Mona Lisa no Titanic: A terra do meme
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Mona Lisa no Titanic - Kettilen Lopes
Apresentação
Cansei. Após consecutivos e fortes rompimentos, decidi escrever. Decidi escrever não somente pelo embate pessoal que tudo aquilo me causou, mas porque enquanto a irrealidade era posta em prática, havia um desmanche das oportunidades que me possibilitaram chegar até aqui. Decidi escrever, sobretudo, para quem sabe um dia poder voltar a falar do que interessa.
Prefácio
Certa vez, eu conversava com um colega uruguaio sobre o fato do Uruguai não ter feriados religiosos, apenas cívicos. Ele, um estudioso do Brasil, me explicou que lá a ideia de Estado laico era muito mais forte do que aqui. É claro que no dia 25 de dezembro muitas famílias comemoram o Natal conforme o cristianismo, mas o feriado oficial se chama Dia da Família. Em certo ponto da conversa, senti confiança e perguntei: E você, acredita em Deus? Ele respondeu: Eu acredito no Estado.
Essa resposta me pegou de surpresa e, de bate-pronto, perguntei o porquê. Foi o colega, então, que ganhou confiança e me contou a sua história particular. Nascido e criado em um bairro pobre e periférico de Montevidéu, ele aproveitou as oportunidades institucionais e educacionais oferecidas pelo Estado para se tornar o principal especialista em política externa brasileira daquele país vizinho.
Essa conversa se tornou uma ilustração real para mim. Embora cada pessoa possa ter suas próprias convicções pessoais e subjetivas a respeito da espiritualidade, o conhecimento científico acumulado sobre as transformações das sociedades nos dão segurança suficiente para afirmar que a intervenção do Estado é fundamental para o desenvolvimento das pessoas e sociedades. O problema é que, para muitos de nós, não basta receber dados, ouvir palestras, ler discursos ou livros simplesmente porque não se acredita no Estado. E isso é algo normal, pois é comum que a fé, a crença, preceda a razão e a ciência como uma forma de nos guiarmos neste mundo tão difícil e incerto. É por isso que o uso que meu colega fez do termo acredito
, como sinônimo de fé
, é o que fez a diferença para mim.
No semestre seguinte a este episódio, eu recebi da Kettilen o primeiro rascunho de seu livro. Em princípio, tomei o manuscrito intrigado, pois, afinal, o que teria uma jovem universitária a dizer, em tom autobiográfico, sobre o Estado? E foi com essa curiosidade que abri o texto e o li rapidamente. O texto é uma reflexão de quem ganhou a consciência de que a solidariedade impessoal, instrumentalizada pelo Estado, é uma ferramenta poderosíssima para ajudar as pessoas a desenvolverem o seu potencial. Não é uma reflexão abstrata. Ela parte da sua experiência concreta, das suas origens familiares e ancestrais, dos seus relacionamentos pessoais e íntimos, até a chegada à universidade pública do outro lado do país. Contudo o livro deixa claro que foi apenas com a Universidade que ela conseguiu as chaves para interpretar sua trajetória e entender, segundo seus termos, de onde ela veio e como ela tinha ido parar ali, no campus I da UFPB.
Isso não é pouca coisa, achar um rumo para a própria vida é o que leva muitas pessoas a buscarem a espiritualidade. É o que faz muitas pessoas quererem descobrir o propósito de Deus para suas vidas e terem a segurança de que Ele está no comando.
Por outras vias, o que Kettilen traz em seu livro – com linguagem e estilo que, muitas vezes, lembram uma conversa informal em WhatsApp, um texto num blog, um vídeo no Instagram ou um tweet de desabafo enigmático – é o olhar daquelas pessoas que, como escreveu o poeta espanhol Antonio Machado, percebem que não há caminho: o caminho se faz ao caminhar. Ao mesmo tempo, nossa autora ganha a convicção de que esse caminhar, com as próprias pernas e guiado pela própria cabeça, não precisa ser feito de forma solitária e isolada. Ele pode, sim, ser feito com o suporte da sociedade, e de forma impessoal, para que a transição entre os primeiros passos e o ponto de chegada imaginado seja feito da melhor forma possível. Não se trata de favor, de caridade, e sim de direito, de cidadania.
Os maratonistas costumam dizer que o preparo físico é importante, mas o decisivo é o psicológico. Penso que a fé no Estado pode ser parte deste apoio psicológico para aquelas pessoas que, pela sua trajetória familiar, não larguem calçadas em tênis de alta tecnologia e com instrução customizada de personal trainers. Muitos – nesse Brasil tão desigual – partem com os pés descalços e no barro. Penso que se essas pessoas descalças puderem confiar no Estado, elas terão mais ânimo para correr sua maratona que, na saída, já é ladeira acima.
Porém o Estado não é mágico. Ele não é altruísta. Ele não é um Deus de amor bondoso. O Estado é uma construção derivada das comunidades e da sociedade. E é a sociedade que precisa tomar a decisão, em algum momento, de escolher a solidariedade ao invés da animosidade, a cooperação ao invés da exclusão. As lideranças precisam, efetivamente, liderar a formação de um sentimento difuso de irmandade, a ponto de ser possível imaginar um destino comum para aquela população. Um destino em que ninguém precisará sofrer em excesso pela falta do mínimo, do básico, ainda mais diante da abundância, da opulência do próximo. Em poucas palavras: é preciso lideranças capazes de pregar – e de convencer – que a desigualdade é imoral, indecente. Mas, para isso, as pessoas também precisam estar dispostas a ouvir. É neste ponto que sentimos toda força do apelo de nossa autora, que tenta, a partir da concretude de sua experiência, abrir olhos e ouvidos para uma alternativa que possa ser construtiva. Qual é essa alternativa? Isso é menos importante do que dar o primeiro passo: abrir-se para pensar no outro, na outra, em outrem, enfim.
Compartilhar das reflexões de Kettilen em seu processo de descoberta nos ajuda a perceber os dilemas, inseguranças e ansiedades próprias de sua geração. Ao mesmo tempo, renova-nos a esperança de que a juventude universitária possa ter desejos e ambições além da qualificação para o mercado de trabalho. A juventude universitária é essencial para pensar nosso país e, acima de tudo, imaginar melhores futuros.
João Pessoa, 23 de agosto de 2021.
Thiago Lima
Professor do Departamento de Relações Internacionais e do Programa de Pós-Graduação em Gestão Pública e Cooperação Internacional da UFPB.
Introdução
A gente ri, chora? Para onde se dirige nosso barquinho? Cada um com sua opinião… a cordialidade do povo brasileiro?
Senta aqui, vamos conversar. Vou tomar um pouquinho do seu tempo, mas quem sabe seja para ganhar muito lá na frente, quem sabe seja para dar muito mais tempo para alguém que talvez você ainda nem conheça. Dar: que coisa bonita, não é?
Já se perguntou em algum momento o que é a vida? É interessante, te garanto. Tão interessante é a vida, que, talvez, o mais interessante seja justamente não saber.
Como a gente sabe pouco. Sabe pouco do outro, sabe pouco da gente. Sabe nada do mundo. Estamos condicionados a ver apenas aquilo ao nosso imediato.
Como é difícil enxergar uma realidade que não nos pertence. Como é difícil nos colocar no lugar do outro. Muitas das vezes nem nos convém.
Já se imaginou no lugar daquela pessoa dormindo na rua, que a gente passa e finge que não está vendo? Não. Você nunca ficaria assim.
Você procuraria um trabalho, procuraria estudar, procuraria ser gente... Será que essas pessoas são gente? Não sei. Mas você nem passaria perto de chegar a essa situação: de alguma maneira se considera diferente.
E eu posso culpar você? Claro que não. Você foi ensaiado para pensar assim. Se você cresceu escutando que se outrem não tem as mesmas possibilidades que você, foi porque não trabalhou o suficiente
, não estudou o suficiente
, não se esforçou o suficiente
de que maneira eu poderia te exigir a olhar diferente para essas pessoas?
Se a gente cresceu achando que as estruturas que nos permeiam foram dadas; que as coisas são assim simplesmente porque são assim – sempre foram e sempre serão assim – o que me resta tentar te mostrar? De certa forma, você tem razão.
Sim, você tem razão. Percebe o quanto a gente é pequeno? Percebe o quanto nossas ações são tão limitadas ao nosso imediato?
Percebe que, sozinho, eu não posso fazer muito? Não posso mudar muito? Sabe aquela comida que por ventura a gente doa? Pois, então, é lindo, não é? Eu admiro… como somos boas pessoas, como somos gentis! Mas sabe o que acontece? Aquelas mesmas pessoas também necessitarão comer no outro dia, no outro, no outro...
E então aí você pode concordar comigo: não podemos tirar do nosso para suprir do outro sempre. Temos nossos compromissos, nossos trabalhos. Tivemos o nosso esforço para termos o que temos. Provavelmente só você sabe o que já passou para estar onde está; para estar aqui lendo este livro.
Então, minha história não chega a esse ponto. Na verdade, em um momento – ainda nos meus 17 – planejava junto com meu professor do cursinho, passar um ou dois dias na condição dessas pessoas que vivem nas ruas. Queríamos sentir na pele o que era viver assim, mas não deu certo. Não deu certo ainda, quem sabe um dia...
Mas não! Não quero nada parecido de você. Não pense que aqui é um incentivo para você fazer qualquer loucura do tipo.
Aqui só peço alguns momentos do seu pensamento. Só peço a sua disposição para sair das próprias dores por um instante e se permitir estar na pele de alguém. Simplesmente pela própria imaginação.
Essa é a minha história, é a minha vida, sou eu. Escrevo aqui nos 19 anos, e nossa! Quanta coisa já aconteceu. Talvez mergulhando na minha trajetória e em meus pensamentos, você seja capaz de me entender, entender o que acredito, o que defendo. Entender o que, através dessa narrativa, tento te mostrar.
Quero aqui utilizar da minha história para te provocar a pensar acerca dos seus posicionamentos, não te mudar. Te mudar não seria possível; seria pretensão demais. Apenas você é capaz de mudar a si mesmo.
O que quero aqui é que apenas pense melhor, esteja aberto para descobrir mundos além do seu e, quem sabe, obter resposta para alguma das perguntas acima.
Capítulo 1
Histórias e flashes de lembranças
Nasci na cidade de Goiânia, capital de Goiás. Desse momento da minha vida não é de se espantar que eu não lembre muita coisa (risos). De alguns relatos da minha infância restam histórias que ouvi me contarem, e, no caso do meu nascimento, meu registro (risos novamente). Minha mãe tinha 16 anos ao me ver nascer, meu pai, por volta de seus 24. Era aquele típico casamento em que a mocinha se junta com o rapaz, para cuidar da família enquanto ele, o marido, traz o sustento. Mais que isso, fui fruto de um casamento
clichê e histórico em que o homem branco fazendeiro engravida a mocinha negra que vinha da extrema pobreza. Não havia documento, na verdade, sequer houve um casamento, ali havia duas pessoas que se juntaram. E, adivinha, a mocinha sai da cidade para uma fazenda no interior, onde agora deveria cuidar do seu marido e de sua filhinha, afinal, agora era uma mulher de família. Então, assim cresci numa cidade do interior chamada Edéia, claro, entre momentos intercalados entre a fazenda e a cidade, como verá logo adiante. Eu era uma menina muuuito gordinha, registro aqui essa curiosidade só pelo estranhamento de tanta magreza no futuro (hahaha). Existia uma fotinha do meu querido avô, que me segurava perto de um cavalo, foto que, a propósito, gostaria muito de recuperar.
As poucas memórias que ainda tenho desse lugar são de um córrego que passava no meio da estrada, chegando na fazenda. Perto dele, havia um coqueiro e, entre as minhas lembranças que muitas vezes sequer sei distinguir se havia sido um sonho, lembro da minha mãe me levar naquele local que eu chamava tão seguramente de meu corguinho
. Claro, com a mamadeira ao lado. Já era dona da porra toda, mas o leitinho que era bom, não largava. Me lembro ainda, muito vagamente, de uma vez que a carroça virou com a minha mãe perto da porteira – tenho que me esforçar muito para saber o que aconteceu, mas sei que, pra mim, era um absurdo acontecer aquilo: peraí cavalinho, a minhaaa mamãe
.
Na casa da tia Maria, numa fazenda ao lado, é que tinham vários resquícios desses momentos: o berço, foto daquela menininha mimada querendo a mãe... (pensa no bocão aberto do choro, caso alguém mexesse comigo). O engraçado é que, comumente, não me lembro muito dessas coisas, mas o melhor é que, na medida que vou escrevendo, algumas recordações retornam à minha mente. Para mim era tudo normal. Tinha também a arara chamada Rosa, da minha bisavó Geralda, a qual era o máximo para mim. Tinham várias coisas que nem se eu ainda me lembrasse, caberiam todas aqui. O que interessa, no entanto, é que eu era uma criança, e, nesse papel, era incapaz de imaginar a totalidade do contexto que se fazia à minha volta. Lembrava vagamente de coisas que me marcaram como o meu corguinho, a carroça, a foto do cavalo, o meu berço da casa da tia, a arara da minha bisavó... mas nunca, nunca imaginava o que acontecia nos bastidores, o que minha mãe havia de suportar para estar ali.
O interessante é que cada personagem tem a sua história, e isso é outra fatalidade que, muitas vezes, não nos damos conta na vida. O quão interessante pode ser a pessoa que você tem ao lado; aquela que você cruza na esquina; aquela de quem você menos espera. E assim era. Cada pessoa ali tinha a sua própria história, tinha passado por coisas que as faziam ser como são, a ter que aceitar o que tinham que aceitar. E assim era também a minha mãe, história crucial, caso não a principal desse livro.
Em uma outra lembrança da minha infância, quase uma das únicas com minha mãe, lembro da gente já na casa da cidade, era uma tarde quando meu pai chegou. Então,