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Trabalhadores e trabalhadoras: Capítulos de história social
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Trabalhadores e trabalhadoras: Capítulos de história social
E-book593 páginas8 horas

Trabalhadores e trabalhadoras: Capítulos de história social

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Sobre este e-book

Este livro apresenta alguns dos principais debates desenvolvidos no campo da história social do trabalho e constitui-se do diálogo entre e historiografia nacional e internacional. Os artigos aqui apresentados são resultados de pesquisas em conexão com temas centrais para o campo em sua abrangência e diversidade, e a partir do engajamento político e do diálogo de pesquisadores e pesquisadoras da academia em relação aos movimentos sociais e as trajetórias individuais e coletivas de trabalhadoras e trabalhadores do século XIX ao XXI.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento8 de mar. de 2023
ISBN9786558409335
Trabalhadores e trabalhadoras: Capítulos de história social

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    Trabalhadores e trabalhadoras - Fabiane Popinigis

    I - POVOS INDÍGENAS E MUNDOS DO TRABALHO

    TRABALHO, COERÇÃO E FRONTEIRA AGRÍCOLA EM MOVIMENTO: A FORMAÇÃO DE UM CAMPESINATO INDÍGENA (BAHIA E ESPÍRITO SANTO, SÉCULO XIX)

    Vânia Maria Losada Moreira

    Ayalla Oliveira Silva

    A política difamatória contra os povos originários no Brasil é fenômeno de longa duração, sistematicamente produzido e reproduzido em diferentes instâncias do mundo civil e religioso. Preguiça, indolência e imprevidência foram alguns dos muitos vícios atribuídos às diferentes comunidades e etnias para justificar violências e arrancar deles o que, livremente e de boa vontade, não estavam dispostos a dar. Em 1804, por exemplo, o capuchinho Apolonio de Todi expressou tais ideias e preconceitos com clareza, em um relatório escrito ao governador da Bahia sobre o estado de civilização dos índios que moravam em vilas e povoados da região:

    [...] são gentes de nenhum préstimo, por serem falsos, preguiçosos, vingativos, e luxuriosos ao último excesso. E por esse motivo a gente índia não se pode atrair com o céu, porque a fé deles não é firme; não se pode atrair com riquezas, porque não fazem caso dos bens do mundo, nem com os pontos de honra, porque são sem vergonha. Enfim, são bichos, que só com medo se alcança alguma coisa deles.¹

    Desde os primeiros contatos interétnicos, os portugueses buscaram transformar os indígenas em forças produtivas para fazer girar a economia colonial e, de acordo com Stuart B. Schwartz, utilizaram principalmente três estratégias: coerção direta sob a forma de escravização; a tentativa de criação de um campesinato indígena, por meio da territorialização em aldeamentos regidos por missionários; e a integração individual e paulatina no mercado como trabalhadores assalariados, realizado por leigos e religiosos.² Na época de Apolonio de Todi, a governança dos índios era regulada por meio do diretório, ainda em pleno vigor em várias partes do Brasil no início do século XIX.

    O Diretório que se deve observar nas povoações dos índios do Pará e Maranhão, enquanto Sua Majestade não mandar ao contrário³ substituiu o regime das missões e foi criado como uma resposta às demandas das elites regionais da Amazônia portuguesa, interessadas na exploração do trabalho indígena.⁴ A lei se dedicava à regulamentação da ampla liberdade concedida aos indígenas em 1755, criando mecanismos e regras para a exploração de seu trabalho. Pouco depois, passou a valer no restante da colônia e, como demonstra o testemunho de Apolonio de Todi, estava longe de representar uma estrutura legal e governativa que angariasse entusiasmo e aprovação dos setores sociais dominantes. Afinal, de acordo com Todi, os indígenas não estavam respondendo adequadamente à honra de viverem em vilas, participarem das câmaras, possuírem terras e postos nas ordenanças. Em outras palavras, continuavam preguiçosos e mal-conversos, resistindo às estratégias coloniais de cooptação pela religião, pelo dinheiro e pela honra. Por isso mesmo, era preciso substituir o diretório por uma política de medo para subjugá-los.⁵

    O presente capítulo visa discutir a formação de um campesinato indígena não apenas como resultado do processo de territorialização operado pelo Estado (português e/ou brasileiro), por meio de aldeamentos e vilas indígenas, mas também em razão do interesse e do protagonismo dos próprios indígenas. Para isso, serão discutidos os casos dos indígenas moradores de vilas e aldeias do Espírito Santo e do Sul da Bahia.

    Coerção ao trabalho e lavradores indígenas no Espírito Santo

    Apolônio de Todi não era uma voz isolada a pedir medidas violentas e coercitivas contra os indígenas e seu modo de vida. Na transição do Brasil colonial para o independente e ao longo do século XIX, vários políticos importantes defenderam a severidade tanto em relação aos indígenas que viviam em vilas, povoados e aldeias do mundo colonial/imperial, quanto em relação aos povos originários independentes dos sertões. O marquês de Queluz João Severino Maciel da Costa, por exemplo, entendia que, se fosse mantido o diretório, a instituição deveria adquirir uma forma mais policial que tutelar, para coagir os indígenas ao trabalho e evitar a vagabundagem.

    Na mesma toada, em 1826, o presidente de Pernambuco Francisco de Paula Cavalcante e Albuquerque lamentava o fato de o diretório ainda estar em vigor, uma vez que a lei que mandava sua abolição desgraçadamente [...] foi sufocada no berço, e o mal tem ido em crescimento descompassadamente.⁷ Ele estava se referindo à carta régia de 12 de maio de 1798, editada na transição do governo mariano para o joanino e que mandava abolir o diretório. Para ele, Pernambuco não precisava mais de vilas, aldeias e povoados indígenas porque não mais possuía índios bravos, mas apenas filhos e netos dos já aldeados, e estes lhe provocavam lágrimas de aflição: eram inteiramente preguiçosos e estavam corrompidos pelas convulsões e arruaças políticas que estavam ocorrendo na província. O mal produzido pela continuidade do diretório era que os índios, filhos e netos dos já aldeados, tinham a posse e o domínio de algumas das melhores terras da província, além de desfrutarem de liberdade, em vez de serem úteis ao Brasil, suprindo o déficit de escravos:

    É pois de muita importância, falando da província de Pernambuco, acabar com as tutelas, e dar-lhes uma carta de total emancipação, dando-se providências policiais para que os mais novos sejam ocupados nos trabalhos, e misteres sociais, e aos que forem pais de famílias, marquem-se-lhes suficientes porções das muitas e boas terras, que inutilmente possuem, para nelas trabalharem, revertendo ao Estado, as que restarem, para se venderem, e nelas levantarem engenhos de açúcar, e estabelecerem-se fazendas de algodão, ou de qualquer outro gênero de cultura.

    A primeira tentativa de abolir o diretório foi, portanto, em 1798, em uma lei que fazia aberta crítica contra a opressão exercida pelos diretores de índios, propugnando, ainda, a igualdade jurídica deles frente aos demais súditos da Coroa. Desse modo, passariam a ser governados localmente apenas pelas câmaras e ordenanças das vilas e povoados em que moravam, tal como acontecia com os demais moradores livres. Ficavam fora dessa igualdade jurídica os povos autônomos dos sertões, que passariam a ser ressocializados por meio de um novo sistema tutelar.⁹ A tentativa, contudo, não prosperou na medida do esperado e a própria historiografia questiona-se se, de fato, a carta régia de 1798 foi extensiva a toda a colônia, como sugeriu Carneiro da Cunha, ou somente à Amazônia portuguesa, como argumentam Lopes e Sampaio.¹⁰

    Na Amazônia portuguesa existia, mesmo antes da carta régia de 1798, uma espécie de campesinato indígena, que vivia em seus próprios ranchos, produzindo alimentos e outros gêneros, cujos excedentes faziam chegar aos mercados urbanos.¹¹ Eles estavam fora do alcance dos diretores de índios, serviam nas milícias e parte deles se dedicava aos ofícios manuais¹². De acordo com Sampaio, a abolição do diretório intensificou ainda mais a militarização das populações ressocializadas em aldeamentos, povoados e vilas, pois passaram a ser alistadas em Corpos de Milícias e Corpos Efetivos de Índios, com o objetivo de inseri-los no mundo do trabalho civil e militar. Para a autora, o engajamento nas tropas para prestar serviços ao Estado coroava a composição desse vassalo índio, por definição, livre e igual a qualquer outro súdito¹³.

    Apesar da abolição do diretório não ter sido aplicada de maneira linear e uniforme no conjunto do território colonial, o engajamento dos indígenas nas milícias e forças armadas ganhou impulso a partir da carta régia de 1798. Com a instalação da corte portuguesa no Rio de Janeiro, por exemplo, as forças militares passam por um processo de reorganização e reforma, dando-se continuidade ao enquadramento militar da população indígena. Em 1808, foram criados o Corpo da Brigada Real do Brasil, o Arsenal Real da Marinha, a Intendência e Contadoria da Marinha, a Real Academia dos Guardas Marinhas e a Real Fábrica de Pólvora e, em 1819, o ministério Linhares fundou a Academia Real Militar, lançando as bases do ensino militar no país¹⁴. Nesse novo contexto, os índios foram amplamente incluídos como setores que deveriam ser recrutados tanto para servirem nas forças terrestres quanto para ingressarem na Armada. Taxativo a esse respeito foi o Aviso de 22 de novembro de 1808, que mandava os governadores da Bahia, Pernambuco e Ceará enviarem, de suas aldeias e distritos, 200 índios destinados a servir hum ou dous annos no Arsenal, voltando depois aos seus lares, com as viagens pagas, e vestidos assim à vinda, como quando voltarem por conta da Real fazenda.¹⁵

    A independência não alterou, inicialmente, as relações entre as forças armadas, agora nacionais, com os indígenas. A Decisão n. 284 da Marinha, de 20 de dezembro de 1825, aprovou, por exemplo, a criação de uma Companhia de Índios pagos pela Fazenda Pública, para se empregarem no serviço do Arsenal da Marinha dessa Província [i.e. Maranhão], e nos navios da Armada Nacional e Imperial.¹⁶ Na realidade, a concepção de que os índios eram particularmente aproveitáveis na marinhagem se intensificou depois da independência: uma circular enviada ao presidente da província do Pará e depois recomendada aos demais presidentes provinciais determinava que os recrutas índios deveriam ser depositados em navios da Armada estacionados nas províncias, para evitar gastos com transporte em embarcações mercantis.¹⁷ Também foram editadas normas para a hospedagem, alimentação e fardamento dos indígenas que chegassem das províncias para servir no Arsenal¹⁸. Em 1875, já finda a Guerra do Paraguai e tendo sido aprovada a nova lei do recrutamento, baseado no sorteio e na ideia de universalização do serviço militar, o Duque de Caxias, então à frente do Ministério dos Negócios da Guerra, reiterava que os indígenas deveriam estar sujeitos aos alistamentos, inclusive aqueles de recente contato e territorialização, ou seja, os indígenas aldeados: (...) os índios, que fazem parte da comunhão brazileira estão sujeitos ao alistamento para o Exército e a Armada, não devem, por maioria de razão, ser delle excluídos os referidos cidadãos, salvo se tiverem algumas das isenções estabelecidas na Lei¹⁹.

    Na capitania do Espírito Santo, o diretório foi oficialmente abolido em 1800 e, sob o argumento da igualdade jurídica entre portugueses e indígenas, o então governador Antônio Pires da Silva Pontes mandou que todos os pedidos de aforamentos de terras fossem aceitos dentro das sesmarias e vilas indígenas da região. Alguns anos mais tarde, curiosamente o cargo de diretor de índio foi recriado na capitania, mas passou a funcionar muito mais como uma autoridade coativa, que vigiava e explorava o trabalhador indígena, do que como uma autoridade diretiva e organizadora da vida social nas vilas de índios, tal como ocorria no tempo do diretório.²⁰ Além disso, o recrutamento militar nos povoados e vilas de maioria indígena foi bastante intensificado nesse período a ponto de, nos anos seguintes, e até o fim do regime imperial, ocorrer uma significativa redução da população indígena regional, em razão das deportações para servirem na Marinha e Exército e das fugas para evitar o trabalho forçado.

    O recrutamento militar não funcionava apenas como um método de obtenção de soldados e marinheiros para as forças armadas. Era também um meio de controle social e de coerção dos homens ao trabalho, pois as isenções e as dispensas eram somente válidas àqueles que exercessem seus ofícios e demonstrassem bom comportamento.²¹ As Instruções de 10 de julho de 1822 regulamentaram o recrutamento militar, codificando as práticas mais usuais de conscrição então vigentes. Tal modelo vigorou até 1875 e, de acordo com os critérios dessa legislação, todos os homens livres entre 18 e 35 podiam ser recrutados. Previam-se, no entanto, várias isenções que visavam à proteção da família e da economia familiar, desonerando os homens casados que efetivamente morassem com mulher e filhos e provessem o sustento da família, bem como aqueles responsáveis por irmãos órfãos ou que fossem filhos únicos de viúvas. Também estavam isentos os filhos únicos de lavradores ou mesmo um dos filhos que estes indicassem, segundo sua vontade. As demais isenções protegiam o mundo do trabalho livre, impedindo que o recrutamento desorganizasse a produção, o comércio e um certo número de serviços. Nesse caso, feitores e administradores de fazendas com mais de seis escravos estavam isentos. Também o estavam tropeiros, mestres de vários ofícios, como carpinteiros e pedreiros, mestres com lojas abertas, caixeiros de casas de comércio, pescadores, marinheiros e estudantes.²²

    O sistema de alistamento era claro: findo o período da conscrição voluntária e tendo sido o número de conscritos insuficiente para cobrir a demanda do Estado, o governo imperial estimulava o alistamento compulsório nas províncias, dando início à temporada do pega ou da caçada humana.²³ Populações consideradas perigosas e delinquentes de diferentes tipos e quilates — inclusive maridos infiéis, por exemplo — podiam ser punidas com o serviço militar compulsório. Seguiam o mesmo destino os homens taxados de vadios e aqueles que tinham profissões consideradas incertas ou pouco respeitáveis.²⁴ No fim do regime colonial, Caio Prado Júnior observou que essa camada social intermediária entre escravizados e senhores estava em franco crescimento, sendo composta pelos desclassificados, inúteis, inadaptados, i.e. indivíduos de ocupação mais ou menos incertas e aleatórias ou sem ocupação alguma²⁵. Laura de Mello e Souza também se ocupou dos desclassificados e, como observou a autora, parte deles exercia as funções de supervisão (feitor), de defesa e policiamento (capitão-do-mato, milícias e ordenanças), e funções complementares à produção (desmatamento, preparo do solo para o plantio).²⁶

    No Espírito Santo, os indígenas moradores de vilas e povoados formavam um setor social intermediário importante e foram um dos alvos preferenciais do recrutamento militar. Em 1837, por exemplo, Manoel Pinto, Índio de Nação, foi de canoa para a cidade de Vitória comprar mantimentos e, chegando no porto, repentinamente foi preso pelos soldados da Companhia da Montanha e depois trancado no calabouço do quartel para sentar praça, apesar de ser casado e possuir roças próprias²⁷. Também foram julgados idôneos para o serviço militar, em outubro de 1844, Felipe de Santiago — Índio, filho de Alexandre de Amorim, natural de Aldeia Velha, idade 23 anos, sem ofício, diz ser casado — e José Antônio, Índio, filho de Sebastiana Pinto, natural de Nova Almeida, idade 20 anos, sem ofício, solteiro.²⁸ O mesmo aconteceu, alguns anos depois, em janeiro de 1847, com Antônio Gomes Soares, Índio, filho de Inácio da Silva, natural de São Matheus, 24 anos de idade, casado, segundo diz, profissão de lavrador, o qual foi hoje inspecionado e julgado idôneo ao serviço militar.²⁹

    As conscrições forçadas de indígenas foram não apenas frequentes, mas também recorrentemente justificadas como um ato de correção contra a vadiagem. Em março de 1852, em um ofício expedido ao Chefe de Polícia, o presidente da província José Bonifácio Nascimento d’Azambuja frisava que, em razão de estarem muito desfalcadas as duas companhias de 1a linha da província, dever-se-ia fazer um amplo recrutamento nas povoações de beira-mar e que, de preferência, recrutem os vadios que enchem as praias sob o título de pescadores, como já foi ordenado.³⁰ Em abril de 1852, d’Azambuja enviou novo ofício ao chefe de polícia, mandando pôr em liberdade dois recrutas enviados pelo subdelegado de Santa Cruz, pois ambos, além de serem menores de 18 anos, eram filhos únicos de lavradores, recomendando ainda [...] todo o escrúpulo no recrutamento, preferindo para ele os vadios de que abundam as praias do distrito [...].³¹ Voltou ao mesmo assunto pouco depois, lembrando que o alvo do recrutamento eram os […] vadios que enchem as praias sob o título de pescadores […].³² Assim, em 27 de maio de 1852, novamente escreveu para o chefe de polícia, mandando-o lembrar ao subdelegado de Santa Cruz que [...] entre os vadios de seu distrito encontrará ele recrutas de sobra, uma vez que dirija os esforços para essa classe de gente tão perigosa à sociedade.³³

    O recado do presidente às autoridades policiais foi bem claro: dentre toda a população masculina legalmente definida como passível de ser recrutada, dever-se-ia proceder ao recrutamento dos pescadores, pois eles eram os vadios que abundavam nas praias da província. A maior parte dos pescadores eram oriundos de povoados indígenas situados à beira-mar e Santa Cruz, tão citado nas admoestações de d’Azambuja, era a antiga Aldeia Velha, um dos mais tradicionais povoados de índios da província, que existia desde os primeiros tempos dos jesuítas. Além disso, Santa Cruz representava, naquele momento, o maior distrito indígena do Espírito Santo, onde as famílias e as comunidades viviam da combinação da pesca, mariscagem, roça, caça e atividade madeireira.

    Para escapar do recrutamento forçado, os indígenas protagonizaram diferentes estratégias: fugas individuais e coletivas de suas terras e povoados; fundação de novos povoados nas regiões mais ermas da província, onde ficavam mais à salvo das temporadas de pega; ou mesmo busca de um patrão que, em troca de seu trabalho, oferece um pouco mais de proteção contra os recrutamentos e deportações. Também buscavam estar em paz com as autoridades civis e religiosas, casando na Igreja, lavrando a terra e provando ser homens honrados. O caso de Manoel dos Santos é um bom exemplo. Ele e sua esposa, Anna Pinto, eram índios residentes na vila de Linhares. Um certo dia, ele foi preso para sentar praça e no requerimento que interpôs solicitando soltura, apresentou-se como homem estabelecido, marinheiro e casado, que deveria ser posto em liberdade para desse modo cuidar da subsistência de sua família, dependente só do suplicante.³⁴ Pela documentação disponível, não é possível saber se Manoel dos Santos foi solto ou se prestou juramento e sentou praça. Mas duas tendências aparecem claramente na documentação sobre recrutamento militar disponível: de um lado, o interesse das autoridades em recrutar indígenas, como se eles fossem ociosos e vadios se estivessem cuidando de suas próprias lavouras e afazeres; de outro, o interesse dos indígenas em se definirem como honrados e estabelecidos. A petição de soltura do cidadão Brasileiro Manoel Ribeiro é ainda mais esclarecedora:

    Diz Manoel Ribeiro, cidadão Brasileiro, casado, morador no sertão de Mangarahy, 4o [ilegível] desta cidade, que ele vive de ser lavrador; e sendo-lhe mister vir a esta cidade a vender os seus afeitos e comprar arranjos para a sua família e para a sua lavoura, suceda ser preso no dia de ontem, 31 do mês próximo findo, e conduzido ao calabouço por um soldado de polícia para sentar praça.

    O suplicante, Exmo. Sr., pelo documento junto, mostra a verdade do que expõem, e não apresenta certidão de casamento porque se recebeu na vila de Nova Almeida, quando era lá morador e freguês, distante desta cidade mais de 12 léguas; e não ter quem nesta cidade o possa fazer pela longitude e ser pobre; e estar residindo no lugar supracitado a [ilegível] 11 anos (… ). Outrossim, se pelo documento apresentado não for atendida sua requisição, o suplicante protesta apresentar documento do Inspetor do Quarteirão de sua residência, fazendo com ele certo ser casado, onerado de filhos, lavrador, e a sua conduta.³⁵

    No requerimento de soltura de Manoel Ribeiro está anexado um atestado de casamento, provando suas núpcias com Guardina Maria do Nascimento, em 25 de junho de 1830, na freguesia dos Santos Reis Magos, pertencente à vila de Nova Almeida. O atestado também traz a informação de que ele, a esposa e os pais de ambos eram todos índios daquela freguesia.³⁶ Por que ele abandonou a vila, onde viviam parentes, vizinhos e amigos? Por que deixou terras que pertenciam aos indígenas da vila, demarcadas e protegidas com título de sesmaria? Por que foi viver no que era, então, o distante sertão de Mangarahy? Nas fontes compulsas não existem dados suficientes para construir respostas seguras às questões levantadas. É certo, contudo, que ao sair da vila e estabelecer-se nos sertões Manoel Ribeiro escolheu um caminho comum entre seus pares, interessados em manter a liberdade pessoal e de suas famílias. Afinal, desde a revogação do diretório, as perseguições, deportações e trabalho forçado produziram uma diáspora indígena na região, esvaziando suas terras, vilas e povoados. Em 14 de janeiro de 1840, o cidadão Brasileiro Manoel Ribeiro foi posto em liberdade, livrando-se do serviço militar compulsório. Provou ser casado, lavrador e ter boa conduta. Mas talvez não tivesse a mesma sorte se estivesse nas terras de sua vila à beira-mar, realizando as mesmas atividades na qualidade de índio.

    Terra, trabalho e os índios posseiros no distrito de Una, sul da Bahia

    Em 1835, Luiz Borges integrava a população do aldeamento São Pedro de Alcântara ou aldeamento de Ferradas, na vila de Ilhéus³⁷. Luiz Borges tinha 57 anos, era natural da vila indígena de Olivença, viúvo, livre e lavrador. Ele vivia em Ferradas com a filha, Virgínia, de 27 anos, também viúva e lavradora; com a sobrinha, Flora, de 17 anos, também natural de Olivença, e com o neto Manuel Lorenzo (filho de Virgínia) de três anos de idade e natural de Ferradas.³⁸ Não sabemos exatamente o que levou Luiz Borges a Ferradas, talvez tenha sido deslocado àquele aldeamento a fim de ensinar os camacãs não civilizados a trabalhar, pois essa foi uma prática utilizada pelo diretor de Ferradas.³⁹ O que sabemos, com certeza, é que Luiz Borges não permaneceu em Ferradas, apesar de ter construído laços familiares na localidade.

    Pouco antes dessa época, o frade capuchinho italiano Ludovico de Livorno – diretor de Ferradas durante os anos 1818 a 1848 – escreveu ao ouvidor da comarca de Ilhéus, Balthazar da Silva Lisboa, para compartilhar algumas dificuldades. Na ocasião, queixou-se ao ouvidor que muitos índios estavam abandonando o aldeamento em razão de uma epidemia de febre amarela que havia vitimado a maior parte deles. Também mencionou a desconfiança que os índios ainda alimentavam sobre ele, pelo tratamento que recebiam de parcela dos colonos locais, pois eles ainda tinham muito fresco na memória a submissão que sofriam ao trabalho forçado sob ameaça e castigo, mesmo sendo legalmente livres.⁴⁰ Portanto, o risco de epidemias e a possibilidade da servidão eram motivos mais que suficientes para que Luiz Borges regressasse com a sua família para Olivença. Porém, ao retornar, Luiz Borges não fincou residência na vila, ele se instalou em uma zona distante dos limites da sesmaria indígena.

    Em 1854, passados dezenove anos desde que nos deparamos com ele, como índio livre e lavrador, em Ferradas, Luiz Borges estava em posse de um sítio, no rio Cachoeira de Una, distrito de Una. Ele estava em companhia de mais 18 posseiros indígenas e não indígenas instalados entre as localidades de Sequeiro Grande e Repartimento, em uma zona de frente de expansão fundiária. Luiz Borges, portanto, de índio vilado/aldeado e lavrador em Ferradas passou a índio posseiro nos registros da Inspetoria de Terras em Una, na comarca de Ilhéus, sul da Bahia. O distrito de Una e a vila de Olivença constituíam uma fronteira social extremamente fluida em meados do século XIX. Una era também uma zona de expansão fundiária, que avançava ao encontro do território da sesmaria da vila dos índios de Olivença.

    O aldeamento Nossa Senhora da Escada foi elevado à condição de vila de Olivença, em 1758, no entanto, a sesmaria do antigo aldeamento foi mantida como patrimônio dos índios e dos seus descendentes, esse foi um fator que culminou na estruturação administrativa mista da vila. Na avaliação de Teresinha Marcis, a característica administrativa de vila/aldeamento permitiu que os índios mantivessem a identificação étnica diferenciada dos não indígenas, e com isso, podiam reivindicar direitos específicos orientados pela legislação indigenista, sobretudo lhes permitiam tentar garantir proteção jurídica aos abusos e explorações cometidos pelos colonos e pelas autoridades. Porém, a manutenção do reconhecimento da condição jurídica diferenciada não impedia que o status de índio fosse recorrentemente questionado pelos demais moradores da vila e pelas autoridades provinciais, ao longo do século XIX.⁴¹

    A partir da criação da vila, a então igreja de Nossa Senhora da Escada foi elevada a condição de freguesia do termo da vila de Olivença, cujos limites abarcavam a capela de Santo Antônio da Barra de Una. O rio Acuípe marcava o limite legal entre a expansão da ocupação fundiária não indígena e o território da sesmaria da vila dos índios de Olivença.⁴² Contudo, os índios historicamente ocupavam um perímetro para muito além dos limites da sesmaria indígena, com suas roças e moradias.⁴³ Ao elaborar um estudo etnográfico sobre os tupinambás de Olivença, Susana de Matos Viegas concluiu que, no século XIX, os índios de Olivença ocupavam o território em três modalidades. Havia os que se mantinham fixos na vila; havia uma segunda parcela que alternava residência entre a vila e a mata; uma terceira parcela vivia exclusivamente na mata.⁴⁴

    Nesse ponto é importante salientar que a tendência de caracterizar o território indígena de forma homogênea e inerente a todos os grupos indígenas deve ser lida mais como uma construção pós-colonial e menos como reivindicação dos grupos étnicos. Porque, como frisou João Pacheco de Oliveira, não é da natureza das sociedades indígenas estabelecerem limites territoriais precisos para o exercício de sua sociabilidade. Tal necessidade advém exclusivamente da situação colonial a que essas sociedades são submetidas.⁴⁵

    Dito isto, durante a segunda metade do XIX, as terras da sesmaria do antigo aldeamento dadas como patrimônio aos índios da vila de Olivença estavam sujeitas à legislação indigenista do Império, subsidiária ao Decreto 601 e suas emendas complementares. O Império se caracterizou por um modelo autoritário de indigenismo que, apoiado no novo campo normativo liberal e nacionalista em ascensão deslegitimava as diferenças étnicas, privatizando as terras coletivas e reclassificando os índios como brasileiros, nacionais e cidadãos (Moreira, 2012). Nesse processo, as terras indígenas dos índios de Olivença estavam sujeitas ao arrendamento e aforamento a terceiros, assim como ficavam sujeitas ao mesmo fim dos aldeamentos considerados extintos, à venda a quem melhor preço pagasse por elas, segundo o Decreto provincial de 1875 que atribuía tal prerrogativa às Câmaras Municipais.⁴⁶ Nesse contexto, de maior interesse do estado em controlar as terras apropriáveis ao sul, é que as autoridades de Ilhéus, responsáveis pelo cumprimento das demandas legais da pasta das Terras Públicas da Bahia, se ocuparam em levantar a situação fundiária em Una, ocasião na qual reencontramos Luiz Borges, agora alçado à condição de posseiro daquele distrito.

    O levantamento da situação fundiária em Una estava em consonância com o artigo 28 do Decreto 1.318, de 1854, que regulamentou a Lei de terras de 1850. O referido artigo do Regulamento determinava o seguinte:

    Logo que for publicado o presente Regulamento, os Presidentes das Provincias exigirão dos Juizes de Direito, dos Juizes Municipaes, Delegados, Subdelegados, e Juizes de Paz informação circunstanciada sobre a existencia, ou não existencia em suas Comarcas, Termos e Districtos de posses sujeitas a legitimação, e de sesmarias, ou outras concessões do Governo Geral, ou Provincial sujeitas a revalidação.⁴⁷

    Nessa ocasião, mandava-se que nas províncias onde existissem terras devolutas deveria ser escolhido um inspetor-geral (ligado à Repartição Especial de Terras Públicas) responsável por realizar as medições necessárias. Note-se, além disso, que o cumprimento do novo dispositivo legal de terras, exigia, nas localidades, a participação de diversas autoridades judiciais e policiais. Em nível provincial, deveria ficar a cargo da Repartição Especial de Terras Públicas, do Delegado de Terras e do Inspetor geral, o cumprimento das orientações da Diretoria Geral de Terras do Império.

    Neste processo, o levantamento da situação fundiária do distrito de Una visava levantar detalhadamente as sesmarias existentes, assim como a situação legal de cada uma, e as posses estabelecidas em sesmarias e em terras públicas. O resultado de tal levantamento foi apresentado em documento datado de 1854, que trazia de forma circunstanciada a condição das terras nos seis quarteirões daquele distrito.⁴⁸

    O Distrito de Una, conforme informou o escrivão de polícia João Caetano de Souza Quadros, estava divido em seis quarteirões cujas delimitações tiveram como referência as localidades, a costa e as margens dos rios. No Documento foram registrados 64 (66)⁴⁹ indígenas, seguramente quase todos de Olivença, e que viviam fora do perímetro da vila ou da sesmaria da vila. Todos eles escolheram conduzir suas vidas fora da vila indígena sem, contudo, deixarem de se apresentar às autoridades como índios.

    Na prática, isso significa dizer que, por um lado, eles buscaram adaptar as suas vidas, livres da pressão das autoridades e dos colonos ávidos pelo trabalho e pelo domínio econômico do patrimônio territorial da vila indígena. Por outro lado, ao deixarem a vila ou a sesmaria indígena, eles se lançaram numa fronteira de dominação econômica mais ampla e que não deixava de ser um espaço de exercício da violência, nos termos definidos por Pacheco de Oliveira.⁵⁰ Pois a transformação daquele espaço que os Tupinambás historicamente ocupavam e entendiam como extensão do território da sesmaria indígena, em fronteira de ocupação, implicava na negação dos direitos indígenas sobre o espaço em detrimento do seu controle pelos colonos e pelos agentes do Estado.

    Esse exercício de tentativa da negação dos direitos dos índios aparece, indiretamente, na maneira como eles foram classificados no levantamento de terras em Una. No qual eles foram referidos como posseiros e alguns também como moradores⁵¹. O mapa a seguir corresponde à exposição aproximada dos respectivos quarteirões do distrito de Una, termo da vila de Ilhéus.⁵²

    Figura 1. Quarteirões do distrito de Una, 1854

    Fonte: Elaboração própria, com base na documentação administrativa consultada no Arquivo Público do Estado da Bahia (Apeb).

    O primeiro quarteirão, dos seis existentes, compreendia a parte mais habitada do distrito de Una, onde se situava Santo Antônio, capela da povoação que havia sido anexada à freguesia de Olivença, quando esta passou à condição de vila. Iniciava-se na parte do norte da Barra de Una e terminava no lugar denominado Ponta do Mangue.⁵³

    A maior parte das posses desse quarteirão era modesta, composta de terrenos com casas cobertas de palha e outras de telha, um total de 39 casas. Florinda, viúva, estava instalada na parte de ocupação mais antiga do quarteirão cujos moradores tinham terrenos maiores, com casas e cultivos. Florinda tinha naquela localidade um terreno de 30 braças quadradas no qual estava localizada a sua casa e uma plantação de coqueiros. Essa parte do primeiro quarteirão também era ocupada com casas de aluguel e de negócios. Em outro extremo do primeiro quarteirão, a maior parte dos terrenos compreendia apenas a casa de moradia, sem quintal; era o caso dos terrenos de José Joaquim, Eugênio Francisco, Silvéria, e a de outra índia (nome ilegível). Os terrenos dos seus vizinhos não indígenas tinham as mesmas características e proporções, estavam ocupados com casas cobertas de palha, sem quintal, também casas ainda em construção.⁵⁴ Pode-se considerar que aquela povoação correspondia à parte relativamente urbanizada do distrito.

    Os indígenas habitantes do primeiro quarteirão se encaixavam em duas das três já mencionadas categorias elaboradas por Viegas para se referir ao modo como os tupinambás de Olivença se relacionavam no território. Dessa forma, é possível considerar que alguns mantivessem dupla residência: na vila de Olivença e no distrito de Una; a maioria provavelmente se estabeleceu definitivamente fora da vila, para se esquivar dos abusos e explorações dos colonos e autoridades a que eram submetidos em Olivença. Os indígenas do primeiro quarteirão aparentemente trabalhavam para os colonos instalados naquela zona, tendo em vista que a maior parte possuísse apenas casa sem quintal e pelo histórico de que fossem contumazes jornaleiros. Pois, desde o século XVIII, a força de trabalho dos índios de Olivença ao sul da freguesia de Ilhéus era preferível em relação à dos africanos escravizados em razão da ameaça de ataques dos pataxós.⁵⁵

    O segundo quarteirão do distrito também ocupava a faixa litorânea de Una. Como se pode notar no Mapa referido acima (Figura 1) este quarteirão se expandia até o limite legal da sesmaria dos índios de Olivença (limitada pelo rio Acuípe). A parte habitada desse quarteirão compreendia o lugar denominado Ponta do Mangue até o lugar de nome Cajueiro. As posses foram registradas do lugar denominado Cajueiro até a localidade de Capororocas. Quatorze posseiros, com plantações de coqueiros e outras lavouras, estavam estabelecidos naquela zona. Dentre os quais foram relacionados os índios Pedro Gomes, com 68 braças de terra; João Calisto, com 121 braças; José Alexandrino, com 36 braças; e José da Serqueira, com 50 braças de terra. Os índios dessa localidade cultivavam preferencialmente coqueiros.⁵⁶

    Além da área de ocupação entre Cajueiro e Capororocas, menciona-se que da Ponta do Mangue até o lugar chamado Mundéu, existiam 09 casas avulsas, sem quintal, por entre pés de coqueiros, cujos ocupantes [eram] índios⁵⁷. Eram eles: Manoel Pereira, Luís José Antonio, José Antonio Mascarenhas, Delfina Maria, Manoel [Lazerido], Francisco Ignacio, Severiano de tal pardo (Severiano Francisco) e Pedro Archanjo do Rozario. Dentre os sítios dos índios localizados entre Ponta do Mangue e Mundéu registrou-se o tipo de cultivo apenas referente às terras de Pedro do Rozario, que tinha uma plantação com 200 pés de coqueiros em uma área de 45 braças, de José Mascarenhas e Francisco Ignacio, ambos tinham plantações com alguns pés de coqueiros.

    Todos os indígenas naquela localidade residiam em casas [de taipa] cobertas de palha. Na memória atual dos tupinambás, a substituição das casas de taipa por casas de tijolos se deu pela administração municipal, a partir dos anos 1930, e é considerada como movimento de despejo dos índios e ocupação da vila pelos brancos.⁵⁸ Portanto, o modo de habitar em casa de taipas e palhas – mantido pelos tupinambás de Olivença até o século XX – era reproduzido pelos índios que escolhiam seguir suas vidas fora do perímetro do centro administrativo ou mesmo fora dos limites da vila de Olivença, mantendo as relações comunitárias. Possivelmente a maior parte dos índios dessa localidade trabalhasse como jornaleiros no corte de madeira e na agricultura, modalidades de trabalho nas quais eles eram recorrentemente empregados na região.

    Figura 2. ‘Casa isolada’ em Acuípe. Foto: Susana Viegas, 1998

    Fonte: Instituto Socioambiental (ISA). Disponível em: http://bit.ly/2PvlkLp.

    O terceiro quarteirão tinha início ao norte da Barra de Una, à margem sul do rio Acuípe, e limitava-se com o centro administrativo da vila dos índios de Olivença e o lugar denominado Mamão. Vale salientar que quase todo o terceiro quarteirão estava localizado dentro da sesmaria indígena (ver Figura 1). Daquele lugar até a costa, relatou-se haver onze índios estabelecidos com plantações de mandioca.⁵⁹

    Diferentemente dos dois primeiros quarteirões em que o cultivo agrícola mais notável praticado pelos índios é o de coqueiros, no terceiro quarteirão o produto principal de cultivo pelos índios e não índios era a mandioca. Ainda em meados do século XVIII, sesmeiros compartilhavam com os índios de Olivença pontos da zona entre os rios Acuípe e Cachoeira de Una cujos índios eram responsáveis por grande produção de farinha de mandioca.⁶⁰ Portanto, além de indispensável mão de obra local, os índios participavam intensamente do comércio de farinha (e outros produtos).

    O que estamos interessadas em demonstrar aqui, é que o processo de expansão fundiário em Una, durante o século XIX, correspondia a uma realidade fronteiriça móvel entre Una e Olivença, nos termos de Laura Muñoz, para quem se deve entender a fronteira como um espaço onde dois mundos se tocavam pela colonização [...], pelo intercâmbio [...], [no qual] seu caráter de fronteira excedeu o de uma linha divisória e se converteu, melhor, em uma área ampla, variável e complexa, de contatos, cruzamentos e mesclas.⁶¹ Em outras palavras, a fronteira geográfica entre a sesmaria indígena e as sesmarias e posses não indígenas, naquela região e época, se converteu em espaço de trânsitos e certamente negociações entre o mundo dos indígenas aldeados/vilados e dos não indígenas. Mais ainda, os índios posseiros foram forjados na intensidade e improviso do contato, fenômeno que Mary Louise Pratt denomina de zona de contato.⁶²

    O quarto quarteirão compreendia todo o rio Cachoeira. O rio Cacheira ou rio Cachoeira de Una correspondia a parte do rio Una caracterizado por intensas corredeiras de água que formavam cachoeiras na confluência entre os seus braços: Rio Braço do Sul do Una e Rio Braço do Norte do Una.⁶³ A extensão do rio Cachoeira é identificada como o núcleo de ocupação territorial mais antigo daquela região, pelo fato de se configurar em região de antiga disputa pela terra e nela estarem localizadas as sesmarias que viriam a ser objeto de partilha entre os respectivos herdeiros.⁶⁴ Desse modo, no relatório referente ao quarto quarteirão, se deu atenção privilegiada às sesmarias ali existentes. Segundo o mesmo relatório, existiam duas sesmarias ao norte e uma sesmaria ao sul do rio Cachoeira de Una.

    A primeira sesmaria ao norte pertencia aos herdeiros do seu terceiro possuidor, José Antônio Ferreira, da cidade da Bahia [Salvador]. As terras da sesmaria de Antônio Ferreira limitavam com as posses de dezoito sitiantes: seguindo rio acima, sua frente vai athé a 5ª caxoeira denominada Sequeiro Grande. Dahi para cima athé o lugar denominado Repartimento achão-se 18 posseiros situados em terras públicas. Dentre os posseiros situados nesse lugar está o nosso já conhecido Luiz Borges, juntamente com os índios João Mendes, Francisco Gonçalves, Sebastião Barbosa, Zeferino Antônio e José Antonio do Bomfim. Esses indígenas tinham como vizinhos o inspetor Manuel Florêncio Lima, o pardo José Caetano e dois estrangeiros: o francês André Marvell e o alemão Balsca [Balso Prene]. Conforme o relator observou, esses posseiros ocupavam uma extensão contigua de 3 quartos de légua interrompida apenas por pequenas faixas de mata grossa que os referidos posseiros haviam deixado para servir de divisa entre os seus sítios. Mais três índios, que trabalhavam juntos, estavam instalados no lugar denominado Repartimento, ponto de encontro entre os braços do rio Una (Braço Sul e Braço Norte).⁶⁵

    Naquelas localidades, tanto eles podiam ter escolhido obter e cultivar terras de forma coletiva quanto podiam ter estabelecido suas posses com moradia individual e fazer uso comum da terra ou, ainda, se organizar comunitariamente para o trabalho, mantendo roças individuais. Isso, porque, em quase todos os quarteirões, os índios reproduziam as suas relações coletivas, mesmo participando do processo de apossamento que tendia a ser uma prática individual de acesso à terra. Além disso, todos esses posseiros estavam estabelecidos entre a primeira e a segunda sesmaria do lado norte do rio Cachoeira de Una. Portanto, os sitiantes indígenas, ou parte deles, provavelmente já estivessem com suas roças e residências nessas localidades, quando as sesmarias ali existentes foram concedidas aos seus concessionários, com os quais estabeleceram

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