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Liberdade de expressão e discurso de ódio: Consequências para o campo jornalístico
Liberdade de expressão e discurso de ódio: Consequências para o campo jornalístico
Liberdade de expressão e discurso de ódio: Consequências para o campo jornalístico
E-book620 páginas8 horas

Liberdade de expressão e discurso de ódio: Consequências para o campo jornalístico

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Sobre este e-book

Este estudo investiga a natureza, a frequência e o impacto das violências presenciais e digitais que se dirigem às jornalistas portuguesas, mapeando experiências pessoais e profissionais, perceções e consequências para o campo jornalístico. As singularidades e os impactos perversos patenteados em estudos internacionais tornam premente privilegiar este ângulo de abordagem que urge conhecimento científico, principalmente por se tratar de uma temática emergente e pouco estudada em Portugal.

A indagação não se direciona para a quantificação ou mensuração dos dados ao considerar a violência sobre as jornalistas portuguesas como um todo estanque, mas para a exploração e a divulgação de bases sólidas referentes à problemática social, com a finalidade de serem impulsionadas respostas institucionais e promovidas mudanças sociais igualitárias. Ao privilegiar-se uma pesquisa metodológica qualitativa, realizaram-se 31 entrevistas semiestruturadas em profundidade com jornalistas dos principais média do ecossistema mediático português. Posteriormente, a estratégia metodológica articula a análise temática crítica com a perspetiva feminista.
IdiomaPortuguês
EditoraMedia XXI
Data de lançamento15 de fev. de 2022
ISBN9789897292354
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    Liberdade de expressão e discurso de ódio - Bruno Frutuoso Costa

    Liberdade_Expressao_Capa.png

    Liberdade de expressão

    e discurso de ódio

    Consequências para

    o campo jornalístico

    Liberdade de expressão e discurso de ódio:

    Consequências para o campo jornalístico

    Bruno Frutuoso Costa

    1ª edição

    Publicado por

    Media xxi (formalpress – publicações e marketing, lda.)

    mediaxxi@mediaxxi.com

    ©

    2021, media xxi

    e Bruno Frutuoso Costa

    Capa e Paginação: Gil Rodrigues

    Revisão: Bruno Frutuoso Costa e Joana Lopes

    Reservados todos os direitos de autor. Esta publicação não pode ser reproduzida, nem transmitida no todo ou em parte, por qualquer processo eletrónico, mecânico, fotocópia, gravação ou outros, sem prévia autorização da editora e do autor.

    1ª edição: mês de 2021

    Av. 25 de Abril 8B,

    C/V

    Drta.

    2620-185. Ramada, Portugal.

    +351 217 573 459 | 217 576 316

    Rua João das Regras 150, 5º

    Esq. Tras.

    4000-390. Porto, Portugal.

    +351 225 029 137

    www.mediaxxi.com

    ISBN

    : 978-989-729-231-6

    Liberdade de expressão

    e discurso de ódio

    Consequências para

    o campo jornalístico

    Bruno Frutuoso Costa

    Dedicatória

    Esta obra é dedicada, com muita admiração, amor, e carinho, à minha mãe.

    Pequeno lembrete: Tu és linda! Tu és forte! Tu és especial!

    Vou contar-te um segredo: As pessoas especiais, genuínas e autênticas costumam despertar, ao longo da vida, grandes paixões e ódios nos outros.

    A inveja não vem de algo material, mas da incapacidade de alguém para apagar o teu brilho, aquilo que tu és, e como enfrentas a vida. Ou seja, aquilo que representas.

    Ao fim e ao cabo, não nos podemos esquecer de que vivemos na modernidade líquida.

    Por outras palavras, digo-te – e fica escrito para memória futura – que me orgulho verdadeiramente de ser teu filho. Por isso, um obrigado será sempre insuficiente para exprimir tudo aquilo que eu sinto, bem como o que mereces ler ou ouvir.

    — Do teu Costinha, 2021.

    Agradecimentos

    Lágrimas, angústia, sentimentos de impotência, sorrisos, abraços, e principalmente muito amor, são algumas das palavras mais indicadas para descrever esta jornada. Por isso, o primeiro agradecimento dirige-se a três médicas que têm demonstrado competências aprimoradas para momentos decisórios. Adriana Roque, Oxana Belykh e Joana Correia agradeço-vos os cuidados responsáveis, atentos e humanizados.

    Aos Hospitais da Universidade de Coimbra, desde o primeiro momento aquando da nossa entrada nas urgências, naquela fatídica tarde de setembro de 2020, ao presente. Grande parte dos profissionais demonstra um espírito de sensibilidade pelo outro muito genuíno, sendo essa autenticidade e respetivo profissionalismo fatores amenizantes desta luta e, por inerência, têm dado conta de algumas neglicências médicas graves, que pelo caminho surgiram.

    À Professora Doutora Rita Basílio de Simões, por ter aceitado este desafio e me ter guiado da melhor forma possível. A sua compreensão, apoio e amparo nos momentos mais difíceis foram essenciais para levar este projeto a bom porto. Grato pela sua orientação, bem como pela minha inclusão em diferentes projetos e investigações.

    À Professora Doutora Inês Amaral, igual reconhecimento lhe é devido e a quem agradeço por me ter acompanhado, de forma atenciosa, na reta final da dissertação.

    Às ٣١ jornalistas, que se predispuseram a abrir os seus baús pessoais. Permitiram que reuníssemos entrevistas com contributos de grande valor para a compreensão do jornalismo contemporâneo, presentemente imbuído numa cultura digital perversa.

    A um conjunto de pessoas igualmente importante durante esta trajetória que, pela nossa cumplicidade, não precisam de ser ver mencionadas individualmente. Obrigado pela vossa amizade e carinho.

    Aos meus pais, os principais mentores do meu desenvolvimento pessoal, académico e profissional. Não existem palavras suficientemente capazes para vos gratular.

    Ao apoio financeiro do Banco Santander (Referência Bolsas Santander Futuro 2ª Edição 2020/2021).

    Ao apoio do Projeto Violência online contra as mulheres: Prevenir e combater a misoginia e a violência em contexto digital a partir da experiência da pandemia COVID-19 (Referência Gender Research 4 COVID-19-058), financiado por fundos nacionais através da FCT (Fundação para a Ciência e a Tecnologia).

    Lista de siglas e abreviaturas

    ASMR, Resposta Sensorial Meridiana Autónoma

    BE, Bloco de Esquerda

    CCIG, Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género

    CCPJ, Comissão da Carteira Profissional de Jornalista

    CNE, Comissão Nacional de Eleições

    ERC, Entidade Reguladora para a Comunicação Social

    IEFP, Instituto do Emprego e Formação Profissional

    IPSS, Instituição Particular de Solidariedade Social

    ONG, Organização Não Governamental

    PCP, Partido Comunista Português

    PS, Partido Socialista

    PSD, Partido Social Democrata

    RSI, Rendimento Social de Inserção

    SEF, Serviço de Estrangeiros e Fronteiras

    SLAPPs, Processos Judiciais Estratégicos Contra a Participação Pública

    Índice

    Prefácio

    1 · Da ágora grega à era das conexões ininterruptas

    2 · Liberdade de expressão, discurso de ódio

    e violência de género

    3 · Jornalismo sob ameaça: Procedimentos e impactos

    da pressão externa e interna e da violência praticada

    sobre a atividade jornalística e os seus intervenientes

    4 · Objetivos de investigação e caminhos metodológicos

    5 · Resultados e discussão

    Considerações finais

    Referências bibliográficas

    Entrevistas

    Sobre o autor

    Prefácio

    A obra que Bruno Frutuoso Costa nos apresenta é de grande substância académica e interesse para a sociedade civil numa era em que a digitalização tem vindo a acentuar as desigualdades de género e a perpetuar violências. O livro centra-se numa temática contemporânea que tem de ser analisada pela lente científica. A proposta traduz-se num interessante ângulo de abordagem, numa época em que o pós-feminismo domina as representações sociais e construções identitárias das mulheres nos media, assumindo a igualdade como factual e verificando registos de opressão que afetam as mulheres.

    O livro Liberdade de expressão e discurso de ódio: Consequências para o campo jornalístico enquadra-se no âmbito do projeto Violência Online contra as Mulheres: Prevenir e Combater a Misoginia e a Violência em Contexto Digital a partir da Experiência da Pandemia de Covid-19, financiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia (Proj. no 058 – Gender Research4Covid-19), que tem como objetivos produzir conhecimento sobre uma temática emergente e muito pouco estudada em Portugal, promover no terreno a igualdade de género, e orientar as respostas sociais e institucionais dirigidas à prevenção e ao combate à violência e à misoginia em contexto digital. Com este enquadramento, este livro assume-se como um trabalho de investigação pioneiro sobre a violência online contra mulheres jornalistas, mapeando experiências pessoais e profissionais e analisando como o discurso de ódio e as novas violências digitais impactam no exercício da atividade profissional.

    O autor contextualiza a temática a partir de uma discussão sobre espaço público, convocando a génese dos conceitos de esfera pública, opinião pública e a sua relação com o jornalismo. Sob a perspetiva da produção jornalística enquanto construção social da realidade, Bruno Frutuoso Costa desenvolve a ideia de uma reconstrução do espaço público promovida pela Internet operacionalizada na pluralidade de suportes que potenciam uma multiplicidade de vozes e novas formas de participação. Assente na premissa da teia de relações, o autor sustenta que a complexidade e o dinamismo dos ambientes digitais fomentam a criação de novas sociabilidades.

    Argumentando que o digital diluiu fronteiras, e convocando Stuart Mill para enquadrar o princípio da liberdade de expressão, Bruno Costa trabalha o conceito considerando o coletivo e a individualidade no contexto da Internet. Ancorado à ideia de sociedade em rede defendida por Manuel Castells, o autor discorre sobre a forma como os diferentes imaginários que habitam os espaços simbólicos que se (re)criam nas plataformas digitais podem ampliar comportamentos sexistas, racistas e xenófobos. Convocando diferentes contributos para uma definição de discurso de ódio, o livro prossegue com uma discussão sobre as diferenças da legislação nos contextos americano e europeu. E é neste contexto que o autor trilha caminho sobre o discurso de ódio e as novas violências que ocorrem em ambiente online contra jornalistas.

    No terceiro capítulo, o autor debruça-se sobre a complexidade das consequências da violência na esfera pessoal e no exercício da atividade jornalística, considerando uma tipologia abrangente de micro e macro violências exercidas individualmente ou em grupo. É neste capítulo que o autor instrui para um olhar sobre o objeto de estudo da sua investigação, que visa compreender a natureza da violência presencial e digital exercida contra as jornalistas portuguesas, os impactos das agressões no exercício da profissão e na vida pessoal das jornalistas, as consequências que o ódio instiga no campo jornalístico e as medidas que estão a ser implementadas para prevenir o crescimento da violência contra as e os jornalistas em Portugal.

    O trabalho empírico é sustentado por uma metodologia qualitativa ambicionando mapear e analisar experiências pessoais de violência online de 31 jornalistas de órgãos de comunicação social que foram entrevistadas. Os resultados mostram que a violência online contra as mulheres jornalistas em Portugal é um problema real. O autor refere-se à censura da multidão para explicar o clima de intimidação criado nos media sociais para silenciar e disciplinar jornalistas. No entanto, o discurso de ódio é também genderizado e a misoginia surge em diferentes contextos, espoletada pelos temas jornalísticos e ângulos de abordagem. Nota Bruno Frutuoso Costa que as formas mais comuns de violência online contra mulheres jornalistas portuguesas são as agressões verbais, o discurso de ódio, a intimidação, a importunação e o assédio sexual. Os ataques são heteronormativos e reproduzem os papéis normativos de género, perpetuando desigualdades e opressões.

    A proposta de pensar a liberdade de expressão e o discurso de ódio no contexto da atividade jornalística a partir de uma perspetiva de género mostra como a normatividade dos procedimentos resvala numa normalização da violência online contra mulheres jornalistas. Numa sociedade estruturalmente patriarcal como a portuguesa, os ataques às mulheres jornalistas servem para policiar as vozes femininas tal como para perpetuar ciclos de violência. Estas formas de condicionamento perpetuadas por cidadãos/ãs e atores políticos são inaceitáveis porquanto colocam em causa a democracia e a liberdade de imprensa.

    Vivemos uma época sem precedentes. Uma pandemia numa era da velocidade digital acarreta novos desafios para o jornalismo e, consequentemente, para as e os jornalistas. E se até à pandemia a descredibilização dos meios de comunicação social já era uma constante na Internet, os confinamentos vieram agravar a situação. Os cidadãos e as cidadãs vigilantes, os grupos extremistas e anti-sistema (seja qual sistema for), spin doctors e atores políticos passaram a ocupar a arena digital numa contante atitude de ataque e culpabilização da comunicação social. É neste contexto que este livro assume a sua enorme importância. Não só por ser um trabalho pioneiro em Portugal, mas também por, num momento absolutamente histórico, lançar luz sobre um fenómeno de micro e macro violências que, apesar de ser um denominador comum nas caixas de comentários e nos media sociais, é invisibilizado pela sociedade e, frequentemente, pelos próprios meios de comunicação.

    A escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie escreveu sobre o perigo da história única. A obra de Bruno Frutuoso Costa é o garante de que não se pode, em momento algum, contar uma história única sobre a violência online contra as mulheres jornalistas em Portugal.

    Coimbra, 30 de setembro de 2021.

    — Inês Amaral e Rita Basílio de Simões.

    1 · Da ágora grega à era das conexões ininterruptas

    1.1 Emergência do espaço público

    O funcionamento da democracia e o ideal de debate público são provenientes e moldados em função dos dois modelos de espaço público consagrados na tradição ocidental: o espaço público grego e o espaço público burguês, abordados por Hannah Arendt (2007) e Jürgen Habermas (2012), respetivamente. Estes autores, considerados referências, apresentam contributos profícuos para a investigação e a compreensão do espaço público contemporâneo (Correia, 1998b; Ferry, 1998). Enquanto o modelo grego surge da tradição clássico-aristotélica de política em torno da vida na polis, o modelo burguês desenvolveu-se no contexto do Iluminismo, no qual o espaço público político baseia-se no conceito kantiano de publicidade por intermédio de debates, leis e juízos (Ferry, 1998, p. 13).

    Hannah Arendt cunhou a teoria política da segunda metade do século XX ao introduzir uma abordagem distinta do ideal estabelecido de espaço público clássico e moderno proveniente do modelo burguês. Ou seja, apresenta uma visão distinta da definição hegemónica de Habermas (Ferry, 1998; Martins, 2005). Na obra arendtiana, A condição humana, as mudanças, tal como todos os aspetos da vida, são revestidas de significados políticos. A essência humana só é compreendida se puder ser discutida, e a condição política do discurso emerge da essência política do homem. Sempre que a relevância do discurso entra em jogo, a questão torna-se política por definição, pois é o discurso que faz do homem um ser político (Arendt, 2007, p. 11). Por outras palavras, a autora pretende demonstrar como as bases do pensamento e da ação são estruturadas impreterivelmente pelas dimensões pública e política.

    Na Grécia Antiga, a par da história da antiguidade ocidental, o ser-se político era remetido para a vida na polis, onde tudo era decidido através do discurso, de palavras, e de estratégias de persuasão. A imposição mediante a força ou a violência, em detrimento da persuasão, representa uma tipologia comportamental pré-política e típica da vida fora da polis. No seio da vida familiar, o chefe de família detinha o poder tirano de comandar e decidir a organização doméstica. Com o surgimento da ágora grega, a antiga cidade-estado, o pensamento estruturou-se à volta da diferenciação das esferas pública e privada. Elementos distintos e separados, a esfera pública era representada através da dimensão política na polis e a esfera privada com o domínio íntimo no lar da família (Arendt, 2007, pp. 35-37).

    A esfera pública política era exclusiva dos homens livres e iguais, num sistema patriarcal que excluía as mulheres¹, os escravos e os bárbaros da praça pública. Numa sociedade em que as raparigas eram entregues aos homens por volta dos 15 anos de idade, a dominação masculina e a distribuição dos papéis de género consideravam a mulher propriedade do marido, isto é, a fiel guardiã do lar. A sua condição e suposta natureza de inferioridade ditavam e remetiam, juridicamente e socialmente, o género feminino à objetificação sexual, à procriação e às tarefas domésticas (Foucault, 1994b, pp. 166-167).

    Os espaços públicos de reunião, na ágora, representam os debates dos homens centrados nos assuntos relacionados com o governo da cidade. Os homens ingressavam na esfera pública por desejarem que algo seu, ou algo que tinham em comum com os outros, fosse mais permanente que as suas vidas terrenas (Arendt, 2007, p. 65). Por outras palavras, sendo os homens os únicos sujeitos livres e aptos para beneficiar do estatuto de cidadão (Foucault, 1994b), a liberdade era concebida exclusivamente para a polis, cujo ingresso dependia das vitórias dos homens perante as suas próprias necessidades no seio da vida familiar (Arendt, 2007).

    O conceito arendtiano de esfera pública está, pois, correlacionado com dois sentidos do termo público. Inicialmente, associa-se às atividades comuns a todos e, sem exceção da visão e da audição sobre a realidade, que dependem da existência de uma esfera pública que permita a emergência das coisas. Por outro lado, público representa o mundo comum e os seus diferentes espaços de reunião e relação das pessoas. Neste sentido, a emergência de um espaço público, no qual se reúnem sujeitos para debater a vida política e os assuntos com interesse para a comunidade, permite a constituição de uma esfera pública que, segundo a autora, deve transcender a mortalidade do Ser Humano e preservar a presença pública (Arendt, 2007, p. 59).

    Jürgen Habermas (2012, p. 65) propôs-se analisar o modelo liberal da esfera pública burguesa – génese, estrutura, função e transformação-, como uma categoria típica de uma determinada época, especificamente da sociedade civil nos contextos históricos de desenvolvimento de Inglaterra, França e Alemanha entre os séculos XVII e XX. A génese, o desenvolvimento e o entrosamento da imprensa nessas sociedades foram essenciais para o desenvolvimento do conceito de esfera pública de Habermas.

    A partir do século XIII, os entrepostos e, posteriormente, as grandes feiras nos cruzamentos das rotas de comércio de grande distância tornam-se nos elementos que permitem a criação de uma nova ordem social: a burguesia. Com esta, surge o capitalismo financeiro e comercial na Europa, constituindo a sociedade civil. O novo contexto de trocas necessitava de informações com regularidade e precisão dos acontecimentos distantes. Então, a expansão da linha de circulação de mercadorias e da circulação de notícias ocorreram de forma síncrona (Habermas, 2012, p. 87).

    Inicialmente, a troca de comunicações do século XIV ocorria através de cartas entre os comerciantes, que se regiam consoante os seus interesses. Apelidados de custodes novellarum, aos guardiões de informações não lhes convinha que os conteúdos das suas correspondências privadas integrassem o interesse público. Essas novidades não eram publicadas durante muito tempo, e quando tal sucedia, acontecia de forma irregular e apenas nas grandes cidades de comércio. Não podiam ser consideradas como notícias, uma vez que os panfletos e, posteriormente, os novos jornais eram redigidos em forma de canção ou de diálogo com o intuito de serem recitados coletivamente. Divulgavam sem distinção lutas religiosas, chuvas de sangue, aparições sobrenaturais, castigos divinos, entre outros. Segundo Habermas (2012), a imprensa² propriamente dita desenvolve-se no final do século XVII, no qual a difusão regular de notícias se torna pública e acessível ao público em geral:

    Os panfletos do século XV e os boletins de uma folha de publicação ocasional do século XVI, designados novos jornais, testemunham também a força com que um saber tradicional incontestável sabe assimilar comunicações, cuja torrente enchente já remete, porém, para uma nova forma de esfera pública³ (Habermas, p. 89).

    Os primeiros jornais, também designados de jornais políticos, iniciam atividade com periodicidade semanal que transita para diária em meados do século XVII. Inicialmente, uma vez que os guardiões de informações detinham o monopólio das informações mais relevantes, a imprensa cingia-se a noticiar acontecimentos estrangeiros e da corte, ou seja, eventos comerciais com pouco interesse e as tradicionais novidades da época. Num segundo momento, a imprensa serve os interesses administrativos das novas autoridades e, posteriormente, de governos – não raras vezes, a imprensa foi sujeita a censura oficial, regulamentada, e convertida em boletins oficiais. Somente no século seguinte, os artigos de fundo e o raciocínio crítico integram, de forma regular e constante, a imprensa diária.

    Na verdade, a circulação de informações não se desenvolve apenas no contexto de necessidades de circulação de mercadorias, mas são as próprias informações que se tornam mercadorias. A informação profissional obedece, por isso, às mesmas leis do mercado que estão na génese da sua própria existência (Habermas, 2012, p. 96).

    A conceção de economia associada ao espaço e vida em família prevaleceu até ao século XVII, quando foi progressivamente substituída pelo mercado e respetivas economias de mercado. No século seguinte, a classe média culta burguesa aprendeu a arte do raciocínio público em contacto com o mundo elegante da sociedade cortesã e nobre. Ao separar-se da esfera pessoal da corte, estabelece-se na sociedade civil como contrapeso e contraponto da autoridade. As atividades e relações de dependência de âmbito doméstico da esfera privada chegam à esfera pública (Habermas, 2012, p. 98).

    Nessa continuidade, a esfera pública burguesa nasce a partir da sociedade aristocrática que se encontra em separação da corte no seio da crise feudal. Corresponde à reunião de pessoas privadas num espaço público, enquanto público e que fazem uso público da razão⁴ (Habermas, 2012, p. 103). O modelo apresentado por Habermas separa o domínio público do domínio privado, integrando o processo de reunião na propriedade privada. Após exigirem a regulamentação⁵ da esfera pública pela autoridade, transformam-na numa esfera crítica do poder público e, portanto, de cariz político (Correia, 1998b; Habermas, 2012). Nesse sentido, a esfera pública pretendia regular a sociedade civil; mediar o Estado e as necessidades da sociedade; enfrentar a autoridade monárquica estabelecida a partir das experiências de uma esfera privada íntima, familiar e patriarcal⁶; e afirmar-se através da opinião pública.

    Os cafés, os salões e as sociedades de convívio configuraram os espaços públicos liberais de reunião da esfera pública, inclusiva nos parâmetros da acessibilidade e participação. O público é na sua essência de origem social burguesa, logo vislumbra-se um espaço público excludente, e mantido coeso pela instância mediadora da imprensa e da sua crítica profissional (Habermas, 2012, p. 135). Além dos jornais contribuírem para os debates do público, eram considerados como elementos estruturais da própria vida dos cafés. Os jornais críticos, que integravam as discussões no século XVIII (Habermas, 2012), foram essenciais para que, nos finais do século, se formasse o conceito de liberdade de imprensa e fosse reconhecido como princípio e estabelecimento enquanto um dos direitos fundamentais (Cornu, 1994, p. 133).

    Para Habermas (2012), os burgueses são pessoas privadas e, como tal, não governam. Não possuem pretensões de poder, são contra a concentração do mesmo e, nesse sentido, orientam-se em função da partilha, publicidade e modificação de todas e quaisquer formas de dominação. O papel da autoridade foi reduzido e remetia-se à execução. Política e culturalmente, representa o apogeu da intervenção das classes ascendentes em luta contra dominação aristocrática e as formas ideológicas que a legitimavam (Correia, 1998b, p. 23). João Carlos Correia (1998b) acredita que a esfera pública liberal, consolidada a parir do século XVIII, fundamenta a postura que adotamos atualmente no mundo. Está associada ao desenvolvimento das formas modernas de individualismo, de subjetividade, do exercício crítico da opinião, da troca de argumentos, da interação livre, da acessibilidade, do conceito de opinião pública e, portanto, do progresso humano e da modernidade racionalista e democrática (Correia, 1998b, pp. 23-24).

    Note-se que a imprensa desempenhou um papel fundamental na fase de afirmação da sociedade civil na esfera pública, uma vez que disponibilizava os meios necessários para resistir às incursões do Estado. Cornu (1994) destaca ainda que:

    A descoberta de um espaço público e o seu alargamento, como espaço onde se afirma uma crítica do político, concretiza assim um reconhecimento inaugurado pelo dos direitos do indivíduo às suas opiniões e crenças. A expressão livre da opinião e a tolerância ganharão pouco a pouco terreno (Cornu, 1994, p. 149).

    O panorama histórico em que se insere a evolução da imprensa, e que coincidiu com o desenvolvimento do espaço público, desencadeou grandes impactos na definição das suas orientações. Significa que o progresso da imprensa e do espaço público são processos interdependentes e complementares. Historicamente, a evolução da imprensa, bem como os consequentes estabelecimentos dos princípios da liberdade de imprensa e da liberdade de expressão, está associada à emergência do espaço público, do seu avanço e das relações conservadas no seio da sociedade civil. Espaço esse que se instituiu perante o poder político devido ao desenvolvimento, entrosamento e impacto estrutural do jornalismo (Cornu, 1994; Habermas, 2012).

    Uma das principais diferenças entre os modelos grego e burguês reside ao nível da função subjacente à criação dos espaços públicos (políticos). Enquanto no primeiro se perspetivava a obtenção da glória por meio da discussão dos assuntos da cidade, no segundo pretendia-se a emancipação de minorias com o desenvolvimento da sociedade civil. Todavia, ambos são orientados pelo princípio argumentativo que se demonstrou essencial ao desenvolvimento da democracia (Ferry, 1998). Dado que o conceito normativo de esfera pública burguesa está ligado à assunção do espaço público enquanto uma ideia de progresso assente na evolução da razão, o mesmo apresenta várias contradições e exclusões que impedem a sua aplicabilidade (Correia, 1998b, p. 51). As debilidades do modelo proposto por Habermas foram expostas por diversos autores e investigações. Quase 60 anos após a sua publicação, a esfera pública burguesa continua em voga na investigação na área das ciências sociais. Privilegiaremos, no decorrer da investigação, a dimensão e o conceito associados ao espaço público, enquanto um lugar democraticamente acessível, quer à individualidade, quer à coletividade, e plural no que diz respeito à discussão, troca e partilha livre de ideais, expetativas, pensamentos e experiências.

    As inovações tecnológicas, que permitiram o advento de democracias de massas e de meios de comunicação de massas, e as mudanças sociais e políticas dos séculos XIX e XX tiveram grandes impactos tanto no espaço público como na atividade jornalística (Cornu, 1994; Correia, 1998b; Ferry 1998; Gaillard, 1974; Habermas, 2012; Martins, 2005; Traquina, 1993, 2002). Poucas profissões integraram tantos processos de modificação num intervalo de tempo tão curto quanto o jornalismo. Essas transformações profundas, impulsionadas pela evolução da técnica, da sociedade e das estruturas políticas, que serão abordadas nas próximas secções, não romperam abruptamente com os princípios fundadores do espaço público: a argumentação pública e a discussão racional com base na liberdade formal e na igualdade de direitos⁷ (Ferry, 1998, p. 16).

    1.2 Formação da opinião pública

    Os estudiosos da opinião pública têm encontrado diversas dificuldades no estabelecimento de uma definição unitária, uma vez que representa um fenómeno complexo e dinâmico, isto é, histórica e socialmente inserido. Em primeira instância, os investigadores, como Tönnies, Lippmann, Speier, Habermas e Baumhauer, partem dos âmbitos envolventes para uma definição, por outras palavras, o conceito de opinião pública varia consoante os marcos históricos e as referências vigentes, sejam elas ideológicas, estruturais, comunicacionais, dinâmicas ou empíricas (Arribas, 1987, p. 135).

    A conceção do termo integrou diversas etapas evolutivas ao nível do vocabulário e de contextos sociais e políticos, principalmente em Inglaterra e França. Segundo Nelson Traquina (2002, p. 32), o conceito de opinião pública representa um produto do liberalismo nos finais do século XVII e XVIII, em Inglaterra e França, respetivamente (Habermas, 2012). Mas é no desenvolvimento das teorias democráticas do século XIX que assume uma especial importância.

    Nos finais do século XVIII, a definição refere-se ao raciocínio de um público dotado de capacidade de discernimento, sendo usual os termos mera opinião e reputação que se gera no espelho das opiniões (Habermas, 2012, pp. 188-189). A transição do conceito de opinião para definição individual à opinião pública geral ocorre em Inglaterra através da evolução da noção de sentido das pessoas para espírito público. Esta mudança auxiliou-se da imprensa política, cuja identificação com o conceito permitiu que, após a Declaração de Independência e antes da Revolução Francesa, Edmund Burke escrevesse uma carta aos seus eleitores de Bristol com "uma definição firme de opinião pública⁸ como veículo e órgão da soberania legislativa (Cornu, 1994, p. 157). Habermas (2012, p. 194) constata que a opinião do público que raciocina já não é uma mera opinião, não decorre de uma simples inclinação, mas de uma reflexão privada sobre os assuntos públicos e do debate público dos mesmos".

    Em França, as noções de opinião pública ou de espírito público não tiveram lugar no vocabulário dos dicionários do século XVIII. Logo, não se estabeleceram referências. Contudo, são frequentemente utilizadas na literatura política a partir da segunda metade desse século (Cornu, 1994, p. 157), cujos significados mantiveram-se praticamente inalteráveis em relação a opinião (Habermas, 2012).

    À semelhança do que acontecia na esfera pública com os burgueses ingleses, os fisiocratas franceses são os primeiros intelectuais a afirmarem-se na sociedade civil face ao regime absolutista. Uma vez mais, Habermas utiliza-os enquanto forma de contextualização de uma posição específica da ordem social que raciocina publicamente assuntos políticos, no âmbito da discussão crítica na esfera pública, como condição para a obtenção de uma opinião genuína e, apresentar-se-á como um objeto de polarização pré-revolucionária. A transversalidade do seu pensamento sugere, então, a opinião pública como o resultado esclarecido da reflexão coletiva e pública sobre as bases da ordem social; ela sintetiza as leis naturais desta: não governa, mas o governante esclarecido terá de seguir o seu parecer (Habermas, 2012, p. 196).

    Com a Revolução Francesa, as funções crítica e legislativa foram agregadas à opinião pública e inscritas na Constituição de 1791. Ou seja, a articulação da soberania popular com o do Estado de Direito de uma esfera pública com funções políticas. Por outro lado, em Inglaterra, a mesma já era considerada apta para a imposição aos legisladores da sua própria legitimação. Depois de o conceito estar devidamente desenvolvido nesses países foi importado para Alemanha (Habermas, 2012, pp. 201-204).

    No século XIX, a opinião pública apresentava-se já como um elemento da teoria democrática do Estado. Segundo Bentham (cit. em Traquina, 2002, p. 32), a opinião pública esclarecida, informada e com capacidade de expressão, enquanto elemento imprescindível ao nível do controlo social, auxiliou-se no desenvolvimento do papel da imprensa, que começou a ser vista como ponto de ligação e de mediação crítica entre a opinião pública e as instituições de governo.

    Walter Lippmann (1998) impulsionou através da obra Public Opinion, publicada inicialmente no ano de 1922, a discussão sobre o papel da imprensa na opinião pública. A partir da tríade imprensa, público e política, Lippmann iniciou o debate das bases políticas na identidade dos públicos dos meios de comunicação, assim como a importância da opinião pública na comunicação, política e democracia. Segundo o autor, a opinião pública é estruturada por interesses políticos, elites e imprensa, contudo o destaque são as bases da opinião estruturadas pelas escolhas dos jornalistas. Ao identificar uma tendência no jornalismo para a generalização de factos, Lippmann (1998) sublinhou a importância de uma opinião pública organizada em função da imprensa e não pela mesma. Perante um contexto envolvente de grandes dimensões e complexidade, os leitores não reúnem as condições necessárias para compreender as dimensão política e, portanto, recorrem a pseudo-ambientes e aos contextos culturais em que se inserem: fatores emocionais, ego e estereótipos. Nesse sentido, as noções pré-concebidas dos jornalistas e do público, que não correspondem à realidade dos factos, promovem a distorção das notícias e determinam o comportamento político (Lippmann, 1998).

    Hall, Chritcher, Jefferson, Clarke e Roberts (1993) sublinham que:

    A imprensa pode legitimar e reforçar as ações dos controladores trazendo os seus próprios argumentos independentes para influenciar o público na defesa das ações propostas (usando um idioma público); ou pode fazer pressão sobre os controladores incitando a opinião pública a apoiar os seus próprios pontos de vista de que são necessárias medidas mais fortes (tomando a voz do público). Mas, em qualquer dos casos, o editorial parece fornecer um ponto de referência objetivo e externo para mobilizar a opinião pública (Hall, Chritcher, Jefferson, Clarke e Roberts, 1993, p. 234).

    Dado que a maioria dos cidadãos não tem acesso ou poder sobre as decisões que vão sendo tomadas, os meios de comunicação social passaram a desempenhar um duplo papel, de extrema importância, nas sociedades democráticas. Na promoção da formação de uma opinião pública ativa e na sua representação junto de instituições e de decisores. Significa que os media desempenham um papel de fonte primária de informação para a constituição de definições e imagens dos acontecimentos, isto é, do conhecimento social e da expressão, por meio da opinião pública, da identidade comum (Hall et al., 1993; McQuail, 2003). A estrutura formal e independente, em relação às fontes a que se referem e do público que representam, reforça a importância e a independência do jornalismo (Hall et al., 1993, pp. 234-235). A legitimidade jornalística ocorre no seio da teoria democrática perante uma atitude de desconfiança e de vigilância do poder político, de proteção dos cidadãos, numa cultura claramente oponente entre jornalismo e poder (Traquina, 2002, p. 33).

    Independentemente das várias tipologias e definições, opinião pública pode representar a discussão e expressão dos pontos de vista do público (ou dos públicos) sobre os assuntos de interesse geral, dirigidos ao resto da sociedade e, sobretudo, ao poder (Arribas, 1987, p. 137).

    1.3 Jornalismo e o espaço público

    Ao longo da história da Humanidade, as pessoas têm demonstrado a necessidade de receber informações sobre os acontecimentos que não assistem diretamente da atualidade próxima e longínqua. Significa que todos nós precisamos de notícias, mas com diferentes tipologias de necessidades e de posicionamentos, que influenciam os processos de produção dos conhecimentos social e político (Molotch & Lester, 1993). Primeiro, com formas pré-modernas de jornalismo e, posteriormente, com o jornalismo desenvolvido, estes têm demonstrado ser instrumentos imprescindíveis para a obtenção de conhecimento e a integração em conversações pessoais e de grupo por parte dos indivíduos (Traquina, 2002).

    A atividade jornalística pode ser definida através da procura, transformação e redação de acontecimentos em conteúdos noticiosos para uma empresa de media (Gaillard, 1974; Galtung & Ruge, 1993; Traquina, 1993, 2002). Os factos têm diferentes probabilidades de adquirirem o estatuto de acontecimento e, por conseguinte, de notícia (Rodrigues, 1993, p. 27). O processo de comunicação é complexo e influenciado por diversos elementos (Costa, 2021). Uma vez que não é possível transmitir toda a informação disponível, é necessário realizar uma seleção do que tem valor.

    O termo gatekeeper (guardião) começou a ser utilizado para caraterizar a responsabilidade que os jornalistas e editores de secção têm nas escolhas ao nível de decisão e rejeição sobre os acontecimentos que integram os canais noticiosos. Significa que a informação passa necessariamente por diversos gates (portões) e é influenciada por juízos-valor de referências ao nível de experiências, atitudes e expetativas e, portanto, representa um processo subjetivo (White, 1993, p. 151). A um nível mais geral, é possível enunciar constrangimentos organizacionais (Breed, 1993), pressões temporais, entre outros, que condicionam de igual modo o processo de produção jornalística (Traquina, 1993, 2002).

    Os media não relatam simplesmente e de uma forma transparente acontecimentos que são só por si naturalmente noticiáveis. As notícias são o produto final de um processo complexo que se inicia numa escolha e seleção sistemática de acontecimentos e tópicos de acordo com um conjunto de categorias socialmente construídas (Hall et al., 1993, p. 224).

    Os jornalistas têm uma participação ativa no que diz respeito à definição e construção de notícias, porque intervêm diretamente na construção social da realidade (Schudson, 1978, 1993; Traquina, 2002, p. 14). Michael Schudson (1993) evidenciou as formas como os acontecimentos são transformados a partir de determinadas convenções jornalísticas, que variam consoante as sociedades e os períodos temporais, pois ajudam a tornar as mensagens legíveis, culturalmente inseridas e contextualizadas ao mundo social dos leitores (pp. 280-284). Existem vários registos de noticiabilidade dos acontecimentos, ou seja, valores-notícia que orientam a cultura profissional. Apesar das várias oscilações ao longo do tempo, é consensual a importância da contribuição de Johan Galtung e Mari Ruge, em 1965, com uma lista sistematizada de 12 critérios de noticiabilidade (Galtung & Ruge, 1993).

    Além do caráter seletivo e de configuração dos temas considerados mais importantes da opinião pública (Hall et al., 1993; Traquina, 1993, 2002; White, 1993), os acontecimentos são moldados, em certa medida, pela imagem e perceção que os media exercem ao nível da produção e da narração (Bourdieu, 1989, 2005; Galtung & Ruge, 1993; Katz, 1993). Neste contexto, constata-se que os acontecimentos do mundo moldados pelos media são fruto de uma realidade seletiva (Bourdieu, 2005; Correia, 1998b; Costa, 2021; Galtung & Ruge, 1993; Hall et al., 1993; Katz, 1993; Schudson, 1978, 1993; Traquina, 1993, 2002; Tuchman, 1993b; White, 1993).

    Nas palavras de João Carlos Correia (1998b, pp. 85-86), o jornalismo contribuiu para a ‘construção social da realidade’, para a rotinização da própria dinâmica social, estabilizando-a em acontecimentos-tipo, comportamentos previsíveis, erupções controladas. Os processos e a linguagem caraterísticos da atividade jornalística estão associados à formulação das seguintes hipóteses (Correia, 1998b, pp. 86-87):

    Jornalismo de massas como indústria cultural: rotinas de seleção (normas e hábitos), produção (relacionamento com fontes e pares) e finalização são considerados elementos estruturantes.

    Meios de comunicação como promotores da construção da realidade, pelo que orientam para o conformismo e a integração social.

    Atividade jornalística como instituição ética e crítica no combate de elementos censurantes, sejam eles organizacionais, estilísticos ou sociais, e na manutenção da pluralidade.

    Os riscos associados à profissão são vários, sendo um deles a confrontação de críticos com controvérsias relativamente ao modo de apresentação dos factos. Os jornalistas socorrem-se da objetividade jornalística, cuja argumentação salienta a forma descomprometida, imparcial e impessoal através da qual os profissionais trabalham. Esta proteção é intitulada por Gaye Tuchman (1993a) de ritual estratégico, um modo defensivo das redações e das organizações jornalísticas.

    O ato de informar dos jornalistas, que constitui o seu estatuto normativo, representa um ato social no espaço, simultaneamente, público e político. A liberdade e a autonomia dos profissionais dependem da sua condição integrante do espaço público. Portanto, as transformações ocorridas no espaço público têm repercussões no seio da atividade jornalística, e a liberdade individual do jornalista é pois necessariamente ‘mediatizada’, enquanto as empresas mediáticas aparecem como ’mediadoras’ (Cornu, 1994, p. 132).

    A saída da imprensa escrita da época artesanal ocorreu no século XIX juntamente com a Revolução Industrial. Em 1830, o jornal exclusivo de elites e de um público politicamente homogéneo adquire o estatuto de bem ao tornar-se um produto de grande consumo. A produção em série permite a redução de preços, que significa um acesso generalizado de todas as classes. Considerado o século de excelência para o jornalismo, a atividade profissional gozou de grandes transformações sociais, mas a criação das impressoras mecânicas, das rotativas e dos sistemas de difusão (telégrafo, telefone e caminhos de ferro) constituíram os principais marcos impulsionadores. Nascem as agências noticiosas, consagra-se a liberdade de imprensa e o direito público à informação⁹ em forma de lei nas constituições europeias, e os imperativos comerciais são orientados única e exclusivamente pela objetividade da informação (Cornu, 1994, p. 179; Correia, 1998b; Gaillard, 1974; Santos, 1998; Traquina, 2002).

    Assistiu-se à transição de uma imprensa de opinião, símbolo da propaganda, para um jornalismo informativo (Traquina, 2002). Na imprensa de massas, transfere-se para o público a responsabilidade de formar um juízo (Cornu, 1994, p. 192) a partir da informação e da exploração de factos. Significa que a evolução de tiragens acompanhou o interesse dos leitores pelos diversos domínios da vida e a recusa de ideias pré-concebidas. O surgimento de novas formas de financiamento, destaque para as receitas publicitárias, permitiu a expansão da circulação e a independência económica dos jornais relativamente aos subsídios político-partidários. Nesse sentido, verifica-se a fundamentação do jornalismo com uma fórmula e um mercado (Correia, 1998b). A nova responsabilidade do jornalismo orientava-se para a ética da informação, em função da procura pela verdade, a independência, a objetividade e a noção de serviço público tendo em vista uma participação ativa dos cidadãos na vida em democracia. Este novo paradigma, que viria a ser sustentado através dos códigos deontológicos, foi determinante para o desenvolvimento do jornalismo que se conhece atualmente nas sociedades democráticas (Cornu, 1994; Gaillard, 1974; Traquina, 2002).

    A democracia não pode ser imaginada como um sistema de governo sem liberdade, e o papel central do jornalismo, na teoria democrática, é informar o público sem censura (Traquina, 2002, p. 12). Verifica-se na teoria democrática uma relação simbiótica entre jornalismo e democracia. A essência da ideologia profissional jornalística baseia-se numa herança histórica de luta pela igualdade e contra a censura. Uma democracia sem imprensa é inconcebível, quando muito representa propaganda ao serviço de regimes totalitários.

    Em suma, desde a sua génese que o jornalismo tem demonstrado ser uma das instituições mais importantes do espaço público. O estabelecimento de governos liberais no século XIX permitiu que a imprensa se desenvolvesse como expressão da sociedade civil, providenciando-a de influência sobre o espaço público. O desenvolvimento da responsabilidade cítica, social e política dos jornalistas permitiu que os media alargassem a noção de espaço público como lugar simbólico de troca de argumentos contraditórios e de legitimação das grandes instituições sociais, e o sistema mediático como modo de compreensão e de análise racional (Cornu, 1994, p. 430). Portanto, quando o jornalismo integrou a noção de serviço público dos cidadãos no fornecimento da informação necessária para a vida em sociedade, providenciou-lhes os elementos de formação e expressão do pensamento. A índole interrogatória e contestatária da atividade jornalística atuava na vigilância da divisão dos poderes (legislativo, executivo e judicial) e da atuação do Estado, o que lhe valeu a designação de Quarto Poder (Cornu, 1994; Traquina, 2002).

    1.4 Sociedade de massas

    Enquanto for verdade que uma nova tecnologia pode condicionar a política e a sociedade, uma nova tecnologia aparece e entra em uso apenas em certas circunstâncias políticas e sociais. O modo como a tecnologia é usada tem uma relação, mas não completamente determinada, com a tecnologia em si própria (Schudson, 1993, p. 278).

    A presença física e simultânea de cidadãos num espaço público físico, enquanto espaço privilegiado do exercício da racionalidade (Correia, 1998b, p. 9), onde existe um intercâmbio de informações e de experiências, é transposta para os meios de comunicação de massas que são limitados segundo certas circunstâncias espaciais (Santos, 1998, p. 6). Perante uma nova cultura tecnológica que promove a crescente mediatização da experiência simbólica e, consequentemente, a reestruturação do espaço público, importa compreender quais são as possibilidades de renovação de práticas democráticas nas sociedades de massas, assim como os seus malefícios (Correia, 1998a, 1998b; Santos, 1998).

    Em meados do século XIX, assistiu-se nas sociedades ditas democráticas ao desenvolvimento de governos¹⁰. A representação parlamentar através do sufrágio universal reestruturou a relevância e as relações da esfera pública (burguesa) e da opinião pública estabelecidas com o poder político (Ferry, 1998; Silveirinha, 2005). Note-se que a democracia¹¹ é uma forma de lidar com os desacordos entre cidadãos que partilham de uma só sociedade, mas não de uma só cultura ou de um só sentido do que deve ser feito em matérias que mutuamente os afetam (Silveirinha, 2005, p. 147), com destaque para a diversidade social multi-identitárias de raça, género, idade e cultural. No Estado de Direito Democrático, o poder político distingue-se por meio do poder comunicativo e administrativo. O Estado, através de um sistema de direitos, é capacitado através de organismos independentes ao nível decisório. Portanto, a sua aptidão de organização e promoção da auto-organização da sociedade visa a incrementação da vontade e identidade coletiva, organizada e fundamentada em consensos (Habermas, 1997, pp. 170-171).

    No Estado de direito delineado pela teoria do discurso,

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