Acolher e Cuidar: O Afeto na Clínica Psicanalítica Atual
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Sobre este e-book
(em escala "industrial") em nossa sociedade, em uma contemporaneidade na qual os afetos são cada vez mais líquidos. Uma sociedade em que temos de ser sempre candidatos ao corpo perfeito, ao emprego prestigiado, ao status, em uma busca que nunca será bem-sucedida, já que o ideal pós-moderno implica sermos ou estarmos eternamente insatisfeitos, desesperados para consumirmos a próxima grande novidade ou celebridade a ser produzida por essa sociedade do efêmero. Assim, o objetivo é tentar contribuir para uma discussão sobre a necessidade de uma elasticidade da técnica psicanalítica, como apontava Sándor Ferenczi, amigo e principal colaborador de Freud, o criador da Psicanálise, em 1928. Um trabalho que também traz alguns fragmentos clínicos que mostram como a produção de angústia na contemporaneidade pode contribuir para a criação de feridas narcísicas bastante significativas nos pacientes que chegam a nossos consultórios.
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Acolher e Cuidar - Marcelo Bernstein
COMITÊ CIENTÍFICO DA COLEÇÃO MULTIDISCIPLINARIDADES EM SAÚDE E HUMANIDADES
À minha mulher, amiga, parceira e companheira, Maria Claudia,
minha grande parceira e incentivadora, pela paciência e pelo constante encorajamento; por acreditar em mim e nos meus projetos, mesmo nos meus momentos de desânimo e de vontade de desistir de tudo, nos tempos mais difíceis e nas horas mais escuras, quando sua capacidade de acreditar e de me fazer acreditar ajudaram-me
a enxergar uma luz no final do túnel.
AGRADECIMENTOS
Aos meus enteados, Pedro e Guilherme, e às minhas noras, Juliana e Viviane, que incentivaram e me ajudaram a pensar sobre muitas questões ao longo dos dois últimos anos deste trajeto.
À memória de meu avô paterno, Abram, que sempre me incentivou a estudar, refletir e questionar supostas certezas e pensar nas muitas e inúmeras possibilidades da singularidade do ser humano.
A todos meus pacientes, que são também, com certeza, uma inspiração para o meu trabalho diário na clínica.
Ao meu colega de formação freudiana e referência inequívoca de coerência e consistência de prática clínica e reflexão teórica Daniel Kupermann, que foi, inclusive, um dos meus pontos de partida, há cerca de seis anos, para o desenvolvimento das reflexões que tentei desenvolver neste trabalho.
À minha orientadora no mestrado da UVA, Prof.ª Dr.ª Ana Maria Rudge, por ter aceitado conduzir-me ao longo do percurso do mestrado, pela orientação firme e cuidadosa oferecida, mas principalmente pela paciência.
Ao Prof. Dr. Auterives Maciel, um dos meus primeiros professores quando do meu primeiro semestre no mestrado e de quem tive o prazer de poder participar do vasto conhecimento e da instigante postura de incentivo à reflexão sobre o nosso percurso como psicanalistas e a nossa prática profissional, além de sua gentileza e generosidade em aceitar fazer parte da banca do exame de qualificação e de defesa da minha dissertação, compartilhando saberes e sugestões.
A cultura do imediatismo da satisfação, do bem-estar, do conforto e do lazer, onde não é possível esperar e a nada se renuncia. Nada se espera e tudo se devora. O consumo substitui a promessa e torna o futuro eufórico.
(Gilles Lipovetsky)
PREFÁCIO
Empatia e cuidado na clínica atual
Ao abordar a questão do cuidado na clínica contemporânea, Marcelo introduz com grande habilidade inflexões éticas oriundas da clínica de Ferenczi; mostra, assim, a sua atualidade no contexto contemporâneo. Apresenta, por um lado, como uma ética do cuidado pode se implementar pela via da empatia e como, por outro, a linguagem do analista pode favorecer a confiança indispensável para que a elucidação desse cuidado tenha pleno desenvolvimento. Ao conjugar afeto e linguagem, ele cria as condições de uma clínica do sensível e tem, em Ferenczi, um grande intercessor.
Assim, ele formula duas questões fundamentais com as quais irá desenvolver a sua argumentação: pode uma clínica do sensível tomar o afeto como um meio criador de um diapasão de confiança? E qual a língua que o analista deve adotar para permitir que o analisando venha a se cuidar, saindo de uma situação de descrédito no qual ele se clivou? É evidente que a pertinência dessas questões refere-se imediatamente aos dois aspectos inovadores da clínica do sensível. Afinal, a admissão do afeto na experiência clínica não é algo tão patente, nem tampouco é notório que a língua do analista deva variar em consonância com um diapasão de confiança.
No entanto, ocorre a Marcelo não só explicitar as consequências éticas desse procedimento de Ferenczi, como também assinalar sua importância na clínica contemporânea, de modo a mostrar a contundência de um psicanalista que se mantém atual ao intuir na clínica a confiança — em um mundo onde a desconfiança se mostra cada vez maior — e a empatia como o meio de sustentar um vínculo proporcionador de um duplo cuidado de si. Além disso, ele mostra com igual contundência como a clínica do sensível faz da língua da ternura o meio que o analista deve utilizar para criar a proximidade indispensável com o analisando. Combinando as duas técnicas em análise, Marcelo implementa um diapasão de confiança por intermédio de duas estratégias clínicas, cuja designação deveremos agora analisar.
E o resultado já se faz notar nas respostas iniciais que encontramos durante as suas análises criteriosas: o vínculo empático é, na verdade, uma estratégia ética de construção de confiança — pois o afeto de empatia, além de ser uma inovação técnica de estimado valor, é o meio pelo qual um caso difícil de descrédito pode ser solucionado — e a língua da ternura é um exercício inovador de um analista que procura se aproximar do analisando pelo uso de uma linguagem afetiva e minoritária adequada ao menor que sofreu o desmentido. Em ambas as situações, tais casos difíceis configuravam a via daqueles que eram considerados como pacientes não analisáveis, isto é, os não analisandos.
Ora, ao trabalharmos tais questões no contemporâneo, não podemos deixar de ressaltar que essas inovações encontram-se em pleno curso em uma clínica que mantém a sua atualidade, considerando-se que os vínculos afetivos entre os seres humanos encontram-se devidamente prejudicados. Nesse caso, é o incremento de um individualismo acelerado, acrescido de estratégias de produção de isolamento — que submetem os sujeitos a uma identidade protocolar pré-estabelecida —, que Marcelo procura situar como um dos traços das sociedades contemporâneas marcadas pela sua liquidez e a consequente precariedade dos laços sociais. A produção de angústia em escala industrial e o consequente isolamento dos indivíduos — que vão sendo submetidos a exigências ideais de perfeição crescente, alto rendimento e padronização elevada de produção — vão se acentuando cada vez mais e produzindo efeitos nefastos nas subjetividades acometidas por tais imperativos.
Por outro lado, convém não esquecer que o individualismo vem sempre incrementado por hipocrisias morais que acentuam uma condição de desamparo e descredito típicos das nossas sociedades. A hipocrisia moral a qual Marcelo acusa é identificada na clínica ao se incitar o analisando a expor tudo o que vier em mente ao longo da sessão. Já a língua da ternura cria as condições pela linguagem de um aumento de vínculo de confiança deflagrador da elucidação de um caso de desmentido.
Ora, pensando por tais perspectivas, Marcelo apresenta Ferenczi como um analista que trabalha sempre na contrapartida das hipocrisias morais que habitam o campo social. Atento aos comentários de Jacques Lacan — que já apontava para tal sintomatologia ao falar de uma crise generalizada dos laços sociais —, Marcelo nos diz como um psicanalista atual pode se posicionar em um dispositivo clínico que implementa uma ética do sensível na contrapartida dos discursos normativos e codificados que habitam o campo social. Nesse caso, a atualidade da Psicanálise pode ser demonstrada com recursos oriundos de uma ética da atualidade, de modo que ser atual é estar situado na contrapartida dos movimentos coercitivos e normativos postos a serviço de uma hipocrisia moral. Ou seja, a técnica do cuidado é uma ética situada na contramão das hipocrisias imperativas e normativas que resultaram em desmentidos; e a língua da ternura é um exercício que o analista adota para entrar em diapasão com a língua do infante que foi desacreditado pela língua da paixão de um adulto moralmente culpado. Aqui, convém assinalar que ser atual é estar sempre situado na instância clínica de alguém que acolhe — pela via da confiança e da língua da ternura — o descrédito que o analisando sofreu; dando a ele condições de elucidação da sua situação pregressa.
Além disso, a hipocrisia moral da qual Ferenczi fala entra em ressonância com uma diferença entre ética e moral que Marcelo analisa e coloca — à sua maneira — em pleno funcionamento nas suas sutis análises. É que na confusão de línguas citadas no texto o desmentido é descrito em dois tempos e envolve três personagens. No primeiro tempo, uma criança se envolve amorosamente com um adulto que a seduz. Entretanto há uma diferença de linguagem praticada entre os dois: na criança, o erotismo é praticado pela via da linguagem da ternura — cujas características principais consistem nos seus aspectos ternos e afetivos —, já no adulto a sedução acontece pela via da linguagem da paixão — por nós descrita como uma linguagem majoritária, isto é, linguagem de um poder recoberto com imperativos morais.
Na cena inaugural, essa desproporção de afetos vai viabilizar uma agressão do adulto à criança, cujo desfecho será da ordem de um acontecimento traumático. Violentada, a criança utiliza o recurso da identificação com o agressor e mergulha em uma espécie de confusão mental sem saber ao certo o que de fato se passou. O adulto, por sua vez, acometido de uma culpa moral, retorna à criança para lhe acusar, dizendo que o fato ocorrido não deve ser repetido. A criança, já desorientada, procura um outro personagem — aqui descrito como a mãe — para tentar esclarecer o acontecimento que acabara de ocorrer, mas acaba sendo desacreditada pela figura materna, que lhe diz que tudo não passou de uma tolice, uma fantasia infantil inventada pela criança. Nesse momento, a criança desacreditada irá clivar a sua personalidade, fragmentando o eu em uma parte que pensa e nada sente e uma outra que sente sem nada pensar. Nessa clivagem ocasionada pela criança, a cena traumática ganha a configuração de um trauma não estruturante, ocasionado pela hipocrisia moral do mundo adulto.
Ora, são tais casos difíceis que Ferenczi assume, mostrando como eles se configuram no âmbito de uma sociedade que disfarça, pela via da moral, acontecimentos traumáticos que produzem vítimas desacreditadas pelo mundo hipócrita do adulto. É a ausência de confiança na sua própria palavra que será doravante trabalhada pelo analista — ao perceber que o analisando desacreditado é, na realidade, uma criança que foi desmentida na infância — por meio de um diapasão de confiança construído com a técnica da empatia e a linguagem minoritária da criança que o analista passa a praticar.
A utilização da empatia — tão bem descrita no texto da elasticidade da técnica — é uma técnica que utiliza recursos estéticos indispensáveis para a elucidação da cena traumática. Já a língua da