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Justiça, prisão e criminalização midiática no Brasil
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E-book359 páginas4 horas

Justiça, prisão e criminalização midiática no Brasil

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Sobre este e-book

Promover Justiça é concretizar a Prisão? A mídia, por meio da criminalização de determinados indivíduos - em sua maioria jovens, pobres, negros - promovida pelos Programas policialescos, fortalece a relação entre Justiça e Prisão? Essas são as perguntas centrais que perpassam todo o estudo aqui apresentado. Ao observarmos que a defesa da integridade ideológica da instituição punitiva, sobretudo a efetivada por meio da prisão, se faz produto historicamente aclamado, de diversas maneiras, especialmente no Brasil contemporâneo, reconhecemos na mídia, sobretudo televisiva, o ponto focal no processo de legitimação da relação entre Justiça e Prisão. Diante do exposto, por meio da técnica metodológica da análise de discurso, pretendemos identificar de que forma o conceito de criminalização midiática nos possibilita compreender os aspectos ideológicos presentes nos programas policiais e como se expressa a partir daí na formação da representação social brasileira que acredita na Prisão como forma de obtenção da Justiça. A partir de tais exposições, defendemos a ideia da falência da pena de prisão e da relação entre Justiça e Prisão, visto que tal relação, forjada socialmente e por interesses políticos e de classe, possui elementos que apontam para a crise da sociabilidade brasileira e de seu Sistema Penal.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento14 de mar. de 2022
ISBN9786525218052
Justiça, prisão e criminalização midiática no Brasil

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    Justiça, prisão e criminalização midiática no Brasil - Cibelle Dória da Cunha Bueno

    1. INTRODUÇÃO

    É tarde da noite e para mais uma Delegacia da cidade é conduzido um jovem, preto, pobre, morador de áreas periféricas, que foi pego andando pelas ruas em atitude classificada como "suspeita²". Nas proximidades do local onde ele estava, mais uma cena de violência em que um corpo estendido no chão demarca a linha tênue entre a vida e a morte. A vítima, outro jovem, que teve os pertences tomados, teve ainda a vida colocada à prova, alvejado por um tiro.

    O jovem suspeito - levado pelos policiais que o algemaram jogando-o no chão e pisando em suas costas, enquanto tiravam de seu bolso seus pertences e tomavam sua mochila - será conduzido à Delegacia para ser ouvido por uma autoridade policial e apresentar sua versão dos fatos. Que fatos? Ele saberá do que está sendo culpabilizado quando for interrogado.

    Enquanto era apreendido, populares se aglomeraram em torno da situação presenciando a atuação policial e se manifestando quanto à prisão do jovem: É isso, mesmo! – gritavam – Tem que prender! Cadeia nesse monstro!. Alguns poucos questionavam o motivo da prisão, a forma como esta havia ocorrido, e buscavam saber se o jovem tinha antecedentes criminais, se era mesmo perigoso. Quando ouviam os cochichos, ou eram interpelados pelas manifestações da população, os policiais ignoravam ou simplesmente respondiam com o olhar.

    O representante da polícia, na Delegacia, depois de tomar um café e conversar sobre coisas triviais com os colegas de plantão, senta-se à mesa para ouvir o jovem, a quem dá pouca oportunidade de fala, fazendo-lhe perguntas e exigindo respostas rápidas. O relato do jovem é ouvido e quase que de imediato o indivíduo é levado à cela. Esta, localizada nos fundos da Delegacia, exige que o jovem transite em vários espaços e seja visto, algemado, pelas pessoas que lá estão. Dentre estas, conhecidas de sua genitora que logo o reconheceram.

    Quando o jovem chega ao espaço, agora a ele destinado, se depara com um corredor escuro, com paredes de pintura desgastada, umidade aparente e muita grade. Um ambiente frio, mal iluminado, com um cheiro forte que nada mais se parece do que a mistura do cheiro de suor com cheiro de gente, fezes, urina e comida estragada. Quando vai passando pelos corredores, ainda algemado, o jovem é observado pelas demais pessoas que ali estão, na condição de presos. Todos, encontram-se sob a tutela do Estado, à disposição do Sistema de Justiça, submetidos a condições indignas de vida e desumanizados, aos poucos, no espaço estatal, que parece fazer questão de assim tratá-los. Dali, serão provavelmente conduzidos ao Fórum da cidade para a Audiência de Custódia, ou serão transferidos ao Centro de Triagem e depois para a Penitenciária, que fica há aproximadamente 30 km de distância de onde a maioria deles reside. Seus familiares saberão da prisão por intermédio de pessoas conhecidas. Aquelas mesmas que viram o jovem transitar entre os corredores e espaços da Delegacia. Não serão informados da prisão pelos agentes do Estado e tampouco sobre as circunstâncias que a fizeram acontecer. Saberão apenas que: o ‘fulano’ foi preso, ‘tá’ na delegacia sim, mas não pode receber visitas. Muitos até completam: ‘Tá’ pensando que Delegacia é hotel? Ele não está lá porque estava rezando, né?"³.

    Enquanto isso os populares que assistiram, há pouco tempo, a cena da prisão do jovem suspeito, são interpelados por câmeras de emissoras de televisão, que por meio dos profissionais da comunicação, buscam informações, questionando incessantemente: Quem era esse bandido? Você conhece? É da comunidade? Era traficante? Dono do tráfico da região? Ou era usuário? Matou por conta de dívida, né? E as conclusões relativas ao ocorrido surgem praticamente de forma natural. As afirmações se fazem contumazes, veracidade inquestionável ditas pelos apresentadores performáticos dos canais de TV em que são transmitidas as barbáries diariamente: "Não tem jeito, gente, o tráfico não perdoa! Vemos aí mais uma pessoa assassinada, covardemente, em nossa cidade por conta de dívida com o tráfico. O que este animal, bandido, merece? Cadeia, minha gente! Cadeia! Porque o cidadão de bem merece ter paz, minha gente. Precisamos de justiça!"⁴.

    Do outro lado da tela, de frente para a televisão de sua modesta moradia, concedida por um Programa habitacional da Prefeitura da cidade, a genitora daquele jovem suspeito, recentemente preso, classificado como suposto autor do latrocínio, homicídio ou roubo (sabe-se lá de que forma será classificado) assiste tudo e assente com a cabeça, pensando: É isso mesmo! Merece cadeia este animal! Só assim se faz justiça!.

    * * *

    E ao mesmo tempo em que cenas como a descrita acima, já vistas por nós, acontecem, de forma recorrente, sobretudo nas periferias das grandes cidades, os brasileiros são violentamente atacados em suas próprias casas, pelos inúmeros programas policialescos performáticos que insistem em incitar a barbárie e a violência enquanto publicizam cenas reais de crimes violentos. Jargões de ódio, de naturalização da violência são utilizados cotidianamente pelos apresentadores que entram em nossas casas sem se quer pedir licença e medir as palavras. Associado a isso, estes mesmos brasileiros, compram e reproduzem os discursos cada vez mais moralistas, travestidos de atitudes cristãs e justiceiras dos parlamentares, que se colocam como os maiores conhecedores dos dizeres do povo e do que de fato estes compreendem e querem ao pedir Justiça. Redução da maioridade penal! Mais presídios! Penas mais duras! Pena de morte! Prisão perpétua! São algumas das muitas bandeiras de luta desses grupos de parlamentares que dizem saber o que o povo quer e precisa quando se fala em Justiça. Estas mesmas bandeiras são diariamente repetidas e fortalecidas nos Programas de TV, que dizem informar a verdade ao povo brasileiro, tal como se em cada notícia não houvesse um posicionamento muito bem declarado. Uma forma de potencializar as desigualdades, intensificar os estigmas e apresentar como quase naturais as classificações dos sujeitos inimigos.

    Com o objetivo de apresentar a relação entre Justiça⁵ e Prisão inserida na dinâmica social brasileira, suas nuances e peculiaridades, os aspectos históricos, ideológicos e estruturais que perfazem a legitimação de tal relação, o estudo em questão busca respostas para a questão colocada por meio da análise do discurso da mídia televisiva fazendo uso do conceito de criminologia midiática, presente nos estudos do renomado prof. Zaffaroni. Nossas análises, contudo, terão como ponto de partida uma abordagem voltada à realidade brasileira, em que compreendemos ocorrer a criminalização midiática, tal como se esta categoria estivesse inserida na criminologia midiática. Isso porque enquanto ciência, a criminologia midiática possui aspectos mais ampliados que a criminalização midiática que concebemos e debateremos aqui. Para tanto, estabelecemos como metodologia de construção das reflexões e articulações das teorias e conceitos concernentes ao desvelamento das categorias Justiça e Prisão, o estudo bibliográfico, acrescido da técnica de análise de discursos dos Programas de TV, com caráter policialesco, mais assistidos nas capitais Fortaleza / CE e Brasília / DF.

    A escolha por estas duas capitais, se deu em virtude da compreensão de que Fortaleza é a capital que possui o maior número de horas de programas com teor policialesco no Brasil, considerando que é uma das únicas capitais do país que conta com Programas policialescos locais apresentados, em horários distintos, por duas emissoras de televisão⁶ - tal como se um programa complementasse o outro. A situação apresentada potencializa a necessidade da análise proposta, considerando a peculiaridade da localidade. Ademais, Fortaleza é a capital em que se encontra o curso Stricto sensu que possibilitou esse estudo e com o qual reforço meu compromisso, considerando, que por ter vivido nessa capital, tive a oportunidade de vivenciar o contexto de recrudescimento da violência, tendo, por sua vez, testemunhado as repercussões significativas que a conjuntura propiciou nos discursos utilizados na apresentação dos Programas policialescos em questão.

    Com relação a análise dos discursos dos programas televisivos do Distrito Federal, apresento como principais motivações, inicialmente a importante mudança política, ocorrida no ano de 2018, com a eleição do atual Presidente da República, Jair Bolsonaro. Diante de um plano de governo⁷ que já anunciava, ainda na campanha eleitoral, o anseio por mudanças consideráveis na Política de Segurança Pública e na atuação do Departamento Penitenciário Nacional - DEPEN, que discorriam, dentre outras questões, sobre a necessidade de fortalecimento do aparato repressivo, pela construção de mais unidades prisionais e pelo redirecionamento da política de Direitos Humanos, consideramos o fato de que tais alterações reverberariam em todos os Estados. Os posicionamentos que deflagravam o ultraconsevadorismo que se aproximava, nos deixaram bastante temerários com o que poderia acontecer com a política prisional brasileira, que se já estava ruim poderia ficar ainda pior. Ademais, as primeiras ações do governo, após eleito, promovendo alterações nas diretrizes de gerenciamento do Sistema prisional⁸, aprovação do Pacote Anticrimes⁹, ainda sob a gestão do então Ministro da Justiça e Segurança Pública, Sérgio Moro¹⁰, nos convenceram da necessidade de voltar os olhos para os acontecimentos que se sucederiam em Brasília. Associado a tal fato precisávamos ainda considerar que o atual Secretário da Secretaria da Administração Penitenciária – SAP, do Estado do Ceará¹¹, teve sua formação no Distrito Federal e antes de estar na posição em que se encontra hoje, atuou em Brasília; motivo pelo qual a gestão prisional dos dois Estados apresentava similaridades, considerando que a política penal hoje desenvolvida no Ceará teve início em Brasília durante a gestão do atual Secretário. Ademais, por motivos pessoais, no período de realização deste trabalho, nos mudamos para a capital federal, fato que nos aproximou do discurso televisivo e da cultura de reprodução midiática da violência desta localidade, motivo pelo qual a análise do discurso do Programa de maior repercussão na cidade foi também incluído nesse estudo¹².

    A fim de realizar a análise dos discursos, compreendemos quatro principais fontes de obtenção dos mesmos: (1) os discursos dos apresentadores dos Programas de TV durante a apresentação dos casos de violência; (2) discurso dos jornalistas que trabalham nos locais onde as reportagens são realizadas, considerados âncoras, por realizarem as atividades fora do estúdio de TV, (3) os discursos da comunidade abordada durante as matérias jornalísticas realizadas, e por fim, (4) os discursos dos agentes do Estado que são por vezes abordados durante as reportagens.

    A intenção da análise dos discursos em voga, vale destacar, não é possibilitar uma análise comparativa entre os mesmos, considerando serem proferidos em localidades diferentes e em Programas distintos, mas sim, trabalhar em prol da complementariedade que estes apresentam, bem como focalizar nos aspectos similares e coordenados frequentemente observados. É por este motivo que durante a citação das falas e apontamentos extraídos dos discursos obtidos por meio da análise dos Programas policialescos, os atores que proferem tais discursos não são identificados. Ademais, por terem o teor similar, observado em vários momentos, muitas das falas não foram se quer utilizadas, como forma de tornar o texto mais objetivo e evitar repetições de falas que contivessem o mesmo conteúdo, sendo as mais expressivas, em nossa avaliação, utilizadas.

    Considerando o exposto, a partir da análise dos discursos inseridos em vídeos, cujo acesso aos Programas transmitidos na íntegra, são disponibilizados no website das emissoras ou no Youtube, a partir da busca pelo nome dos Programas, foram analisados, no período de outubro/2018 a maio/2019, o total de 109 episódios, dentre estes dos Programas Cidade 190 e Rota 22, transmitidos em Fortaleza e Operação de Risco e DF Alerta, programas do Distrito Federal. Para tanto foram destinados o período de outubro/2018 a dezembro/2018 para a análise de 63 Programas de Fortaleza e o período de janeiro a maio/2019 para a análise de 46 Programas do Distrito Federal.

    Posteriormente, intencionando complementar as análises obtidas, no período de abril e maio de 2019, enquanto finalizávamos a análise dos Programas do DF, foram realizadas as análises dos discursos de quarenta e oito episódios da série Investigação Criminal, disponibilizada no Netflix, em que são apresentados casos brasileiros de investigações criminais relativas à homicídios de grande repercussão e comoção social. Estas últimas ações descritas, diferentemente das análises realizadas nas fontes de TV supramencionadas, as quais obtiveram rigor científico e categorização prévia, foram realizadas no intuito de promovermos a aproximação com o objeto de estudo e às informações veiculadas pela grande mídia, no que se refere às categorias Prisão e Justiça, sob a ótica dos operadores do Sistema de Justiça responsáveis pelas investigações apresentadas na Série.

    A partir das técnicas de pesquisa relacionadas acima, agregadas às impressões e articulações possibilitadas por meio da nossa trajetória profissional e pessoal algumas constatações vieram à tona: 1)A potencialidade e violência do discurso da mídia televisiva; 2)A relação reforçada, pela criminologia midiática, de que a Justiça se faz por meio da prisão; 3) A compreensão de que a Justiça é sinônimo de vingança; 4) A interpretação de que a prisão, nada mais é do que a forma de retribuição pelo ato cometido, de se ter o que merece; 5) A produção do discurso em torno do inimigo do Estado, o delinquente a fim de se promover o ódio e garantir validação da ação arbitrária e truculenta do Estado; 6) A impunidade no Brasil é relacionada à ausência de efetividade da Justiça, que, por sua vez, diz da não concretização da prisão; 7) Clama-se por prisão no entendimento de que esta demonstra a atuação do Sistema de Justiça; 8) A centralidade do Sistema de Justiça brasileiro é a prisão; 9) A maioria dos órgãos que compõem o Sistema de (In)Justiça brasileiro¹³ é condescendente¹⁴ com as violações de direitos humanos institucionalizadas no sistema prisional brasileiro, fato é que, em sua significativa maioria, não demonstram interesse em desconstruir as formas arbitrárias de cumprimento das penas privativas de liberdade como fonte primária de atuação do Sistema penal; 10) Existe um posicionamento fortemente adotado pelos Programas policiais que é o de estabelecer a relação entre Direitos humanos como direito de bandido, sendo aquele estrito à proteção de marginalizados e vulneráveis (conceitos utilizados erroneamente pelos apresentadores) em detrimento da sociedade, como se esta constitui-se uma parte diferenciada dos protagonistas e envolvidos nas histórias relatadas nas reportagens; e, por fim, 11) a criminalização dos Direitos humanos e seus defensores como se tudo que os envolvesse fosse contrário às necessidades da sociedade que anseia por proteção e Justiça!

    Tais considerações compõem a força motriz do trabalho que aqui se estrutura. Isso porque as reflexões que faço acima e suscito, na condição de constatações, subsidiam as hipóteses deste estudo. Sustentamos as reflexões acima, bem como as hipóteses que apontamos a seguir a partir do olhar, estudo e compreensão que venho forjando, acerca da Prisão, do Sistema prisional brasileiro e sua relação intrínseca com a concepção de Justiça no Brasil desde os anos 2008, quando tive a oportunidade de adentrar a máquina Estatal e conhecer a forma de gerenciamento e as concepções que perpassavam a Administração prisional.

    As pesquisas já realizadas em torno da temática abarcaram tanto a (re)inserção social de egressos do sistema prisional¹⁵; a política de Segurança Pública no Estado de Minas Gerais¹⁶, minha localidade de origem e na qual tive os primeiros incentivos e oportunidades para questionar a forma de punir do Estado brasileiro; a relação entre o Estado Penal e a crise do humanismo¹⁷, bem como reflexões sobre a atuação do Assistente social no campo sociojurídico¹⁸.

    Ademais, nossa atuação enquanto Assistente social e militante no campo sócio jurídico nos possibilita tecer considerações sobre este minado, e ainda pouco explorado¹⁹, campo sócio ocupacional, no que tange à incipiência de pesquisas e normativas que considerem as nuances que o compõem, relativas, sobretudo, às relações de poder e correlações de forças que muito representam o senso comum, as representações sociais, bem como a constituição da ideologia hegemônica que permeia a relação estreita entre a prisão e a justiça.

    Dessa forma sinalizo, como hipóteses iniciais que propiciaram as reflexões tecidas nesse estudo e que orientaram a construção do mesmo que: 1) a concepção de Justiça, forjada no Brasil desde 1500, possui relação estreita com a atual forma brasileira de se pensar a Justiça por meio do encarceramento em massa, tendo como instrumento primeiro a prisão; 2) considero que o Brasil possui elementos estruturantes e ideológicos de sua história que intensificaram o dito Estado penal aqui existente, dando a este corpo e forma de gigante diante de um povo tão frágil por natureza, motivo pelo qual, conclamo o nome "Estado da desumanimaldade²⁰, quando me refiro ao Estado penal brasileiro, já que na minha avaliação, o Estado brasileiro nasceu penal e não se tornou, como aponta Wacquant; 3) avalio que o Estado penal, importado" do contexto estadunidense, nada mais foi do que o Estado já incorporado, mas que na realidade em questão, se tornou mais intenso, legitimado e apropriado a ser implementado no contexto brasileiro, a fim de garantir as relações sociais e a organização societária favoráveis à intensificação das premissas do capitalismo, fato que não elimina a ideia anterior, de que o nosso Estado já tinha, em suas protoformas, o caráter potencialmente penal; 4) interpreto que, embora o Brasil tenha se tornado independente enquanto Colônia de Portugal, este jamais, em nenhum momento de sua história, caminhou por conta própria, sem que suas instituições, legislações e sistemas de garantias e efetivação de direitos estivessem sob os olhares e influências internacionais. Isso ocorre com os demais países latino-americanos. Tal fato reverbera na forma de se pensar a Justiça e o Direito até os dias de hoje; 5) classifico o clamor à prisão, tão fortemente reverberado pela sociedade brasileira na atualidade, como o resultado de um processo de concepção teórico-cultural, cruelmente introjetado na dinâmica social brasileira e reforçado pela criminologia midiática tão potente e atuante na contemporaneidade; 6) a pena de prisão está falida, juntamente com o modelo construído pelo Sistema penal brasileiro, já que esta se mostra um ato de injustiça institucionalizado e, por fim, e não menos importante 7) defende-se aqui outra noção de Justiça que não possui a relação com prisão e, tampouco com o Direito no sentido que temos vivenciado, sendo os dois últimos aspectos convenientes ao sistema econômico vigente e, sobretudo, à classe dominante.

    A partir de tais constatações e hipóteses, estudar a concepção de Justiça no Brasil e sua relação com a prisão e a política de encarceramento em massa²¹, em ascensão no país, por meio da criminologia midiática, significa compreender uma parte da nossa história que possibilita a crítica sobre as escolhas políticas e sociais tomadas por nós, em contextos decisivos de nossa trajetória.

    Desta feita, é importante ressaltar aqui que o objetivo desse estudo não é simplesmente convencer aqueles que se colocam na posição defensiva, como os inconvencíveis. Que possuem premissas com relação à sociedade, ao poder punitivo e sua perversidade como algo inerente ao processo de organização social. Que partem do entendimento de que existem algumas pessoas que são ruins, nascem assim e pronto e acabou (Apresentador do Programa Policialesco Y, exibido em novembro de 2018). Que concebem a justiça como a forma de combate ao mal, aos sujeitos que são classificados por, teoricamente, produzirem e usarem o mal com destreza e frieza. Que compreendem a prisão como a forma fundamental de retribuir o delito cometido, causando sofrimento e castigo ao seu autor, como forma de possibilitar um certo tipo de alívio à vítima e à sociedade.

    A atual conjuntura, na qual descrevemos acima o que pensam e reproduzem a maioria dos seus atores, não nos parece um campo fértil para dizermos sobre o quão óbvio deveria ser visto o discurso em defesa dos Direitos Humanos de todos, inclusive dos que estão em privação de liberdade. Bem como enaltecer que a Justiça, de fato, não se faz por meio da prisão que se idealiza e se concretiza na contemporaneidade.

    Contudo, consideramos que o espaço da academia é campo fértil para ideias que conceitualmente se sustentam a partir das premissas dos Direitos Humanos e da Justiça para todos, motivo que nos conduz a utilizarmos esse espaço para desconstruir verdades postuladas, com interesses específicos, a partir da criminologia midiática, por meio de reflexões e análises que alinham conceitos teóricos ao empirismo da prática vivenciada pela população que se informa por meio da mídia televisiva. Dessa forma nosso objetivo não é tão somente convencer as pessoas que tomam como base outros argumentos, mas sim sinalizar outras formas de interpretação do mundo, de suas contradições e da realidade que aponta a prisão como saída possível.

    Nessa perspectiva, compreender e refutar a prisão e a atual Justiça que modela nossa forma de agir e definir padrões, perpassa o cotidiano de todos nós, brasileiros. Isso porque parto da premissa de que ao não nos incomodarmos com o Sistema de Justiça, injusto e cruel que está posto, nos tornamos coniventes com a realidade absurda que é naturalizada pelo sistema de Justiça brasileiro. Este, de forma a contrariar a legislação vigente, institui como forma de punir, primeira, a pena privativa de liberdade em condições de inteira desumanização e indignidade. Ademais, ao relacionarmos a Justiça, em seu conceito stricto sensu, à prisão e seus aspectos peculiares na realidade brasileira, dizemos de um passado, de nossa formação social que nos conformou a partir de uma visão equivocada do que de fato é Justiça, para quem esta se destina, bem como, o que se pretende com a prisão, que por mais obsoleta que seja, ainda é uma forma de punir²².


    2 O termo suspeito se refere as normativas utilizadas por corporações como Polícia Militar e Civil para justificar abordagens e procedimentos destinados a um determinado público.

    3 Me recordo aqui do relato de um familiar de uma pessoa em privação de liberdade, com a qual tivemos contato enquanto atuávamos na Defensoria Pública do Estado do Ceará, em que esta nos informa como teve notícias da prisão do filho e como foi abordada pelos agentes de Estado ao orientá-la sobre a impossibilidade de visita.

    4 Fala de um dos Apresentadores de um Programa policialesco analisado nesse estudo.

    5 Já de início, cabe destacar que faremos menção ao termo Justiça de forma a ressaltar o sentido que daremos a cada um deles. Assim, Justiça, com maiúscula inicial para o que se espera ser; justiça com minúscula a ideia comum; (in)justiça entre parênteses quando da associação dos dois termos e Sistema de Justiça quando do sentido amplo institucional.

    6 Cidade 190, apresentado de segunda à sexta pela TV Cidade, no horário das 11h50 às 14h e o Programa Rota 22, apresentado de segunda à sexta na TV Verdes Mares no horário das 17h30 às 18h30.

    7 No plano de governo, ainda como candidato à presidência, Jair Bolsonaro já apresentava eixos norteadores das ações em Segurança Pública no intuito de voltar tal política pública para o resguardo das ações e operações dos agentes do Estado, por meio de estratégias de proteção dos mesmos, haja vista a intenção de aprovar o excludente de ilicitude; além da ampliação do aparato policial, fortalecimento e investimentos em tecnologia que reforçassem, ainda mais o Estado penal já em curso. Ademais, as iniciativas que se apresentavam visavam incidir sobre os direitos já conquistados pelas pessoas privadas de liberdade, no que diz respeito à progressão de pena, saídas temporárias, concessões e atendimentos já previstos na Lei de Execuções Penais (LEP). A pauta de Redução da Maioridade Penal, revisão do Estatuto do Desarmamento e a tipificação de invasões de propriedades rurais e urbanas no território brasileiro, como crime de terrorismo, anunciavam a verdadeira tragédia que estava por acontecer. Ademais, os discursos de ódio demonstravam que

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