Um Dia Podemos ser Só Lembranças: Suicídio e Pensamentos Suicidas em Estudantes de Medicina
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Um Dia Podemos ser Só Lembranças - Andrea Moreli
COMITÊ CIENTÍFICO DA COLEÇÃO PSI
Este livro é dedicado a todos os estudantes que participaram da minha pesquisa.
Sem suas contribuições e sem sua atenção, esta obra não existiria. Vocês são minhas estrelas mais do que especiais. Muito obrigada. Este trabalho é para vocês!
AGRADECIMENTOS
Um livro não nasce quando começamos a escrevê-lo, já que nossa trajetória social influencia diretamente na maneira como escrevemos, o que escrevemos e sobre o que escrevemos. Por isso, não poderia deixar de agradecer a algumas pessoas que me constituíram e contribuíram para a realização deste trabalho:
Aos meus pais, que me estruturaram durante toda a vida, que me ensinaram as primeiras normas sociais, que me levaram para a escola e que me incentivaram a estudar, a ter gosto pela leitura e pela escrita, que sempre me amaram e torcem por mim. Amo vocês!
Aos professores que passaram pelo meu caminho, pelo tanto que me influenciaram (e ainda influenciam) e por tudo que me ensinaram sobre a relação professor-aluno.
Ao professor e amigo Marco Antonio da Silva Mello, pelos ensinamentos dos muitos anos de convivência e de orientação, sempre me estimulando à sua maneira. Hoje sei que devo muito do meu olhar científico e do meu estilo de escrita a você.
Às professoras Mariana Bteshe e Fabiana Eckhardt, pela disponibilidade e atenção.
À professora Junia de Vilhena, pelo incentivo e pela generosidade.
À professora e amiga Debora Breder, que reacendeu em mim a paixão pelo exercício etnográfico, incentivou-me e me encorajou em diferentes momentos do processo.
Ao professor Pedro Benjamim Garcia, meu orientador no doutorado e na vida! Sempre disponível e de ótimo humor, você é um presente no meu caminho!
Aos meus parceiros de docência, por todo o apoio e por me ouvirem falar sobre o livro de novo e outra vez, sempre me encorajando e incentivando.
Aos meus alunos e ex-alunos, os quais me incentivaram em diferentes momentos da escrita. Um agradecimento especial àqueles da Medicina, que contribuíram diretamente para a pesquisa. Para preservar seus anonimatos, não posso agradecer nominalmente, mas vocês sabem quem são!
Ao meu marido, Luís Otávio, por me incentivar e oferecer toda a estrutura logística e emocional, que permitiu que eu desse conta das minhas muitas jornadas. Sem você, isso tudo não seria possível!
Aos meus filhos, Mariana e Frederico, por terem compreendido a importância da docência em minha vida e por me incentivarem sem cobranças e sempre com muito amor.
A esperança sempre deixa as migalhas para a fome da gente.
(Marcia Matos)
Vale a pena investir em cada uma das almas que a gente toca no caminho que a gente passa.
(Daniela Reis)
APRESENTAÇÃO
Este livro é uma versão resumida e adaptada da minha tese de doutorado, intitulada Amanhã podemos ser só lembranças – suicídio e pensamentos suicidas em estudantes de Medicina, a qual foi defendida no Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Católica de Petrópolis, em fevereiro de 2021. Não é fácil a tarefa de transformar tese em livro, redirecionar a linguagem, revisitar o texto, redimensionar o olhar. No entanto, a possibilidade de retomar o trabalho com um outro olhar é também a oportunidade de estar novamente em contato com a pesquisa e com todas as suas implicações, é poder repensar fragmentos e revesti-los de novos olhares. E devo dizer que essa, com certeza, foi uma jornada extremamente prazerosa em todas as partes do processo, apesar da delicadeza e da intensidade do tema.
Em breve, vocês, leitores, serão apresentados a sensíveis relatos daqueles que foram meus interlocutores e (por que não?) coautores nesse processo: estudantes de Medicina que confiaram a mim pedaços guardados de suas histórias, memórias, angústias e sensações. Apesar de os relatos terem sido ouvidos no âmbito de uma instituição superior específica, eles representam outras vozes. O livro mostra que a questão não está nesta ou naquela faculdade de Medicina, mas, certamente, na estrutura social. A partir de um arcabouço teórico capaz de ajudar a pensar as questões do campo e a entender em que medida a supermodernidade e suas transformações aceleradas de tempo e espaço contribuem para o comportamento ansioso dos estudantes, cruzo teorias e trajetórias sociais, em uma pesquisa ancorada principalmente em importantes autores da Sociologia e da Antropologia. Dessa forma, fui tecendo os fios que, ao se interligarem entre si e à estrutura da sociedade, ao que está presente em todos nós, revelaram algumas teias de nossa cultura.
Dividi o livro em seis capítulos e neles apresento uma escuta ativa e metódica de estudantes de Medicina de uma faculdade privada da região serrana do Rio de Janeiro, buscando, por meio de suas diferentes trajetórias sociais e por intermédio dos relatos de suas rotinas, de seus interesses, de suas inquietações, de suas ansiedades, de suas dificuldades e acerca das questões que afetam sua saúde mental, compreender os motivos que têm levado alguns estudantes de cursos de Medicina a terem/revelarem pensamentos suicidas.
No primeiro capítulo, intitulado A caminhada
, apresento meu lugar de fala e os caminhos percorridos na construção do objeto de pesquisa. No capítulo 2, Saltando da pedra mais alta
, apresento um breve retrospecto histórico do suicídio e de outras questões específicas do tema. O capítulo 3, Gritos de socorro
, conta a história de um evento que deu origem à pesquisa e que funcionou como a saga sob a qual a pesquisa se constituiu. O capítulo 4, O ingresso no curso de Medicina
, aborda as principais dificuldades enfrentadas pelos estudantes desde o ingresso na faculdade, sua adaptação ao curso e sua permanência nele. O capítulo 5, Quero desaparecer
, apresenta as crises relatadas pelos estudantes a partir de uma perspectiva teórica da Sociologia e da Antropologia. No capítulo 6, Considerações finais
, ratifico o que foi mostrado ao longo do livro e aponto possíveis caminhos para a reflexão.
PREFÁCIO
No meio do caminho tinha
uma pandemia...
Rememorando sua caminhada acadêmica, Andrea Moreli se recorda que, no seu primeiro dia de aula na graduação, seu professor em Ciências Sociais lhe ensinou que a ciência é movida pela curiosidade. Essa lembrança não é gratuita e se fixou em sua memória por uma razão de ser. E essa razão, parece-me, é a curiosidade que move Andrea. Curiosidade que se alia ao desejo de desvendar enigmas, de saltar obstáculos, enfim, de enfrentar desafios.
A pandemia, como pedra no meio do caminho à la Drummond, veio a calhar quando surgiu como obstáculo para prosseguir sua pesquisa, de cunho etnográfico, que pressupunha contato presencial e que, nesta circunstância, não era possível.
A história desta investigação teve início quando Andrea se deparou com cartazes de papel pardo fixados na parede da escada de acesso ao segundo andar da Faculdade de Medicina, onde leciona, com frases como: não é normal ir para o hospital por causa da faculdade
; você nunca é bom o suficiente
; desistir da própria saúde para curar os outros não é normal
; me sinto culpada em momentos de lazer
; depressão e ansiedade não são frescuras;
não me sinto humana mais, é pesado ter que ser ótima sempre;
me sinto sozinha como se ninguém se importasse com o que a gente sente;
a gente cuida do outro, mas quem cuida da gente?".
Esse painel de queixas, denúncias e desconforto com a própria existência despertou a curiosidade da pesquisadora acerca do que estava ocorrendo e a levou a uma busca que se tornou tese de doutorado, agora revestida neste livro.
Fazendo uma retrospectiva acerca do foi registrado nos cartazes anteriormente citados, temos que, já em 2017, a comunidade acadêmica se mobilizava acerca de suicídios entre estudantes, sendo que a faculdade pesquisada colocou em debate o tema: Como a Faculdade te afeta?
.
Em toda essa movimentação, o que estava em jogo era a saúde mental dos estudantes de medicina.
Como já mencionamos, logo no início da pesquisa surgiu a pandemia como um obstáculo que impossibilitava o contato pessoal com os entrevistados. Nessa circunstância, restou a escuta por telefone, WhatsApp e zoom.
É significativo ressaltar que a pesquisa de que trata este livro se deu em meio às inúmeras mortes causadas pelo coronavírus em todo o mundo. Leio no jornal Folha de São Paulo a manchete: "Médica da linha de frente contrai novo coronavírus em NY e comete suicídio"; nessa mesma matéria, há o relato de outros suicídios de profissionais da área da saúde.
Na pesquisa de Andrea, a temática do suicídio é explicitada no depoimento de um dos entrevistados: "Você sabe, né, professora, todos os dias se construindo e se reconstruindo. Acabando com nosso corpo, com a saúde mental, álcool, drogas, cigarro... Preenchendo algum tipo de vazio e na faculdade, em termos de vida, ela é bem pequena, mas como é o que a gente está vivendo, ela tem bastante significado. É o elã vital e o elã de morte, parece que tem algum fetiche, coisas mórbidas. Talvez, assim, a urgência da vida. Estou vivendo a vida porque ela é finita e você se aproxima da morte cada vez que pratica essas coisas".
Questão básica desta pesquisa, a ideia de suicídio e o próprio suicídio como possibilidade surgem ante as dificuldades acadêmicas e carências: afetivas, financeiras, amorosas.
Permanece o enigma: por que a morte por opção é um tema recorrente entre estudantes formados para salvar vidas? Seria pelo fato de estarem mais próximos da finitude do ser humano?
Diante dessa interrogação, a pesquisadora incorporou significativos companheiros de viagem: Marc Augé, Bauman, Bourdieu, DaMatta, Durkheim, Foucault, Goffman, Le Breton, entre outros.
Terminando este prefácio, gostaria de lembrar o astrônomo citado por Andrea, Carl Sagan, que diz que somos poeira de estrelas
ao falar sobre o processo de vida e morte que permeia o Cosmo. A partir dessa metáfora, a pesquisadora nomeou seus entrevistados com nomes de estrelas: Sirius, Póllux, Alhena, Acrux, Altair, Hadar, Hamal, Vega, Polaris, Antares, Canopus...
Enfim, uma tese/livro que nos faz pensar no Cosmo e em nós mesmos, na nossa própria existência. O que melhor e mais desafiador?
Pedro Benjamim Garcia
É poeta, educador e autor de diversos livros na área de Educação. Formado em Filosofia (UFRJ), concluiu mestrado em Educação na Pontifícia Universidade Católica (PUC-Rio) e doutorado em Antropologia Social (Museu Nacional - UFRJ). Atualmente, é coordenador adjunto do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Católica de Petrópolis, onde leciona.
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
Sumário
CAPÍTULO 1
A CAMINHADA
Busca e encontro
O começo do caminho
Cortando o último fio
Objetivos
Trilhos e trilhas
No meio do caminho havia uma pandemia...
CAPÍTULO 2
SALTANDO DA PEDRA MAIS ALTA
Um breve retrospecto histórico do suicídio
Epidemiologia do suicídio
Suicídio e Medicina
A morte não sai da cabeça
CAPÍTULO 3
GRITOS DE SOCORRO
Muro das lamentações
Outros atos – retirando tijolos
CAPÍTULO 4
O INGRESSO NO CURSO DE MEDICINA
Transformando não lugares em lugares
Cadê o adulto dessa casa?
A gente chega na faculdade meio atordoado
Criando uma comunidade de suporte
CAPÍTULO 5
QUERO DESAPARECER!
Fatores de risco
Preciso respirar
Não gosto mais nem de mim
A busca da excitação
Não é fácil ficar aqui
CONSIDERAÇÕES FINAIS
No fim do caminho, ainda havia uma pandemia
Outras considerações
REFERÊNCIAS
CAPÍTULO 1
A CAMINHADA
A ciência não corresponde a um mundo a descrever. Ela corresponde a um mundo a construir.
(Gaston Bachelard)
Começo por apresentar o processo de construção do objeto desta pesquisa, desde a definição do campo até os objetivos propostos, passando por todas as dificuldades do percurso. Segundo o antropólogo Roberto Cardoso de Oliveira,¹ pensamos no âmbito de um horizonte socialmente conhecido e, desse modo, o ato de escrever é simultâneo ao ato de pensar. Além disso, interpretamos a cultura balizados por relações, pelo que vivenciamos no campo e a partir do nosso olhar.
Para Oliveira,² pensar e escrever estão no mesmo ato cognitivo, já que é no processo de escrita que o pensamento caminha e vai encontrando soluções. Por isso, proponho começar a trajetória deste livro explicitando os caminhos que me levaram à pesquisa cujo fruto resultou nesta obra.
Busca e encontro
Onde será que o começo se esconde?
(Tiquequê)
No meu primeiro dia de aula, na graduação em Ciências Sociais, o professor ensinou que a ciência é movida pela curiosidade. Ele deve ter ensinado muitas outras coisas naquele dia, mas eram tantas novidades, tantas informações, tantos detalhes, que meus sentidos não davam conta, afinal, era o primeiro dia da minha jornada na graduação. Eu fui a primeira da família a sair da cidade para cursar uma faculdade. Naquele dia, eu só sabia que era curiosa, queria aprender a fazer ciência.
Mais de vinte anos separam-me dessa lembrança que, agora, veio à tona enquanto pensava por onde começar a escrever este livro. Talvez porque o que primeiro tenha me movido para essa proposta foi justamente a tal da curiosidade. Segundo Goldemberg,³ a pesquisa científica exige criatividade, disciplina, organização e modéstia, baseando-se no constante conflito entre o possível e o impossível, entre o conhecimento e a ignorância, sendo um processo no qual é impossível prever todas as etapas — um desafio que requer clareza e sabor.
Por isso resolvi começar pelo começo
, pelo que me levou a buscar o doutoramento em Educação e o que me moveu para a pesquisa que desembocou neste livro, o que aguçou minha curiosidade de entender melhor o objeto que proponho a pesquisar.
Bourdieu⁴ afirma que uma exposição sobre pesquisa é um discurso no qual se corre riscos. Critica o homo academicus que gosta do trabalho acabado e, com isso, muitas vezes, perde a riqueza do rascunho ao deixar de contar o processo.
Para uma professora apaixonada por seu ofício, rever a trajetória acadêmica e profissional, com o propósito de justificar seu lugar de fala, é algo instigante e, ao mesmo tempo, compensador. Olhar para o passado, perceber todos os caminhos trilhados que me trouxeram até o presente e que, de alguma maneira, contribuíram para a realização deste livro, faz com que eu tenha mais certeza de que fiz a escolha certa e, se fosse recomeçar, seguiria nesta profissão na qual busco realizar-me e compreender seus pressupostos teóricos com suas implicações emocionais e afetivas.
Minha relação com o campo da Educação vem desde o curso de formação de professores (antigo curso normal), concluído em 1993. Na verdade, a relação vem de antes, quando, ainda na infância, minha mãe, professora, levava-me com ela para a escola, e eu assumia
a turma toda vez que ela se ausentava da sala. No ensino médio, eu fui oficialmente iniciada nas normas e nos ritos do ofício de professor por meio das técnicas aprendidas e dos estágios realizados. Comecei a carreira como professora de inglês em um curso de línguas estrangeiras.
Durante a graduação em Ciências Sociais, pelo Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), afastei-me temporariamente do magistério e tive meu primeiro contato com a pesquisa de campo, por meio da iniciação científica. Fui bolsista de apoio técnico (CNPq) na área de Antropologia, fiz mestrado (também trabalhando com pesquisa de campo) e fui pesquisadora associada a um Núcleo de Pesquisa⁵ no departamento de Antropologia da Universidade Federal Fluminense (UFF), sempre realizando pesquisas de viés etnográfico.
Em 2004, fui contratada pelo Parque Nacional da Serra dos Órgãos (Parnaso) para fazer uma pesquisa em uma comunidade rural de Petrópolis. Foi esse trabalho que me reaproximou do magistério e selou de vez meu encantamento com a docência. A proposta do projeto era fazer um levantamento detalhado da constituição econômica, social e cultural de um grupo de agricultores