimo se detém em textos críticos sobre a obra da escritora e também na consideração das epígrafes por ela selecionadas. Adentra questões de estrutura narrativa, em considerações que distribui criativamente em marcos sazonais, de primavera a primavera, valendo-se de lances criativos, como investigador arguto, ao detectar, em cada uma dessas estações, cenas e procedimentos específicos, núcleos fundamentais de construção, a exemplo da antológica cena do banho de mar, uma das mais deslumbrantes de todo o romance.

    O fio central dessa leitura anterior, que chegou a público em livro, toma por base a característica do ‘romance de formação’, que garante uma posição privilegiada da escritora tanto como produtora de literatura de ‘renovação’, por conduzir a proposta a partir do percurso formador de uma ‘vida de mulher’, quanto como autora de literatura ‘revolucionária’, por executar tal proposta enquanto – e cito o autor - morte dos estereótipos, conceitos sociais e pessoais de sua protagonista. Dessa forma, o pesquisador abre amplas perspectivas críticas, já que considera Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres como um ponto de cruzamento entre heroínas que o antecederam e o sucederam na ampla gama de personagens criadas pela romancista Clarice.

    Ora, natural que, depois de tal experiência, o autor carregue um volume sólido de leituras e reflexões para a etapa subsequente de estudos. Não só aproveita os resultados, que lhe deixam à vontade com a matéria que constitui seu objeto, mas vai além: assume perspectivas de abordagem que lhe garantem renovação no campo da crítica. É o que acontece com o livro que ora vem a público, intitulado Clarice Lispector: Um novo Testamento, publicação parcial e adaptada de sua tese de doutorado intitulada Judaísmo e Cristianismo em Elisa Lispector e em Clarice Lispector: testemunho e vestígio, defendida em 2020 pelo Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Presbiteriana Mackenzie.

    No entanto, para esta publicação em livro, Thiago Jeronimo fez uma opção: centrou-se nas questões referentes a Clarice Lispector, reservando, talvez para uma futura edição, a parte referente a Elisa Lispector.

    A partir de uma apresentação da produção das duas irmãs, Elisa e Clarice, o autor identifica as respectivas especificidades: o pendor para o relato de uma história familiar pela irmã mais velha, Elisa, e o pendor para o registro ficcional pela irmã caçula, Clarice. Pois bem. Pautado na relação da diferença, o autor se detém na segunda, a escritora cuja obra teve repercussão imensa, enquanto a irmã mais velha teve momento de boa divulgação e prestígio, mas acabou no quase anonimato.

    As diferenças entre as duas escritoras são patentes. Elisa, além da ficção, dedicou-se a cultivar a tradição e prática da religião judaica. Clarice manteve afastamento da religião e mergulhou em incursões complexas em relação à tradição, com manifestações de rejeição e, ao mesmo tempo, com menções portadoras de núcleos de sentido consideradas pelo autor como reconfiguradores das culturas judaica, helênica e cristã.

    Eis o núcleo central da reflexão do autor Thiago: o reiterado diálogo entre tais esferas de pensamento e de posturas diante da vida e da arte, que permeiam história de vida e de obra de Clarice Lispector.

    Ao acompanhar momentos da produção ficcional e incursões pelos depoimentos da autora em crônicas e em entrevistas, evita posições sectárias, levado por uma argumentação lúcida que constata a complexidade das questões que envolvem o diálogo entre literatura e religião.

    Dessa forma consegue manter um fio lógico de exposição ancorado no respeito à matéria documental fornecida pela própria produção jornalística e ficcional da escritora. E empreende uma rigorosa seleção de textos extraída da substanciosa produção ficcional e da correspondente fortuna crítica, com respaldo de bagagem teórica adequada às questões que a matéria propõe e que o crítico problematiza.

    Impossível deixar de abordar, ainda que com cuidado extremo, perguntas das mais complexas, como a que talvez seja a mais difícil de responder: o que é, afinal, ser judeu? Se as respostas são várias, dependendo do ponto de referência que se adote para adentrar o caldo cultural que a pergunta suscita – étnico, religioso, político, histórico, por exemplo –, convém constatar que o pesquisador busca respaldo em estudiosos de longa experiência no assunto, que servem de balizamento para não se perder em meio ao cipoal de hipóteses que foram se acumulando ao longo dos séculos.

    A recorrência a autores renomados sobre o assunto lhe possibilita atitudes de adesão e de rejeição a modos de se ler a obra de Clarice por estudiosos que o antecederam. E dados de informação apreendidos em leituras de teóricos da cultura judaica, cotejados com pronunciamentos da pessoa Clarice e procedimentos da escritora Clarice conduzem o investigador a tecer sua rede reflexiva sem afrouxar linhas nem forçar amarras.

    É o que lhe permite, a certa altura de sua reflexão, acompanhar movimentos de adesão e de rejeição da escritora a vertentes da cultura judaica, optando por não concordar, por exemplo, com filiação da escritora ao pensamento do filósofo Spinoza, tal como defendido por parte da crítica. Nem optar pela linha cristã pautada no conceito de transcendência do divino. Eis talvez o núcleo mais importante que ‘suporta’ o conjunto de sua reflexão: a apropriação que Clarice Lispector fez da esfera judaico-cristã, deslocando-a de sua espiritualidade transcendental, dogmática, mística e readequando-a ao natural do humano viver.

    E nesse natural do humano viver, em que se desvencilha de dogmas, permanece a coerência da escritora em seu constante movimento de procura. Rejeita rótulos. Eis outro importante ponto de ancoragem dessa reflexão, ao confirmar dados já expostos pela crítica – a não adesão da escritora a feminismos, tal como não adere a judaísmo e cristianismo, em nome de uma liberdade de ação criadora.

    Daí surgem questões instigantes, que o leitor encontrará ao longo desse livro.

    Como ‘enquadrar’ ou não Clarice, como pessoa e escritora, nos vários parâmetros do que se entende por judaísmo? Para isso o autor procura vencer recorrências várias, de modo exaustivo, não só junto a estudiosos que se detiveram nessa reflexão, como em cada um dos críticos que se dispuseram a examinar a questão do ‘judaísmo’ na obra da escritora.

    E como considerar o papel da feminista Hélène Cixous – aliás, grande divulgadora de Clarice na Europa e nos Estados Unidos – em leituras que faz de Clarice, reinventando uma Clarice segundo a própria escritora Hélène Cixous, ou seja, segundo H.C.? O autor nos coloca diante desse modo de se ‘servir’ dos textos de Clarice que merecem uma abordagem sob o prisma de ‘recriação literária’, a partir do texto de Clarice como fonte de inspiração.

    Com tal retaguarda teórica, a indagação tem condição de percorrer, com segurança e de modo lúcido e sensível, textos de Clarice Lispector selecionados ao longo da obra. O leitor terá assim a oportunidade de se deparar com os personagens judeus que aparecem como parte da história dos malditos registrada no volume Onde estivestes de noite, com ilações fortes contra a hipocrisia religiosa e moral e como produto de um sincretismo cultural, mais que propriamente religioso. E a partir de simples menções, como o nome de Macabéa, em A hora da estrela, desvenda-se um leque de questões ligadas à história da cultura hebraica. Ou quando se analisa a personagem judia Clarissa, do conto A mosca no mel (ou a inveja de si), este, infelizmente, não inserido no volume Todos os contos, de Clarice Lispector, recentemente publicado.

    É o que acontece também quando encontramos no livro o diálogo com textos bíblicos, a partir de traços do que o autor chama de confluência de temas religiosos, distribuídos em credos díspares, judaico, cristão, espírita, espiritualista, por exemplo, evidência do pendor da escritora mais para uma experiência mística do que para adesão a qualquer seita.

    Convém, contudo, considerar que, ao apresentar ao leitor personagens judeus ou não judeus, Thiago Jeronimo atenta aos traços encontrados na construção de personagens como Virgínia (em O lustre), Lóri (em Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres), Emanuel/Jesus (no conto Via crucis); ao fazer isso, o crítico foge de simples compilação, ou de um mero desfile de opções, na medida em que cada dado de informação nos surge mediante seu modo de inserção na malha narrativa, fisgada pela leitura analítica e interpretativa.

    Dessa forma a leitura se firma em alicerces sólidos da ordem retórica de construção: ironia e paródia, por exemplo. Tais recursos são tão importantes, aliás, para a construção da argumentação quanto para a matéria documental contida em depoimentos de pessoas que conviveram com Clarice, como Nélida Piñon e Olga Borelli. E tão importantes também quanto os depoimentos da própria Clarice, pois relevam a presença importante ora de um Deus humanizado, ora do que a escritora chama de Exu, que já é meu amigo do peito...

    Talvez a maior ‘marca’ do perfil de Thiago, além da experiência acumulada e aqui renovada de leitor de textos de Clarice Lispector, seja sua familiaridade com os textos bíblicos, que lhe permite se movimentar com a desenvoltura cuidadosa que lhe assegura os alinhavos bem-sucedidos das inter-relações, que funcionam como o sustentáculo da construção dos diálogos que cria entre literatura e religião.

    Retomo apenas um exemplo, para não criar spoiler para o leitor desse livro. Seria mera coincidência - eu pergunto - os catorze textos que organizam A via crucis do corpo corresponderem, por exemplo, ao número catorze das gerações detectadas pelo autor do livro – que eu cito: "de Abraão até Davi, quatorze gerações; de Davi até o exílio na Babilônia, quatorze gerações; e do exílio na Babilônia até Cristo, quatorze gerações", contidas no Evangelho de Mateus?

    Se algumas ocorrências vibram como hipóteses, a instigarem o leitor, outras são delineadas de tal forma que se transformam em evidências, a redimensionarem um olhar novo do leitor. Não há como ler ou reler, por exemplo, os contos de A via crucis do corpo sem remeter ao diálogo com os símbolos do cristianismo como Maria, José, Jesus, entre outros, que povoam o volume.

    Fica pois, neste livro, uma nova proposta de leitura, calcada não em visão sectária de doutrinas cristalizadas, mas no acompanhamento competente e cuidadoso de uma literatura construída a partir da noção de movimento, de questionamentos e de sincretismo cultural, em sintonia com uma visão plural e humanizada de respeito ao outro.

    Cabe ao leitor descobrir, a cada lance, ou em cada capítulo, como acontece cada uma dessas investidas críticas que esse caminho do diálogo nos oferece.

    Nádia Battella Gotlib

    Introdução: Elisa Lispector e Clarice Lispector: testemunho e vestígio

    ¹

    Não que eu tivesse a preocupação de reconstruir a árvore genealógica da família. Para quem pertence a um povo que raramente chega a enterrar num mesmo solo os seus mortos de duas ou três gerações, em consequência dos surtos de perseguições e das migrações que fatalmente se impõem, mais fácil do que situar as raízes dos antepassados ainda que próximos, é invocar o testemunho dos Reis e Profetas Bíblicos, seus ancestrais.

    Elisa Lispector,

    Retratos antigos: esboços a serem ampliados.²

    Um tapete é feito de tantos fios

    que não posso me resignar a seguir um fio só.

    Clarice Lispector,

    A descoberta do mundo.³

    Este livro é uma adaptação da tese de doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Presbiteriana Mackenzie em 2020, ano do primeiro centenário de nascimento de Clarice Lispector, marcado, ainda, pelo avanço da pandemia da Covid-19. Intitulada Judaísmo e Cristianismo em Elisa Lispector e em Clarice Lispector: testemunho e vestígio, a investigação, deferida com distinção e louvor, teve como orientadora Aurora Gedra Ruiz Alvarez e coorientador Carlos Mendes de Sousa (Universidade do Minho, Portugal). A banca examinadora foi composta por Helena Bonito Couto Pereira, João Leonel Ferreira (membros internos da UPM), Nádia Battella Gotlib e Ricardo Iannace (membros externos – Universidade de São Paulo, USP). Além da distinção honrosa recebida, a tese foi indicada, em 2021, para dois importantes prêmios nacionais: Prêmio ABRALIC de Teses e Prêmio CAPES de Teses.

    O subtítulo que nomeia esta introdução, a apontar para testemunho e vestígio, considera a maneira díspar com que as irmãs escritoras Elisa Lispector e Clarice Lispector tratam as experiências religiosas de seus familiares e próprias. De maneira sucinta, esta introdução servirá para referenciar esse posicionamento contrastivo entre as escritoras, ao passo que, diferentemente do que foi apresentado em extensão na tese de doutorado, os capítulos subsequentes à introdução privilegiarão especialmente a obra e a vida de Clarice Lispector para aprofundamento analítico. Aos interessados pela longa e importante obra de Elisa Lispector, infelizmente pouco conhecida e divulgada nas nossas letras, indica-se a leitura da tese supracitada, bem como os textos de referência que na investigação sinalizada foram considerados.

    A entrevista que Clarice Lispector concedeu em fevereiro de 1977 ao repórter Julio Lerner, da TV Cultura, considerada por muitos anos como o único registro audiovisual da escritora⁴, marca um retrato repleto de ambiguidades e gerador de mitos propalados pelos críticos, intérpretes e leitores da autora de A maçã no escuro, além de corporificar a emblemática Clarice ao vivo e em cores, fornece, também, indícios de escritas no seio da família Lispector que não se vinculam exclusivamente a ela.

    Já no primeiro bloco, Clarice Lispector revela ao entrevistador que não é a única escritora em sua família. Sua mãe e irmãs também escreviam.

    Julio Lerner: Há alguém na família Lispector que chegou a escrever alguma coisa?

    Clarice Lispector: Eu soube, ultimamente, para minha enorme surpresa, que minha mãe escrevia. Não publicava, mas escrevia. Eu tenho uma irmã, Elisa Lispector, que escreve romances. E tenho uma outra irmã, chamada Tania Kaufmann, que escreve livros técnicos.

    A mãe anotava poesia em seus diários e as irmãs escreviam romances e contos. À época da entrevista, Tania produzia livros técnicos e só escreveria um único livro de contos três décadas depois, isto é, em 2003 – O instante da descoberta –, mas não grafa o sobrenome Lispector em sua produção; opta pelo sobrenome do seu marido, Kaufmann.

    Indubitavelmente, o sobrenome Lispector, ao leitor literário, remete exclusivamente à sólida e instigante produção de Clarice. É a mais nova das três irmãs que logrou uma fortuna literária de prestígio, seja nas livrarias nacionais ou internacionais, nas universidades ou nos colégios, nos jornais ou redes sociais. A obra de Clarice Lispector, fragmentada ou não, passeia pelos meios comunicativos, quer seja por aqueles que leem suas obras por gosto e fascínio ou por outros que a leem por obrigação acadêmica. A hora da estrela (1977), último livro lançado em vida pela autora, figurou por muitos anos como obra exigida nos principais vestibulares nacionais.

    É notória a importância que o nome de Clarice representa no cenário literário brasileiro. A escritora surge em 1943, rompendo, já em seu romance de estreia, Perto do coração selvagem, com o veio predominante da literatura cristalizada que se acoplava à produção ficcional do país àquela época.

    Vale marcar que o sobrenome Lispector causa estranheza em alguns críticos, desde a publicação do primeiro romance da autora.⁷ Ao ser indagada por Julio Lerner acerca do sobrenome de sua família, Lispector, Clarice esclarece:

    É um nome latino, não é? Eu perguntei a meu pai desde quando havia Lispector na Ucrânia. Ele disse que há gerações e gerações. Eu suponho que o nome foi rolando, rolando, rolando, perdendo algumas sílabas e foi formando outra coisa que parece... Lis e peito, em latim.

    O crítico Sérgio Milliet, segundo lembra a própria Clarice na entrevista, considerou o nome de família da autora como [um] nome desagradável, certamente um pseudônimo. No entanto, o que surpreende a crítica não se resume ao sobrenome diferente da jovem escritora, às origens que ele alude, mas a junção de forma e de conteúdo das narrativas claricianas, conjuntura que acentuou um desvio criador à prosa brasileira, um novo tipo de expressão literária.⁹ No texto No começo era de fato o verbo, Antonio Candido sinaliza que no texto de Clarice antes de ser coisa narrada, a narrativa é forma que narra.¹⁰

    Se Clarice Lispector abandona a retórica convencional e segura para entrelaçar a emoção a uma intuição fulgurante, em vez do enredo com começo, meio e fim, ela elege o inacabamento, em lugar da tradição, o dilaceramento e a busca¹¹, Elisa Lispector, dissonante, ao longo dos quase quarenta anos de produção ficcional, recupera a tradição espiritual dos seus antepassados, dando-lhes voz e ação em suas narrativas.

    Assim como a irmã mais nova, Elisa publica seu primeiro romance, Além da fronteira, na década de 1940, isto é, em 1945, pouco mais de um ano após a publicação de Perto do coração selvagem. Contudo, em novembro/dezembro de 1938, segundo investigação de Jeferson Alves Masson, ampliada por Teresa Montero, a revista Esfera publicou o conto Tédio, o primeiro texto publicado por Elisa de que se tem notícia.¹² O romance inaugural de Elisa, uniforme com sua vasta produção, é marcado pelo teor filosófico, estruturado em torno da indagação do sentido da vida. As questões pontuadas pelo Existencialismo são uma constante na produção da autora.

    Não se trata de uma narrativa voltada para a pregação de valores do neoconservadorismo, o qual privilegia o culto das virtudes, mas de uma escrita reveladora de impasses e da insegurança de pessoas sem esperanças diante de perdas, exílios, depressões [...]. A pergunta incansavelmente feita nos textos elisianos é: qual o sentido da vida humana neste específico tempo histórico em que vivemos?¹³

    Dessa forma, muitas de suas personagens se acomodam com a condição de suas vivências, relegando uma possível superação do vivenciado ao conformismo imposto, quer pelas relações sociais, quer por características do período datado de suas produções, acentuadas, sobretudo, pela assimilação da lógica do patriarcado e da religiosidade.

    Berta Waldman, ao analisar aproximações e distanciamentos entre as produções de ambas as escritoras, pontua que a principal diferença concernente às ficcionistas é que

    Elisa Lispector trabalha com a narrativa linear e onisciente (apesar das quebras na sequência do romance), em

    Está gostando da amostra?
    Página 1 de 1